Porque é que a foto de um gato vale mais que um texto de reflexão?

Quem conhece minimamente as redes sociais, a começar pelo Facebook, sabe bem que a publicação de uma simples foto de um animal de companhia, como um gato ou um cão, de uma forma geral, suscita bem mais “gostos” e comentários do que um texto de séria análise e reflexão, seja ele político, económico ou social.

A que se deverá então semelhante fenómeno? Claro que para o mesmo se podem alinhar vários tipos de explicações, e algumas delas com inegável razoabilidade.

Desde logo, a falta de tempo e de disposição causada pelos infernais ritmos de vida e de trabalho a que muitos – mais ainda agora, em tempo de pandemia e de teletrabalho – estão sujeitos, empurrando-os para aproveitarem o pouco tempo disponível para lazer e entretenimento.

Também a enorme quantidade de informação (ou pseudo-informação) e a elevada velocidade de transmissão imposta pelas chamadas novas tecnologias da comunicação e informação (NTCI) constituem um factor objectivo de pressão para a superficialidade em desfavor da profundidade, para o instantâneo em prejuízo do duradouro, para o choque e a emoção do momento em detrimento da análise racional. Um dos campos onde essa pressão objectiva se faz mais sentir, e com consequências mais graves, é precisamente na Justiça, onde essa mesma lógica, se não nos ativermos ferreamente aos princípios, facilmente conduz, como tem conduzido – inclusive em nome da “liberdade de informação”, aliada às sempre cirúrgicas e sempre impunes violações do segredo de Justiça – a juízos precipitados, baseados nas aparências de (apenas) uma visão superficial e parcial dos factos, a julgamentos sumários e, não raras vezes, a sentenças decididas, proclamadas e executadas em praça pública, mas muitas vezes (e bastava uma única!) profundamente injustas.

Porém, creio sinceramente que é preciso ir ainda mais fundo para se alcançar a essência do problema, que é o que sobretudo importa, até pelas consequências políticas e sociais do mesmo. 

Dados, informações e conhecimento

Confundindo dados, verdadeiros ou falsos, com informações, e estas com conhecimento, este é o campo ideal para gestores e políticos “sintéticos” controlarem e dominarem massas de cidadãos, sejam eles membros de uma organização como uma empresa ou um país.

Os dados são representações simbólicas com a forma de números, letras ou símbolos, e que por isso mesmo podem ser armazenados, transportados e até transformados por máquinas como os computadores. A informação, por seu turno, consiste num conjunto de dados estruturados, organizados, processados e apresentados num determinado contexto, o que os faz aparecer como algo útil ou relevante para a pessoa que os procura ou a quem são disponibilizados. Já o conhecimento é bem mais do que isso, pois significa a consciência – adquirida através da percepção ou descoberta, da aprendizagem e da experiência – acerca de pessoas, locais, acontecimentos, ideias, questões, modos de realizar e executar as coisas.

Dito de uma forma simplificada, uma coisa é ter os dados acerca da distância, do tipo de estrada, da existência ou não de portagens na viagem entre o local A e o local B. Outra é dispor da informação acerca desses e de outros dados, incluindo o tipo de iluminação, natural ou artificial, a existência e largura das bermas, o número e o tipo de curvas e de entroncamentos. Mas outra completamente diferente é fazer previamente esse mesmo percurso e, através dessa experiência e da aprendizagem que com ela faça – mais ainda se acompanhado de outra ou outras pessoas que tenham também essa vivência e com quem se troquem impressões, reflexões e críticas –, passar a conhecê-lo de forma efectiva.

Ora, para o conhecimento são essenciais a linguagem – verdadeiro alicerce do nosso raciocínio e da nossa inteligência –, a memória e a Cultura, entendida esta como um corpus de conhecimentos anteriormente adquiridos e que nos ajudam a adquirir e a processar novos conhecimentos, a compreender o mundo que nos rodeia e a querer alterar o que, com a nossa reflexão crítica, achamos que nele está errado.

Daqui derivam duas circunstâncias, que historicamente bem conhecemos, mesmo que não tenhamos logo à partida consciência delas. Por um lado, temos o verdadeiro ódio que todos os ditadores de todos os matizes (mesmo de vestes democráticas) têm à Cultura[1] e a forma como um povo inculto e sem memória (designadamente das experiências históricas anteriores) é mais facilmente controlado, dominado e oprimido. Por outro, um imperfeito e incompleto domínio da língua materna – com base na qual formamos e desenvolvemos o nosso raciocínio lógico-dedutivo e exprimimos as nossas emoções e os nossos sentimentos – acabará, por isso mesmo, por determinar um verdadeiro défice cognitivo e racional, mesmo que ele seja disfarçado com a disponibilização do acesso a muitos dados.

