Nestes primeiros alvores de Setembro, em que os supermercados anunciam grandes promoções de “regresso às aulas”, fomos agora brindados com a maior das campanhas publicitárias promocionais que ofusca todas as outras: o regresso a casa do ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Sem pulseira eletrónica, porque não a aceitaria, José Sócrates passa a estar detido em casa com vigilância policial à porta e ingressa no reino dos quase-cidadãos. Amputado na sua liberdade de movimentos, com visitas recenseadas e escrutinadas, a alteração da medida de coação aplicada a José Sócrates, neste momento, pretende no essencial, trazer a detenção do ex-primeiro ministro para o cerne da campanha eleitoral. É a minha opinião.
Poderá dizer-se que esta afirmação é abusiva, já que a Justiça se limita a cumprir os seus calendários litúrgicos, sem paixões e sem estados de alma. Como se fosse possível ignorar que a Justiça é feita por homens, finitos, limitados, e tão sujeitos ao erro, a enviesamentos de avaliação, a amores e ódios como quaisquer outros. Contudo, todo o curso do enredo do processo judicial que tem envolvido José Sócrates, tem sido a prova mais que óbvia que os atos processuais têm coincidido com notável precisão com variados acontecimentos marcantes do cenário político em Portugal, de forma que tal cenário acaba por ser influenciado pelas próprias decisões judiciais. Considerar que tais coincidências têm sido fruto do acaso ou que relevam de insondáveis aleatórios astrológicos é o mesmo que considerar que a Justiça navega ao ritmo da tômbola que decide semanalmente a chave do Euromilhões.
E a existência de influências da Justiça no cenário político não poderia nunca deixar de existir, já que, no caso em apreço, se trata da detenção de um ex-primeiro-ministro, supostamente indiciado de crimes cometidos no exercício das suas funções. Não se trata, pois, de julgar um vulgar cidadão, mas sim de julgar alguém cujos delitos teriam sido perpetrados na condução do mais alto cargo de decisão do Estado. Logo, dizer que se deve deixar à política o que é da política e à Justiça o que é da Justiça, só pode ser um chavão que pretende evitar o debate e a reflexão, quer sobre a política, quer sobre a Justiça, não retirando daí, nem uma nem outra, qualquer benefício. Importa pois, avançar algumas reflexões sobre este tema.
Os órgãos de decisão do Estado são órgãos coletivos. As funções executivas são colegiais. O Primeiro-Ministro não decide sozinho nem os diplomas lhe são levados a despacho mas sim ao Conselho de Ministro que os aprova, os torna públicos, e lhes promove a execução. Logo, sendo a responsabilidade pela aprovação dos diplomas, colegial, poderá, em caso de ter havido ato ilícito, haver uma condenação individual da pessoa que preside ao órgão decisor, só pelo simples facto de a ele presidir? Ou seja, Sócrates poderá ser acusado, enquanto indivíduo, por atos que, supostamente, foram subscritos por um órgão que é de natureza coletiva? E em caso de resposta afirmativa, por que razão deverá ser responsabilizado o Primeiro-ministro? Porque não o Ministro ou Secretário de Estado da pasta tuteladora? No limite, porque não todo o Estado?
Esta questão está ainda hoje longe de ter uma resposta unânime entre os teóricos do Direito e durante séculos originou debates e reflexões contraditórias. Nos países cujo sistema de justiça é de inspiração romano-germânica, vigora o princípio societas delinquere non potest, segundo o qual, é inadmissível a punibilidade penal dos entes coletivos, aplicando-se-lhes somente a punibilidade administrativa ou civil. Em oposição, nos países anglo-saxónicos e naqueles que receberam as suas influências, vigora o princípio da commonlaw, que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Em qualquer dos casos, a responsabilização pessoal do cidadão que integra o órgão coletivo só pode tornar-se efetiva, e sujeita à esfera do direito penal, desde que possa ser produzida prova cabal que individualize o ilícito na atuação própria e individual do mesmo cidadão e não na ação que possa ter sido empreendida pelo órgão coletivo que integra ou que tutela.
Isto para dizer que existe também alguma hipocrisia ou temor quando muitos juristas optam por não se pronunciar em concreto sobre o caso Sócrates, alegando não ter conhecimento exato do processo por este se encontrar em segredo de justiça. Seja o que for que a investigação tenha apurado, a produção de acusação defrontar-se-á sempre com a dificuldade de isolar os hipotéticos ilícitos de Sócrates da atuação dos órgãos do Estado em nome dos quais terão sido praticados, configurando o crime de corrupção do qual alegadamente estará indiciado. Não sendo produzida prova em juízo da referida separação, dificilmente a acusação poderá obter uma condenação, e isto independentemente de Sócrates ter ou não cometido qualquer ilicitude.
Sendo este encadeado lógico-jurídico conhecido, as mentes de boa-fé persistem em não querer acreditar que a Justiça não tenha prova mais que fundamentada que irá apresentar no momento certo, implicando tal apresentação a uma condenação inapelável. Tal convicção tem sido construída através de factos vários que a comunicação social tem vindo a relatar como fazendo parte do processo e aos quais consegue aceder por secreta inspiração divina.
Ora, é exatamente neste ponto que o processo Sócrates é até ao momento um caso político, muito antes de ser – se é que alguma vez chegará a ser –, um caso de justiça. Sócrates pode não ser um preso político, no sentido de estar detido por delito de opinião, mas a sua detenção e a exploração simbólica e comunicacional da mesma é eminentemente um caso político, na medida em que prender um ex-primeiro ministro por atos supostamente cometidos no exercício das suas funções questiona o fulcro mais íntimo do Estado de Direito. Que toda a classe política queira ignorar isto, debitando apenas simplismos sobre a separação de poderes, deveria preocupar-nos. É como se a venalidade no topo das mais altas magistraturas do Estado fosse uma banalidade adquirida em relação à qual nada há dizer. Como se fosse possível acusar Sócrates por ilícitos cometidos nessas funções sem se colocar em causa toda a estrutura de poder do Estado, a forma com esta se reproduz, alterna e se tem alterado, mas sempre gerada à volta dos partidos do chamado arco da governação.
O confronto de ideias políticas na pré-campanha eleitoral tem sido mais que confrangedor. Têm sido debatidas minudências e episódios de telenovela. Tem-se discutido tudo, menos aquilo que interessaria mais ao País e aos seus cidadãos: o seu futuro no imediato e no médio prazo. A coligação PAF não apresenta qualquer ideia sobre o futuro e limita-se a criticar o passado longínquo de há quatro anos e aquilo que tem para oferecer é mais do mesmo. O PS não consegue desmascarar a narrativa da estabilidade governativa e de que o país está melhor. À esquerda os defensores da renegociação da dívida e da discussão sobre a eventual saída do Euro e sobre a nossa presença na Europa – as questões sérias que importaria debater em profundidade –, não podem almejar ter o lastro eleitoral suficiente que lhes permita ser governo.
É neste contexto que interessa à coligação PAF criar todos as manobras de diversão e mais algumas que ocupem o espaço noticioso, que entretenham os cidadãos, que os distraiam dos reais problemas do país, e que os impeçam de refletir e questionar a governação ébria e inapta que foi levada a cabo durante a legislatura cessante. Para tal tem toda a comunicação social a seus pés. O espírito crítico dos jornalistas subjugado, o espaço do comentário político monopolizado a seu favor, as redes sociais infiltradas de boys e de candidatos a boys.Tudo para que a realidade da devastação que criaram pelo país fora não venha ao de cima sendo visível em toda a crueldade da sua nudez. Tudo para que a oposição não consiga apresentar as suas propostas de alternativa governativa e possa convencer o eleitorado de que o futuro dos seus filhos e netos não tem que ser necessariamente a emigração, o desemprego e a miséria.
E, com este programazinho político como projeto, nada melhor para a coligação PAF do que trazer de novo o caso Sócrates para o centro da campanha eleitoral. O inefável e esganiçado Paulo Rangel deu o pontapé de saída proferindo as declarações bombásticas que conhecemos, e serviu os aperitivos. A Justiça, serve agora o prato principal.
Os tabloides agradeceram logo. O Correio da Manhã exultou. Octávio Ribeiro, diretor do tabloide, de imediato foi recompensado pelos seus bons serviços por Passos Coelho, que lhe concedeu uma entrevista que mais parecia um folhetim reles com guião e tudo, em que o entrevistador, recorrendo a cábula, se limitou a debitar perguntas previamente combinadas para que a encenação do país melhor pudesse ser levada à cena sem falhas e em tons de laranja e azul. É que Sócrates vende e o Correio da Manhã, sendo o mais anti Sócrates é o que mais vende. Um caso nítido do espírito empreendedor que a coligação tanto preza e aconselha aos jovens e menos jovens.
