Porque estão em luta os Advogados portugueses?

Numa das mais concorridas Assembleias Gerais da história da sua Ordem, a 6/6, mais de 2.000 Advogados manifestaram a sua profunda indignação perante o projecto governamental de alteração dos Estatutos da Ordem e mandataram a sua Bastonária e o Conselho-Geral para adoptarem todo um conjunto de formas de luta, que podem chegar, inclusive, e de forma inédita, à paralisação dos Tribunais.

A demagogia dos comentadores ao serviço do Governo

“Comentadores” e “especialistas” afectos ao Governo trataram logo de desvalorizar essa luta dos Advogados, procurando apresentá-la como uma qualquer reacção mesquinhamente “corporativa” de quem não quereria “perder privilégios”. Recentemente, o jurisconsulto, e não Advogado, Professor Vital Moreira chegou mesmo ao ponto de comparar esta luta à dos taxistas em defesa da sua profissão. Trata-se, porém e com o devido respeito pelos motoristas de táxi, de pura e dura manipulação, já que aquilo que está em causa no combate dos Advogados e da sua Ordem é muito mais, e bem mais importante, do que uma mera postura de defesa de interesses sócio-profissionais e antes se prende com os próprios alicerces do Estado de Direito. E é mesmo absolutamente lastimável que algumas pessoas com qualificados conhecimentos e especiais responsabilidades públicas, como, por exemplo, dirigentes políticos, juízes e, como se vê, professores universitários, apenas compreendam a vital importância de termos uma advocacia verdadeiramente livre e independente de todos os poderes, e desde logo dos poderes governamentais, quando, por qualquer motivo, são constituídos arguidos ou se veem envolvidos num processo judicial ou num procedimento disciplinar!…

A razão de ser das Ordens Profissionais

Importa desde logo sublinhar que a existência de Ordens Profissionais se justifica, e desde há mais de um século, precisamente por elas respeitarem a profissões em cujo exercício não apenas estão em causa interesses públicos de especial relevo, como também relativamente às quais importa garantir que não seja o próprio Estado a regulá-las e controlá-las directamente, antes se impondo salvaguardar a respectiva autonomia e independência, em particular no assegurar do regime do acesso a tais profissões, na salvaguarda do exclusivo legal da prática dos actos próprios das mesmas, do cumprimento de regras e princípios, quer de ordem técnica, quer de ordem deontológica, particularmente qualificados e especializados, e, enfim, do respectivo regime e procedimento disciplinar contra todos aqueles que desrespeitem tais regras e princípios. 

É que todos decerto compreendemos o que poderia suceder, e o que certamente sucederá acaso esta aberrante alteração legislativa se consumar, se forem o Estado e os diversos interesses privados por ele viabilizados (designadamente em nome da “liberdade económica” e da “defesa da concorrência”) a decidir – no caso dos Advogados e dos Médicos, por exemplo – aquilo que, perante situações concretas de grave ameaça ou até já de grave atentado aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (em particular dos mais vulneráveis, como os pobres, os doentes ou os velhos), pode e deve, ou não, ser feito… 

Para os mais cépticos, bastará recordar aquilo que foi dito pelos responsáveis governamentais quando, em plena pandemia, as Ordens dos Advogados e dos Médicos tiveram a iniciativa e a coragem – que, aliás, são, não meros direitos ou poderes, mas sim suas estritas obrigações estatutárias – de denunciar a vergonhosa situação dos cidadãos mais velhos internados em lares (como os de Matosinhos e de Reguengos de Monsaraz), ali abandonados à sua sorte sem nenhuma intervenção das entidades públicas, e assim condenados à morte: o Primeiro-Ministro foi então, em Agosto de 2020, ao ponto de declarar, em entrevista ao jornal Expresso, que “as Ordens Profissionais não existem para fiscalizar o Estado”, como se não fosse (também) isso que precisamente elas não só podem como devem fazer! 

Para os mais esquecidos, impõe-se de igual modo relembrar o papel absolutamente memorável e insubstituível que os Advogados e a sua Ordem, com Bastonários como Pedro Pita, Adelino da Palma Carlos e Ângelo de Almeida Ribeiro, assumiram em situações extremas de violações de Direitos Humanos, como, por exemplo, na defesa dos presos políticos perante a Pide e os fantoches Tribunais Plenários, onde Advogados houve que, em plena sala de audiências, foram barbaramente agredidos pelos esbirros da polícia política (com sucedeu com o Dr. Cunha Leal) e até presos (caso do Dr. Manuel João da Palma Carlos), e tantos, tantos outros (inclusive aqueles que, depois do 25 de Abril, fizeram parte do mesmo partido de António Costa, tais como Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio, José Magalhães Godinho e Gustavo Soromenho) não hesitaram em assegurar a difícil tarefa da defesa dos lutadores pela Liberdade e pela Democracia! 