Esta é, pois, uma questão muito séria, demasiado séria para ser ignorada ou desprezada, até porque ela não o é, de todo, pelos novos senhores do mundo.

Na verdade, as novas tecnologias – que foram e são, indiscutivelmente, um enorme progresso, mas também um gigantesco acelerador, do bom e do mau –, porque precisamente apropriadas por uma pequena minoria e colocadas ao serviço dos respectivos interesses[2] e não de toda a Humanidade, para além de possibilitarem os lucros verdadeiramente astronómicos de quem as detém, não permitiram (antes pelo contrário!) diminuir os tempos de trabalho e aumentar os tempos de repouso e de lazer dos trabalhadores ou aligeirar a penosidade do respectivo esforço, quer físico, quer intelectual, antes impondo como normais períodos de trabalho cada vez mais extensos, ritmos cada vez mais frenéticos e uma crescente diluição das fronteiras entre a vida profissional e a vida pessoal, familiar e social de quem trabalha[3].

E só isto já deveria constituir um ponto de séria reflexão: se agora, com todos os progressos tecnológicos, designadamente na área das NTCI, e o enorme aumento da produtividade do trabalho humano que eles propiciam, fazendo com que só em uma hora desse trabalho se produza actualmente 10, 50 ou até 100 vezes mais do que há um século atrás, por que razão não foi possível diminuir os tempos e os ritmos de trabalho e aumentar o número de empregos?

A desvalorização da língua materna e o papel do soundbite

Por outro lado, a desvalorização e degradação da língua materna e a sua progressiva substituição por uma simplista nova “linguagem” simbólico-formal são crescentemente ditadas por regras ditas técnicas (como a da imposição do número máximo de caracteres[4]) e por “modas” (tais como a da sobre-utilização de anglicismos[5], não raras vezes explicada pela necessidade de disfarçar certas realidades[6] ou de conferir um verniz pretensamente científico a outras) ou códigos de conduta corporativa, como a não aceitação de textos considerados demasiado longos[7]. Assim se vai impondo a lógica de que a abordagem intelectualmente séria do mais complexo dos problemas não apenas pode como tem que ser feita em meia dúzia de linhas ou, melhor ainda (pois que dispensa o trabalho de ler), em duas ou três frases, porque o soundbite é que conta!… 

E é desta forma paulatina que amorfos consumidores de telas (sejam elas com palavras, poucas, ou com sons e imagens) são transformados em seres crescentemente incapazes de reflectir sobre o mundo que os cerca, cada vez mais conformados com a sua real servidão e não raras vezes confundindo a verdadeira liberdade com a mera possibilidade de contactar os outros pelas novas plataformas de comunicação, de efectuar compras online, de descarregar filmes ou músicas ou de usar, aliás com grande destreza, alguns dispositivos ou aplicativos digitais.

Um terreno fértil para súbditos sonâmbulos

Com o gigantesco número dos dados diariamente vertidos na internet, com a natureza claramente ideológica daquilo que os omnipotentes algoritmos – altamente tecnológicos e por isso praticamente indiscutíveis e indiscutidos – escolhem para passar nas redes sociais[8], com a crescente degradação da língua materna[9], com a imposição do facilitismo, do imediatismo, do “grito da moda”, do pensamento dominante (por mais reaccionário que ele seja) e da informação dita técnica (por mais anti-científica que ela se revele[10]), está criado o terreno fértil para súbditos sonâmbulos e para dirigentes sintéticos, cujo “pensamento” se reduz a uns quantos chavões e a outros tantos tweets de meia dúzia de linhas. E fértil também para as “doutrinas do choque”, criando a paralisia e o terror pela repetição, durante horas e dias a fio, de notícias sobre algo terrível, como uma catástrofe natural, um grave acidente ou uma pandemia mundial, e fazendo com que as pessoas sejam levadas a aceitar, acriticamente e em troca de um mínimo de prometida segurança, o sacrifício dos seus direitos e liberdades mais essenciais.

Fértil enfim para a arrogante desvalorização da vertente social dos seres humanos, para o endeusamento absoluto e acrítico das tecnologias à distância (que, aliás, permitem aos Estado e Governos pouparem muito dinheiro em instalações, e sobretudo em professores) no ensino e na educação, para a substituição da conversa directamente falada, com sentimentos e com emoções, pela troca de mensagens ou imagens – inclusive à mesma mesa! – através do Facebook ou do Instagram, por exemplo…

Recentemente, o neurocientista francês Michel Desmurget, actual director de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde Pública e que já passou também pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), publicou um livro (que passou despercebido em Portugal) com o sugestivo e provocatório título A Fábrica de Cretinos Digitais[11], onde analisa, com base em dados muito concretos, as consequências altamente negativas que a excessiva exposição aos dispositivos digitais vem causando ao desenvolvimento neurológico das crianças e dos jovens.

E numa entrevista – de que também ninguém falou em Portugal… – dada à BBC News Mundo (serviço noticioso da BBC em língua espanhola) afirmou mesmo que essa demasiado precoce e excessiva “exposição às telas” tem estas consequências:

Os principais alicerces da nossa inteligência são afectados: linguagem, concentração, memória, cultura (…) As causas também são claramente identificadas: diminuição da qualidade e da quantidade das interacções familiares, essenciais para o desenvolvimento da linguagem e da parte emocional; diminuição do tempo dedicado a outras actividades mais enriquecedoras (música, arte, leitura, etc); perturbação do sono, que é quantitativamente reduzido e qualitativamente degradado; superestimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração e de aprendizagem e a impulsividade; sub-estimulação intelectual que impede o cérebro de desenvolver todo o seu potencial, e o sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia a maturação cerebral.

E não deixando de salientar muito claramente que a chamada revolução digital não é de todo uma coisa ruim, que os alunos devem obviamente aprender competências e ferramentas de informática e que a tecnologia digital é uma relevante ferramenta no arsenal pedagógico dos professores, Michel Desmurget não deixa, porém, de salientar aquilo que o fenómeno que ele designa de “orgia digital” irá também produzir:

(…) um aumento das desigualdades sociais e uma divisão progressiva entre uma minoria de crianças preservadas desta “orgia digital” – os chamados alfas do livro de Huxley[12] – que perseguirão, através da cultura e da linguagem, todas as ferramentas necessárias para pensar e reflectir sobre o mundo, e uma maioria de crianças com ferramentas cognitivas e culturais limitadas – os chamados “gamas” na mesma obra –, incapazes de compreender o mundo e de agirem como cidadãos cultos. Os alfas frequentarão escolas particulares caras com professores humanos “reais”. Já os “gamas” irão para escolas públicas virtuais com suporte humano limitado, onde são alimentados com uma pseudo-linguagem semelhante à “movilingua” de George Orwell[13] e aprenderão as habilidades básicas de técnicos de médio ou baixo-nível (…) Um mundo triste em que, como disse o sociólogo Neil Postman[14], eles vão-se divertir até à morte. Um mundo no qual, através do acesso constante e debilitante ao entretenimento, eles aprenderão a amar a sua servidão.[15]

Compreende-se agora melhor por que razão se procura praticar e impor a ideia da inaceitabilidade de e-mails ou textos com mais de um parágrafo ou porque se torna simplesmente mais fácil, mais cómodo e, logo, mais apetecível, colocar um “gosto” na fotografia do gato ou do cão do que comentar um daqueles textos.

Mesmo que se possa não concordar, pelo menos integralmente, com tudo o que Michel Desmurget sustenta, duas incontornáveis questões devem ser colocadas:

Porque é que em Portugal não se falou nem se fala destas questões, e muito menos se conheceram o livro e a entrevista deste autor?

Serem “amantes da servidão” é o que podemos e devemos desejar que sejam os cidadãos, e sobretudo os cidadãos de amanhã?…

António Garcia Pereira


[1] Ficou tristemente célebre a frase “Quando oiço falar de cultura saco logo da pistola”, erroneamente atribuída quer a Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do regime nazi, quer a Herman Göring, chefe da Gestapo, quer ainda a Heinrich Himmler, dirigente máximo das SS. Na verdade, trata-se da adaptação de uma frase da 1.ª cena do 1.º acto da peça de teatro Schlageter, uma homenagem a Hitler escrita pelo autor nazi Hanns Jobst e levada à cena em 20/04/33, no 44.º aniversário do Führer: “Assim que oiço a palavra cultura, liberto logo a patilha de segurança da minha Browning”.

