Postal a Odair,

Deixa-me preambular um pedaço. A liberdade torna-se a busca de uma vida quando se reconhece – por razões pessoais – que esta é a luta diária enquanto o normal for a falta dela. Uma utopia que faço minha.
A escolha que fiz quando a partir dos cinco anos comecei a andar à porrada na escola por me mandarem para a minha terra e chamarem preta.
Sabes, não achava nada normal. Antes pelo contrário.
Como sou teimosa, orgulhosa das minhas cores e de todos os meus ancestrais ainda hoje não acho normal que alguém diga isto. Imagina a minha leviandade por achar que já passei dos cinco anos e isto ainda me acontece. Continuo a não achar normal. Se calhar é teimosia minha. Ou se calhar sou só parva. Segundo a tua teoria sou parva.

Odair, se for preciso volto a andar à porrada. No entanto, hoje, com menos força no soco, uso outra arma mais afiada. A educação pela escrita. Uma utopia minha. Teimosa que é, em querer encontrar a liberdade. O direito de qualquer um ser o que é. Se alguém me proibir de ser livre, encontras-me nessa luta.

É o que pretendo fazer com este postal.

Se alguma vez, chegada aqui, podia partilhar o sentir ou ser cúmplice de quem não me quer livre? De quem quer manipular?
Ora pensa bem.

Não me deito na mesma cama que o meu abusador. Nem com aquele que me oprime.
Nem o ajudarei nunca a conseguir os seus intentos. O meu partido e o meu lado estão bem definidos.
Estou ao lado da liberdade, dos direitos de todos os humanos. De não serem maltratados. De poderem circular no planeta como o fizeram os meus e os teus antepassados. E daqueles que te pagaram para que te vendesses.

Concluo que o inimigo é muito estúpido e faz de mim uma incapaz de ver para além da árvore.
Foi com estes truques básicos e baixos que uns e outros bons manipuladores chegaram recentemente ao poder. Porque a “estupidez humana não tem limites” se alguém (sem cor) não ficar ofendido perante o que ouve naquele vídeo.
Somos a única espécie que se mata sem se ver fim à vista, por razões mesquinhas.

Neste momento, como noutros momentos da História, a orquestra toca e o barco onde vamos todos já bateu no icebergue e afunda-se.
Andamos à deriva à procura de um escolho decente para nos agarrarmos. Não precisamos de gente que nos dê com remos na cabeça e empurre para debaixo d´água.

Enquanto for viva vou procurar encontrar – mesmo cansada e enojada de levar e de dar porrada – a tal liberdade, com a força espiritual dos cinco anos.

O meu problema está com os que te pagaram.
Esses não te querem ver livre. Nem a mim, nem a muitos outros. Nem brancos nem pretos. Pegam em nós e desumanizam-nos. Ficamos a um passo da barbárie de novo. Mas tu esperto que és não percebes que não és normal ao pactuares.
O teu problema está em seres cúmplice.

Se não te pagaram e dizes apenas o teu sentir e o que pensas ,“posso ter de morrer para defender a tua liberdade de expressão”, mas não sem te dizer o que penso do que pensas.

Obrigas-me a ter trabalho extra. De te desmascarar, de te mostrar a manipulação.
Sou o médico que te vem dizer: sofres de uma doença grave, mental, incurável. E eu tenho pena de ti. A sério.

Fazes-me lembrar a mão do guarda que empurra homens, mulheres e crianças para o comboio que vai na linha sem saída.
Da gente banal que pratica o mal.
Ou és só um idiota, como chamou Umberto Eco às vozes que nas redes mostram a sua refinada educação.

Boa sorte na vida. Espero – por causa da porrada que ando a dar e a receber desde os cinco anos – ser uma das que te vai ajudar a ter uma vida num mundo melhor, em liberdade e sem racismo. A ti e aos teus descendentes.

Epílogando,

Anda por aí a circular um vídeo do jovem Odair (infelizmente recebi-o) a quem escrevo este postal.
É um rapaz preto dizendo que todas estas situações de racismo existem, concluindo que perante elas devemos ficar caladinhos e agradecidos.
Se te chamaram preto e mandarem para a tua terra, aceita e agradece. Isso é normal…
Se eu tivesse cinco anos voltava a andar à porrada.

Fez-me lembrar as “fake news” em certas campanhas eleitorais que levaram ao poder certos homens inqualificáveis, com base em mentiras vendidas como verdades.
Alguém amigo foi de imediato verificar a origem e imaginem. Estava alojado no youtube de um famoso skinhead.
Eu só venho denunciar. Não matem o mensageiro.

Anabela Ferreira

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