Postal de Abril

Retrato de Agostinho Pacheco roubado por aí. Um escrito com um ano, revisto, rescrito e dedicado a quem é das artes e hoje tem ameaçada a sua liberdade de viver.

Os que têm saudades do dia 24.04.1974 são os cães que ladram para defender os donos, mas dormem fora de casa. Ou são os donos. Têm nomes e moradas, rezam um só credo, “amai e multiplicai-vos”, ao capital (g)amado que se reproduz em off-shores. Mas esta não foi a liberdade dos meus sonhos.

Eu cadela de rua, poeta rafeira que se deseja livre, não quero donos. Sou humilde escrava da poesia, que encerra a liberdade prometida na arte de uns homens e mulheres, chegada com o dia que em Grândola amanheceu livre. Uma vila pacata e morena como o país. Onde o povo ordenou a liberdade.

Aos Capitães de Abril a gratidão é profunda. Obrigada Salgueiro Maia pelos sonhos, pela utopia. Pela vontade de ferro em pôr um ponto final na ditadura que comia a vida de um país. Pelo desejo de não venderem barato a vida, em nome de um Estado fascista. Por chamarem a vós o bom senso contra o envio de soldados que morriam numa guerra fratricida, distante, que todos odiavam, por não ter nenhum sentido. Por todos os soldados que regressavam na mente perdidos, com traumas nunca cuidados.

O tempo ao qual nunca quererei regressar, e do qual muitos têm saudades era o tempo em que as mulheres não podiam votar. Nem viajar sem autorização dos maridos. Ou trabalhar. Parir e cozinhar eram as funções destinadas. Era o tempo da elevada taxa de mortalidade materna e infantil. Era um tempo do pequeno-almoço de aguardente e figos secos, ou vinho com côdeas, de açorda com um raminho de hortelã ao almoço e ao jantar toucinho com pão, acompanhado de uma malga de sopa.

Era o tempo sem planeamento familiar. Nem médicos. Era o tempo da moda dos lenços pretos à cabeça e bigode, sem nunca levantar o olhar. Era o tempo das prisões arbitrárias a quem fosse comunista ou anti-fascista. Era o tempo dos bufos e da censura com a cor do céu, azul. Era o tempo do silêncio e do medo. Era o tempo das divisões. Das migalhas atiradas aos soldados e dos dinheirinhos melhores aos milicianos para combater irmãos numa guerra de defesa do Império.

Era o tempo da submissão. Era o tempo em que a mulher não estudava. Não conhecia poesia. Apenas as agruras da vida.

Só as elites podiam viajar, ler e frequentar Coimbra. Era o tempo dos livros controlados e proibidos. O tempo da censura na escrita e nas cantigas.

Era o tempo de fome. Aliás, da miséria. Das calças rotas e um único par de sapatos. De ordenados miseráveis. Era o tempo de trabalho infantil, da ignorância tão extrema quanto a pobreza. O analfabetismo e a iliteracia espalhavam-se como sementes para cuidar do futuro das gerações.

Era o tempo do sub-desenvolvimento. Era o tempo do reino da Santa Madre Igreja, mantendo submissa uma população, de olhos postos no calvário da cruz ou em aparições e devoções, construindo gente submissa,controlada e medrosa do inferno. Para tanto, bastava pecar. E o pecado podia ser tudo o que fosse decretado por lei.

Era o tempo de trabalho na agricultura manual e intensiva, de poucos na indústria e menos ainda nos serviços. Era o tempo da família sem distanciamento social. Comiam no mesmo prato, dormiam aconchegados no mesmo estrado de colchão mole. Era o tempo que não autorizava eleições. Era o tempo das cidades que mais não eram que pequenas aldeias. Era um tempo sem estradas, sem transportes, sem saneamento e água de má qualidade. Era um tempo onde a liberdade se ficava por uma doce miragem de quem ousava sonhar. Uma utopia.

Vivi neste país. Há quarenta e seis anos era assim. Ontem. Nele conheci as amarguras desta pobreza, da descriminação, da segregação. Como no meu país lá longe, no Império longe da Metrópole, onde se vivia com abundância, em festa para uns. Para outros em segregação, guerrilha, e rédea curta. Com outros sonhos, de outras liberdades. Com outras utopias. Parcialmente desconseguidas até hoje.

Nesse tempo, nas artes, manifestavam-se artistas como Zeca Afonso, Ary dos Santos, Natália Correia, entre tantos irmãos e irmãs que comiam mas não calavam. Regurgitavam os sonhos e os sentidos, na poesia, nas canções, na arte da escrita. A todos eles agradeço o machado com que cortaram as giestas que foram aquele tempo e, abriram o caminho das gerações que se seguiram.

Obrigada a todos os que tornaram possível a queda do brutal regime fascista do qual ainda calamos os traumas nunca cuidados, menos ainda curados.

Tarda nova revolução para recuperar o que foi roubado, pelos que capturaram a liberdade, o abrigo, os direitos humanos, o pano e o pão, através da imposição de uma nova ditadura, vinda de um vampiro sistema neo-liberal desnutrindo e enfraquecendo o sistema imunitário da gente.

Os donos dos cães nunca se cansam, mas nós nunca iremos ao tapete. Estamos apenas encostados às cordas. Iremos sair. Nenhum sistema imposto por homens indecentes é à prova da capacidade criativa dos homens decentes que o sonhem derrubar.

Eu, cadela de rua, rafeira, derramo a esperança, como se de um amor perdido se trate, para que ela volte. A saúde e a liberdade.

Aos tempos dos meus outros meus países que também celebram o dia 25 de Abril de 1974, não quero regressar nunca. Desconseguiram seguir o caminho da liberdade, mataram alguns dos seus mais belos filhos, mas têm o seu destino nas suas mãos. Outros ditadores sim, novos donos.

Como o país que fez chegar a liberdade da ditadura do Estado Novo hoje tem.

Para combater os novos donos que nos têm hoje manietados, desejo mais sonhos. Como aqueles dos poetas e artistas que fizeram Abril, nas canções e na poesia.

“Foi então que Abril abriu

as portas da claridade

e a nossa gente invadiu

a sua própria cidade”

Ary dos Santos

Anabela Ferreira

2 comentários a “Postal de Abril”

  1. anabela diz:

    Faça-me um favor, escreva. Sobretudo se o sabe fazer melhor e com conhecimentos de porta celestial ao seu certamente bem utilizado intelecto. Não me deixe ficar ignorante peço-lhe. Se tiver tempo, claro. Tenho de aprender com quem pode e sabe ensinar.
    Os meus professores são baratuchos.
    E eu tenho limitações ao entendimento de insultos despropositados e vulgares.

    Deixo um conselho gratuito e paternalista, quando ler alguma coisa com a qual não concorda, não leia, siga a sua vida, não perca o seu tempo, a menos que consiga contra-argumentar coisa que não fez. Tenha um bom dia.

  2. Alfredo Silva diz:

    Paternalismo barato. Prosa de vão de escada. Pedante ignorância.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *