Tenho a honra de integrar – juntamente com Francisca Magalhães de Barros (activista), Manuela Eanes (Presidente honorária do Instituto de Apoio à Criança – IAC), Dulce Rocha (Presidente do IAC), Rui Pereira (Professor universitário) e Isabel Aguiar Branco (Advogada) – a equipa dos primeiros subscritores da petição que foi entregue ao Presidente da Assembleia da República, Dr. Augusto Santos Silva, no passado dia 28/03.
Tal petição – que, mercê da dedicação e do esforço da Francisca Magalhães de Barros, conta com 106.700 assinaturas! – visa que o Parlamento aprove uma simples, mas muito importante, alteração legislativa: que o crime de violação (actualmente, semi-público) passe a ser um crime público. Ou seja, que fique legalmente estabelecido que, para que o respectivo processo-crime seja instaurado, basta que seja dada notícia às autoridades do acto ilícito, por qualquer meio e por qualquer pessoa, sem que seja necessária a apresentação pela vítima de queixa-crime contra o violador.
É de notar que a Convenção de Istambul[1] – de que Portugal é signatário e que está em vigor na ordem jurídica portuguesa – impôs aos Estados que adoptassem medidas legislativas internas que precisamente evitassem que a perseguição criminal dos violadores ficasse inteiramente dependente da apresentação da queixa-crime por parte da vítima ou que garantissem que o processo-crime possa continuar, mesmo que a vítima retire ou desista da queixa[2], conhecendo-se como se conhecem as situações de estigma, constrangimento (físico, social e financeiro) ou até de verdadeiro terror a que as vítimas estão (a maior parte das vezes, senão mesmo sempre) sujeitas.
Ora, mercê da pressão das posições e dos interesses que se opõem a essa correcta orientação, o Estado português adoptou a solução de manter o crime de violação como um crime semi-público (dependente da queixa da vítima a ser apresentada no prazo máximo de seis meses) e de acrescentar ao Código Penal que “o Ministério Público pode dar início ao mesmo (procedimento penal – nota nossa), no prazo máximo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto ou dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe”[3] (sendo nossos os negritos).
Tal solução legal – como, aliás, já sucedera no caso de outros crimes com normativos similares a este, como o de maus tratos – ainda que sirva para aparentar que o Estado português deu efectivo cumprimento à referida Convenção de Istambul, não resolve de raiz qualquer problema, pois faz depender a instauração do procedimento criminal de uma decisão, discricionária, do Ministério Público, com base num conceito vago e indeterminado de “interesse da vítima”, o que pode conduzir a situações e decisões completamente distintas consoante a violação haja ocorrido no Minho, no Algarve ou numa grande zona urbana como Lisboa ou Porto.
A razão de ser essencial, mas não única, para a consagração da violação como crime público – tal como a petição justamente reclama – reside em que, não obstante a enorme gravidade e repugnância desse ilícito criminal, a esmagadora maioria dos casos fica impune precisamente por a vítima não apresentar – e, repete-se, no curto prazo de seis meses – a indispensável queixa.
Ora, um inquérito europeu realizado há uns anos e abrangendo mais de 40.000 mulheres, pôs a nu dois factos absolutamente estarrecedores: 1/3 das mulheres inquiridas revelaram já terem sido violadas alguma vez na vida e, destas, apenas cerca de 10% apresentaram queixa, o que significa que em 90% dos casos o violador ficou tranquilamente à solta e, no nosso país, ao fim de seis meses e um dia, com a certeza da respectiva impunidade.
Igualmente muito relevantes são as razões apresentadas pelas vítimas para não se terem queixado: o medo das retaliações, inclusive de ordem física, perpetradas pelo violador, e a falta de confiança no sistema jurídico, policial e judiciário, mais concretamente na sua capacidade para as proteger adequadamente e para punir justamente os violadores, ao invés do que muitas vezes se ouve dizer aos adversários da solução legal preconizada pela petição (violação como crime público). Apenas em terceiro lugar vem aquele que constitui o grande argumento dos opositores à proposta da petição: o receio da “revitimização” que a instauração e prossecução do procedimento criminal poderá representar.
Para não ir agora a posições mais extremas – existentes inclusive no mundo do Direito e dos Tribunais, e tendentes a compreender e até a “justificar” condutas de violação[4] – há quem se oponha à transformação deste ilícito em crime público precisamente sob os argumentos de que as mulheres hoje seriam emancipadas e autónomas e que esta solução seria, por um lado, paternalista e, por outro, causadora de novos danos e perturbações para a vítima (a “revitimização” ou vitimização secundária).
