Porque escrevo?

O ato de escrever contém em si uma dupla ambiguidade: permite a ilusão de viver e a ilusão de não morrer. Ainda assim, ciente da fantasia, um ente acorda dentro de nós e recita-nos, uma a uma, as palavras. Transcrevemo-las como se fossem coisas reais por fora e abstrações convencionadas por dentro. Mas o enigma não fica por aqui. Outro mistério encerra esta prática: Para quem escreves? Para ti? Para eles? Para o infinito, consumando assim a tua intenção imortal?

A mente não se cala: fala-nos ininterruptamente. Podes ordená-la, colocá-la ao serviço de uma função, de um objetivo vital e concreto. Porém, ela ficará exausta e reduzida a esse altruísmo, utilidade social, a esse molde definido por outrem para ela. Por isso, pede ao corpo para parar, ir buscar um papel, uma caneta, acender um cigarro e escrever sem utilidade, nem público, num daqueles pequenos atos burgueses concedidos à plebe iletrada que nunca frequentou estudos clássicos, nem nada. Quer apenas recrear-se, confessar-se, transcender-se como um operário que passa todo o sábado na pesca mesmo sabendo que não apanhará nada. A mente quer voltar a inventar histórias, como aquelas que imaginou quando na infância colocamos os nossos brinquedos a conviver entre si. Ela quer outra vez brincar ao faz-de-conta, que é talvez o que fazemos a vida toda em negação.

O escritor – e não importa a sua qualidade e reconhecimento público – apenas assume perante si e os demais: “Agora é a brincar”, “Agora é a sonhar”, “Agora é sem limites”, “Agora é que pura e desinibida a minha voz falará”, “Agora é que as vozes em conflito que eu sou ganharão voz: os muitos serão um e vice-versa”.

Às vezes, pergunto: Como é que escreve a minha gata? Os peixinhos do meu aquário? Como escreviam as pessoas antes da escrita? Porque me parece tremendamente injusto que alguém possa viver com o seu pensamento agrilhoado apenas à mecânica arte da sobrevivência.  

Luís Palma Gomes

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