Por muitas voltas que se deem, por muitas elucubrações que se gizem, continua sem se perceber a razão pela qual Sócrates não foi há três meses para casa, vigiado com polícia à porta, depois de ter recusado a pulseira eletrónica, tal como agora foi compelido a ir. Se alguém me conseguir explicar como se pode perturbar um inquérito – o motivo que o procurador invoca para manter Sócrates em prisão preventiva –, com um polícia à porta, não se podendo efetuar tal perturbação se a vigilância for eletrónica e não policial, eu aconselho que esse alguém se candidate a prémio Nobel da Física ou, na pior hipótese, da literatura. Assim sendo, só pode haver uma explicação verosímil: como nos folhetins o enredo não pode ser servido de uma vez só, devendo sim ser servido em pequenas doses para cativar a atenção e a curiosidade do espetador ou do leitor. Mandar Sócrates para casa há três meses seria desbaratar, sem qualquer utilidade, um episódio que bem poderia ser usado com maior utilidade noutro momento do tempo político, tal como veio a acontecer. É que, há três meses, a recusa de Sócrates da pulseira eletrónica, já cumpria suficientemente os propósitos da coligação de inquinar o espaço mediático e prejudicar o debate político e as críticas à sua governação.
Hoje, o nº 33 da rua Abade Faria, a porta que dá acesso à morada de Sócrates, está sob um escrutínio mórbido. Os jornalistas montaram tenda e mais parecem uma tribo de índios, sendo os sinais de fumo substituídos pela vibração dos telemóveis. O que Sócrates come, o que Sócrates bebe. Se a mãe vem, se a mãe sai. Os rapazes da telepizza passaram a figuras mediáticas. Eu aconselhava o Juiz a dispensar a vigilância policial, para poupar na despesa do Estado porque Sócrates está vigiado pelos jornalistas de dia e de noite e os agentes devem estar a bocejar de tédio. As televisões dão em direto todas as movimentações de gentes, carros, cães e gatos e de tudo o que mexe. Os advogados são perseguidos de microfones e câmaras em riste. É a telenovela de cordel em todo o seu esplendor.
E depois há os comentários, as previsões e os palpites dos comentadores de serviço. Sócrates fala ou Sócrates não fala? Dá entrevistas ou não dá entrevistas? E se dá, quando dá? E se der o que dirá? Prejudica o PS ou não prejudica o PS? Há respostas para todos os gostos e feitios e, enquanto isso, estamos já a menos de um mês das eleições e nada de importante se discute. A desmontagem e a crítica da gestão danosa do governo de Passos Coelho vai-se mitigando, perdendo gás, ou nem sequer chega a ocorrer.
Não sei se Sócrates fará declarações públicas até 4 de Outubro e, a fazê-lo, quando o fará. Mas sei que a alteração da medida de coação neste momento, corresponde a uma grande manobra publicitária de empolamento em larga escala dos erros da governação de Sócrates, debaixo dos quais a coligação PAF quer vencer as próximas eleições, já que nada mais tem para oferecer ao país do que uma missa de sétimo dia sobre um governo desde há quatro anos defunto enterrado.
E nessa orquestração episódica e folhetinesca, há capítulos picarescos a que ainda podemos vir a assistir: Sócrates manda vir um barbeiro para lhe cortar o cabelo ou Sócrates encomenda cozido à portuguesa e uma caixa de quilo de Ferrero Rocher. Mas melhor ainda seria, se Sócrates, preso há mais de nove meses e em abstinência forçada, mandasse vir uma acompanhante de luxo para lhe fazer massagens, enviando a conta, claro, ao seu amigo Santos Silva. Os tabloides entrariam em histeria. E eu, se fosse Sócrates, solicitaria a vinda da senhora no dia do debate entre Passos e Costa e garanto que ninguém lhes ligava patavina e toda gente mudava de canal para a CMTV. Era a minha vingança.
Ainda que não venha a acompanhante, o facto relevante por excelência irá acontecer em quatro de outubro, quando Sócrates – devidamente autorizado pelo Juiz Alexandre, como a lei consigna -, sair de casa para ir votar.
Acreditem, será ele a estrela mediática do dia e destronará mesmo aquele que vier a ser o vencedor do prélio eleitoral. Porque, como se antevê, qualquer vitória que vier a ocorrer será sempre uma vitória de Pirro.
(*) Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online
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