Mas este tipo de posições estão, mesmo que os seus e as suas defensoras tal não pretendam ou disso se não apercebam, profundamente erradas.
Desde logo porque a grande responsabilidade pelo estigma e até pela vergonha da vítima é da cultura machista e patriarcal, ainda hoje dominante, que tende não apenas a desculpabilizar os actos de violação, mormente a violação no casamento[5] ou em relações de proximidade, como também a culpabilizar a vítima, acusada de, pela forma como se vestiu ou se comportou, ter contribuído fortemente para que, coitado, o “desgraçado” do violador não conseguisse conter os seus “naturais instintos” e ainda a impor-lhe um tenebroso silêncio assente na posição machista e reaccionária de que (tal como, por exemplo, na violência doméstica, se está perante um acontecimento da vida privada da vítima, e lá deve permanecer, cabendo a esta apenas “comer e calar”, em linha com o papel que este tipo de concepções lhe reservam na sociedade e na família.
Como muito bem afirma a juíza conselheira, Dra. Clara Sottomayor, num artigo publicado em 2015,
(…) Invocar a «vergonha» sentida pelas vítimas para não tornar o crime público é usar a discriminação histórica das mulheres para perpetuar essa mesma discriminação. Fundamentar a natureza semipública do crime de violação na necessidade de proteger as mulheres contra a vitimização secundária provocada pelo processo-crime e contra a devassa da sua «vida privada», é esquecer que é obrigação do Estado consagrar medidas de proteção das vítimas de crimes violentos durante o processo penal, tais como apoio psicológico e jurídico, afastamento do agressor sempre que a vítima presta depoimento, proibição de perguntas discriminatórias nos interrogatórios, criação de um corpo de profissionais da psicologia e do direito para atender e apoiar as vítimas, formação especializada de juízes/as, advogados/as e procuradores/as ou polícias que recebem a queixa e investigam os factos.[6]
Convém ainda sublinhar que o crime de violação é um dos mais sórdidos atentados quer à integridade física e moral, quer à liberdade e auto-determinação sexual dos cidadãos e cidadãs, bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente consagrados e protegidos[7] e, por essa mesma razão, insusceptíveis de disposição ou transacção pelo próprio titular. Por isso, tal crime não é de todo uma questão “privada”, pelo que a sociedade no seu conjunto e o Estado têm não só o poder como o dever de intervir para afirmar claramente que tal tipo de condutas são de todo inaceitáveis e para punir adequadamente os seus autores.
Se aquilo que leva muitas vezes as vítimas a não apresentarem queixa é, por um lado, o (infelizmente e muitas vezes fundado) receio de retaliações por parte do violador e a falta de confiança em que o Estado e a sua Justiça as protejam e que punam adequadamente o(a) autor(a) do acto criminoso, e, por outro lado, o estigma social decorrente da cultura machista dominante (que prega e pratica a culpabilização, a contenção, o silenciamento e o descredibilizar das vítimas), então é pelo combate, sério e decidido, que devemos ir, e não pela continuação e perpetuação de um regime legal como o actual.
Acrescente-se ainda que, por todas as razões já indicadas e também pela gravidade e profundidade dos danos psicológicos e do stress pós-traumático de que uma vítima de violação sempre fica a padecer, esta na maior parte das vezes só consegue arranjar forças e condições bastante tempo após o ataque, e seguramente muito depois do curtíssimo prazo de seis meses de prescrição do direito de queixa.
E o resultado dramático de tudo isto é o reduzidíssimo número de queixas apresentadas e o elevadíssimo grau de impunidade de inúmeros violadores, e ainda a constatação – como sucedeu, por exemplo, com o tristemente célebre caso do violador de Telheiras – de que, mesmo em casos de condenação por um ou outro crime, afinal existiram dezenas de outros que acabaram por ficar impunes precisamente por as vítimas não se terem queixado dentro do referido prazo legal!?…
Se, por toda as razões apontadas, a consagração legal de violação como crime público – tal como defendido na petição – é uma imposição constitucional e, antes disso e acima disso, uma imposição civilizacional, as suas vantagens praticas são, também, inegáveis:
Em primeiro, serve para transmitir à sociedade um sinal claro quer de intransigente defesa dos direitos dos cidadãos e das cidadãs, quer da garantia da igualdade de género, entendidas como questões de interesse público e não da vida privada das vítimas.