Não tenhamos dúvidas de que, se fossem os órgãos do Estado a supervisionar e a controlar a actividade dos Advogados e dos seus representantes, e a ditar-lhes o que poderiam ou não dizer ou fazer, jamais essas posições poderiam ter sido adoptadas, ou pelo menos assumido a força e o apoio que elas justamente tiveram!

O primeiro ataque à autonomia e independência das Ordens

A maioria da Assembleia da República já havia aprovado um diploma legal – o Decreto nº 30/XV, que depois o Tribunal Constitucional, numa decisão manifestamente infeliz (Acórdão nº 60/2013, de 27/02/23) e ainda que com votos de vencido, se escusou a declarar inconstitucional – que, a pretexto de que “reforça a salvaguarda do interesse público, autonomia e independência da regulação e promoção do acesso a actividades profissionais” (sic!?), veio estabelecer, entre outros pontos, que deixariam de pertencer à Ordem dos Advogados a avaliação final do estágio de advocacia e o poder disciplinar (por tal diploma entregues, respectivamente, a um “júri independente, que deve integrar personalidades de reconhecido mérito, que não sejam membros” da Ordem e a “um órgão disciplinar” com o mesmo tipo de composição), ao mesmo tempo que criou um “Provedor dos destinatários dos serviços” com competência para analisar as queixas contra Advogados, retirando-a, deste modo, aos actuais órgãos jurisdicionais da Ordem, ou seja, Conselhos de Deontologia e Conselho Superior.

Como se tudo isto já não bastasse, o diploma aprovado pelo Parlamento crava mais um prego no caixão da autonomia e independência (que, todavia, diz hipocritamente defender…) das Ordens Profissionais ao criar um denominado “Órgão de Supervisão”, composto em apenas 40% por membros da Ordem e – pasme-se! – outros 40% por “oriundos dos estabelecimentos de ensino superior que habilitem academicamente o acesso à profissão”, sendo os restantes 20% cooptados entre “personalidades de reconhecido mérito (…), não inscritos na associação profissional”.

Temos assim que a supervisão, leia-se, o controlo, inclusive “da legalidade e conformidade estatutária e regulamentar, de toda a actividade exercida pelos órgãos” da Ordem dos Advogados deixaria de estar atribuído exclusivamente ao controlo jurisdicional dos Tribunais para passar a ser confiado a um órgão composto maioritariamente por Professores das Faculdades de Direito que não sejam Advogados!? Alguém duvida do que um órgão desses, composto maioritariamente por personagens como Vital Moreira, faria – e seguramente fará, se esse diploma for adiante! – à Ordem que eles tanto odeiam?

O ataque directo à Ordem dos Advogados

Consumado este verdadeiro aniquilamento da autonomia e independência das Ordens Profissionais em geral, eis que o Governo passou ao ataque directo à Ordem dos Advogados, em termos tais que fazem o velho Estatuto Judiciário dos tempos do Fascismo parecer algo de “suave” e de minimamente respeitador da advocacia. 

Com efeito, no projecto do novo Estatuto da Ordem – sobre cuja versão actual o Executivo terá provocatoriamente dado à Ordem dos Advogados um prazo de menos de 48 horas úteis para emitir o seu Parecer!… –, e indo ao encontro dos cada vez menos disfarçados desejos e interesses das grandes multinacionais sociedades multidisciplinares, em particular da auditoria e da consultadoria, bem como das grandes agências imobiliárias, esvazia-se o núcleo essencial do conceito de “acto próprio” da advocacia e torna-se “legal” muita da actual procuradoria ilícita, passando a permitir não só o pleno funcionamento das ditas sociedades multidisciplinares como também que, sob a aparência (e o logro) da sua simplicidade, uma série de actos próprios do exercício da consultadoria e mandato jurídicos passem a poder ser exercidos por não Advogados, tais como funcionários de autarquias ou agentes imobiliários! Não se trata de nenhum exagero, porquanto esta lei celerada confere competência para a prática desses actos próprios de Advogados, não a pessoas individuais, mas sim às próprias organizações, as quais poderão deste modo indicar quem bem entendam para tal efeito, do jardineiro ao contabilista…