[2] Não é por acaso que as maiores empresas do mundo não são fabricantes de bens, mas antes os gigantes multinacionais das plataformas digitais e da recolha, armazenamento, tratamento e difusão de dados, da Google ao Facebook, passando pela Apple, pela Microsoft e pela Amazon.

[3] Um exemplo, já amplamente conhecido, é o da grande extensão do teletrabalho e das respectivas consequências: o aumento dos tempos de trabalho, o acréscimo dos encargos com a própria prestação de actividade e o aumento das consequências físicas e psicológicas para a saúde dos trabalhadores.

[4] Como sucede com os 140 caracteres de cada tweet.

[5] “Outsourcing” em vez de “exteriorização”, “budget” em vez de “orçamento”; “fringe benefits” em vez de “remunerações complementares”, “deadline” em vez de “prazo-limite”, “business plan” em vez de “plano de negócio”, “e-learning” em vez de “ensino à distância”, “performance” em vez de “desempenho”, “ranking” em vez de “classificação”, “print” em vez de “impressão”, “mainstream” em vez de “corrente dominante”, “back-up” em vez de “cópia de segurança”, etc., etc., etc.

[6] Como “downsizing” em vez de “despedimentos” ou “convergência de remunerações” em vez de “abaixamento de salários”, como se usou aquando das reformas laborais do tempo da tróica.

[7] É o caso dos gestores e dirigentes que fazem gala em anunciar aos seus subordinados que não lêem e-mails com mais de um parágrafo…

[8] O famigerado “feed de notícias” do Facebook é disso um esclarecedor exemplo e o escândalo da Cambridge Analytica, com a abusiva utilização de dados pessoais de cerca de 90 milhões de cidadãos de todo o mundo, aí está para o atestar.

[9] Para isso contribuindo também verdadeiras atrocidades anti-culturais como a do Acordo Ortográfico de 1990, que raramente é analisado também sob esta perspectiva.

[10] A gigante Google, entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, despediu Timnit Gebru, uma das principais investigadoras negras de Sillicon Valley e Margaret Mitchell, uma das mais relevantes investigadoras do seu departamento de “Ética em Inteligência Artificial” pelo pecado de terem denunciado a descriminação, em função da raça e do sexo, praticada pela empresa. Fácil é, pois, de compreender que “ética” é afinal afirmada e praticada com semelhantes despedimentos.

[11] The Digital Cretin Factory, já traduzido também para francês e espanhol.

[12] Aldous Leonard Huxley, autor do famoso romance futurista Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, e cuja acção se passa em Londres, no ano de 2540 (em 632.DF, ou seja, “Depois de Ford”, na terminologia do autor).

[13] George Orwell escreveu o romance 1984, publicado em 1949, denunciando uma sociedade totalitária controlada e dirigida por um sinistro personagem denominado “Big Brother”. Juntamente com o livro de Huxley e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, constituem uma notável trilogia de obras literárias perspectivando e denunciando sociedades totalitárias.

[14] Neil Postman, falecido em 2003, foi um prestigiado Professor, Director do Departamento de Cultura e Comunicação da Universidade de Nova Iorque, de cuja obra se destacam o seu primeiro êxito (cujo título é significativo), Teaching as Subsersive Activity (O ensino como uma actividade subversiva), Amusing Ourselves to Death (Divertindo-nos até à morte), que relaciona a evolução dos meios de comunicação social com a decadência da cultura) e Technopoly the Surrender of Culture to Technology (Tecnopólio – A rendição da cultura à tecnologia), onde sustenta que esta última pode ser, ao mesmo tempo, um bem e um mal.

[15] Hoje em dia, em particular entre nós, e até em algumas Universidades, qualquer questão ou reflexão crítica que seja suscitada acerca destas matérias é de imediato atacada, senão mesmo abafada, sob o discurso dominante de que quem as quer debater não passará de um “velho do Restelo”, de que a tecnologia é que é o futuro e a Cultura e as Ciências Sociais algo de ultrapassado e inútil e de que este seria “o novo normal” com que todos nos deveríamos conformar, o mais silenciosa e rapidamente possível! “Divertindo-nos até à morte”, pois!…

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