Em segundo, cria condições para uma exigência maior na intervenção atempada das entidades e autoridades públicas e, sobretudo, na necessidade da adopção de medidas públicas de protecção e acompanhamento das vítimas.
E em terceiro, retira aos violadores a sensação de impunidade, actualmente generalizada, e sobretudo elimina-lhes a percepção e a expectactiva – que é hoje praticamente uma certeza – de que se ele conseguir constranger ou amedrontar a vítima durante seis meses, no dia seguinte estará livre de qualquer procedimento criminal, o que representa um efeito dissuasor ou preventivo de todo não desprezível.
Por outro lado, é muito reduzido ou mesmo praticamente nulo o risco de condenações ou sequer de perseguições penais injustas, já que permanecem absolutamente intocáveis os princípios da presunção de inocência de todo o arguido até trânsito em julgado da sentença condenatória e do in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu) na apreciação da prova. Além de que queixas comprovada e intencionamente falsas sempre podem fazer os respectivos autores responder pelo crime de denúncia caluniosa.
E, é claro, e convém não o esquecer, não será decerto possível impor à vítima que ela colabore com um processo com o qual ela não concorda, não por ter medo ou vergonha, mas por, em consciência, entender que ele não é correcto.
Deste modo, a consagração de um determinado, grave e odioso ilícito criminal como crime público, permitindo ao Estado perseguir e punir criminalmente os seus autores independentemente de a vítima se queixar ou não, constitui um imperativo constitucional e, mais do que isso, civilizacional, em particular quando se trata, como aqui, de crimes que lesam bens jurídicos e valores estruturantes de um Estado que se define como um Estado de Direito democrático, baseado na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, e para mais quando se sabe que as respectivas vítimas se encontram frequentemente constrangidas e limitadas, quer pela brutalidade do acto, quer por medo, por coação, por constrangimento económico ou por estigma social.
Por fim, é bom e é positivo que toda esta problemática seja ampla e adequadamente debatida. E sobretudo que se ouça a voz das vítimas. E que se apure – como eu creio que seguramente se apurará – se as razões que sustentam o objectivo da petição e da pretensão dos seus 106.700 subscritores são ou não correctas…
Provavelmente, ficarão de fora desse debate os que não querem realmente debater. Os que preferem, com uma beca, toga ou farda vestida, ou do alto de uma coluna de jornal ou de uma mesa televisiva de “comentadores”, verter os seus ódios e os seus ataques pessoais sobre aqueles que deles discordam e/ou continuar a defender barbaridades ultramontanas como as de que, agora, é tudo violação, que a diferença entre o “sim” e o “não” é muito ténue, de que isto levará a uma proliferação de queixas injustas, de que a petição é obra de feministas e fanáticas do politicamente correcto, ou – para retomar algumas tristemente célebres decisões judiciais – a violação pode ou não existir, ou não ser assim tão grave, porque ocorreu numa noite “com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua”[8] ou até porque “o facto de a ofendida, antes de abandonar o lugar onde ficou livre do arguido, ter anotado a matrícula do automóvel daquele, pela presença de espírito que revela, é pouco compatível com um grande abalo psicológico.”[9]
Mas, obviamente, não é a este nível rasteiro que o debate sobre um tema tão importante como o da violação se pode permitir descer… E é por isso que, reafirmando todos os argumentos atrás expostos, aqui defendo a natureza pública do crime de violação e apelo ao debate público desta relevante questão e à efectiva audição das vítimas.
António Garcia Pereira
[1] A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adoptada em Istambul em 11/5/2011, foi aprovada pela Resolução da A.R. nº 4/2013, de 21/1.
[2] Art.º 44.º, nº 4 da Concenção.
[3] Art.º 178.º, nº 3, do Código Penal.
[4] Ver, a este respeito, a indispensável obra de Isabel Ventura, Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violência sexual (2018) e os meus artigos “Quando os lobos julgam, a justiça uiva”, “Os Outubros Negros da Justiça Portuguesa”, “Como defender um agressor – os acórdãos do juiz Neto de Moura” e “Violência doméstica: o toque a finados da Justiça Portuguesa”.
[5] Que só foi criminalizada no Código Penal de 1982 e mesmo assim com consideráveis atenuantes.
[6] “Cumprir a Convenção de Istambul: A natureza pública ou semipública do crime de violação?”
[7] Art.º 25.º e 26.º da nossa Lei Fundamental.
[8] Veja-se o meu artigo “Quando os lobos julgam, a Justiça uiva”.
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