Tudo isto é, evidentemente, “vendido” à opinião pública como um conjunto de medidas favoráveis ao cidadão comum, combatendo “vícios” corporativos e tornando mais fácil e mais barato o acesso ao Direito, mas tal não passa de uma redonda falsidade. Por um lado, porque todos sabemos como “o barato sai caro” e quantos e quão graves problemas cria a circunstância de o cidadão não ter sido desde o início devidamente aconselhado e acompanhado por quem conhece não apenas o Direito legislado, mas também aquilo que as escolas sociológicas do Direito chamam de “Direito vivo” (ou seja, o modo como ele funciona na prática, e como é habitualmente interpretado e aplicado nos Tribunais). Depois, porque esses outros profissionais e organizações nem estão sujeitos às (muito correctamente) apertadas regras do segredo profissional dos Advogados – autêntica “pedra de toque” da actividade destes e de defesa dos direitos dos cidadãos –, nem têm obrigação legal de possuir um qualquer seguro de responsabilidade civil (que os Advogados são obrigados a ter no valor mínimo de 150.000€) pelos danos causados por erros eventualmente cometidos na sua actividade, com todas as gravíssimas consequências daí decorrentes para os próprios cidadãos e suas organizações.

A verdadeira razão do assalto à Ordem dos Advogados: 

privatizar e destruir a Justiça e enfraquecer os direitos dos cidadãos!

A finalidade verdadeiramente visada com todas estas medidas é, afinal, sempre a mesma e que, aliás, ao longo da História, todos os poderes anti-democráticos sempre tiveram em mente: desarmar e até aniquilar de vez esse “empecilho” que são Ordens Profissionais activas, diligentes e firmes na defesa do interesse público e dos direitos dos cidadãos. E em especial, dentro das Ordens, quebrar e destruir a Ordem dos Advogados, a qual, recorde-se, tem por primeira das suas atribuições legais [art.º 3º, al. a), do seu Estatuto] precisamente “Defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da Justiça”. 

E, prosseguindo uma já velha tendência e sempre com o mesmo discurso manipulatório da maior facilidade e do menor custo para os cidadãos, ao mesmo tempo que vai mantendo sempre custas judiciais astronómicas (tornando assim verdadeiramente inacessível para a esmagadora maioria dos cidadãos a ida a Tribunal para aí defenderem os seus direitos), trata-se também de retirar os Advogados da Justiça, dos Tribunais e dos processos (como já hoje sucede com a não obrigatoriedade de constituição de Advogado em diversas formas ou fases processuais), tornando mais “fácil” (sem sujeitos processuais incómodos, que alegam, reclamam e recorrem, como os Advogados…) a produção de decisões e a melhoria das estatísticas oficiais das pendências judiciais. 

De igual modo se persiste em “privatizar a Justiça”, por exemplo, entregando as execuções ao livre campear de verdadeiras associações de malfeitores, que coagem e até espancam devedores e/ou não entregam aos credores o que receberam dos mesmos devedores, que deste modo se veem obrigados a pagar duas e três vezes, tudo isto num cenário digno do Quarto Mundo. Ou multiplicando as chamadas “medidas alternativas de resolução de conflitos”, como a mediação e sobretudo a arbitragem, transformada, em definitivo, num autêntico “negócio da China” para as grandes Sociedades.

É precisamente assim e por todas estas formas que o Estado trata de diminuir não apenas os custos, como também as suas próprias responsabilidades no asseguramento daquele que é, afinal, um cada vez mais esquecido e desprezado, mas nem por isso menos fundamental, direito dos cidadãos e uma das tarefas essenciais do mesmo Estado – a Justiça! E para conseguir impor este caminho torna-se muito útil, para não dizer verdadeiramente indispensável, “domesticar” os Advogados e expropriar a autonomia e independência da sua Ordem.

E é, pois, ainda e uma vez mais combatendo esta enorme perversão anti-democrática e em defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, que os Advogados portugueses se estão agora, mais que justamente, a erguer em luta!

Não se deixem enganar, pois. Mais do que por nós, Advogados, esta luta é por todos os cidadãos!

António Garcia Pereira

3 comentários a “Porque estão em luta os Advogados portugueses?”

  1. Carlos Vargas diz:

    Muito bem, António ! Claro e firme, como sempre.

  2. João André da Silva diz:

    Quem compra guerras com os Advogados, deve preparar-se bem para elas!
    Caso para dizer que é “reacção” não passará!
    Que Justiça poderá haver sem os Advogados?

  3. Sérgio Passos diz:

    Muito bem Caro Colega Dr. Garcia Pereira. Eloquente, assertivo e objetivo. Bem haja. Os meus cordiais cumprimentos. Sérgio Passos.

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