Quando um branco ama um preto isso é… revolucionário

Podia ser o título de uma canção mas é só um título para mais um texto sobre o racismo, que hoje me levou ao escritor e conservacionista Escocês John Muir – “Estou a perder dias preciosos. Estou a degenerar numa máquina para ganhar dinheiro. Não estou a aprender nada neste mundo trivial de homens. Tenho de partir e sair para as montanhas para aprender as notícias”.

Falava ele da preciosa natureza.

Quando as gentes deste mundo estão cansadas de servir de máquinas para fazer dinheiro para alguém, de carne para uso no circo, de corpos para se deixar tornar num enorme hematoma

– o que está a acontecer – empurrados por uma máquina desumana, a vontade é a de fugir para as montanhas.
Mas, e se esses corpos forem pretos? Sujeitos ao ódio visceral que polui o ambiente, acicatado pelos causadores do cansaço de que falava Muir no século XIX?

São os estertores dos Impérios decadentes construídos e elevados à potência máxima sobre um chão de sangue vindo do tráfico humano, de genocídios de índios e pretos e trabalho escravo, na misoginia, no sistema de patriarcado assente na violência contra as mulheres?

Gostaria de imaginar que sim, o fim.


Porque me deparei de frente com essa violência, mais uma vez.

Vinda de um homem branco cujo sangue se alimenta do ódio, sem ver que quando defendo um corpo preto mutilado, defendo um humano contra o branco, habituado que está a ser violento – sem saber falar nenhuma outra linguagem – não entende que o estou a defender a ele também, dessa mesma violência que lhe está entranhada.


Sem ver que estou a defender a inexistência de violência por parte de forças policiais do Estado seja para com quem for, em situações que não devem escalar para a violência.
O serviço da Polícia é exactamente esse na maioria dos casos – gerir e desmontar um conflito. Não, fazer escalar.


Garanto que não há mulher nenhuma, que mesmo que não esteja a cumprir a lei, acaba com a cara da Cláudia Simões num confronto com a polícia por resistir a ser presa, ou defender-se, sem que se use de muita violência. Muita violência.


Semelhante àquela usada por um homem que pratica por sistema, ódio e crença, de violência doméstica sobre a mulher.

Mas, esperar essa amplitude de pensamento está aquém do possível em certos casos de humanos.

Ontem percebi o que uma mulher vítima de violência doméstica sente perante um agressor que lhe grita na sua frente, que a mata se for preciso, se ela se tentar defender dos punhos que a agridem.

A intimidação com palavras é uma atrocidade. E ontem sentei-me nas palavras agressoras e imaginei-me na frente daquele homem.

Por expressar a minha opinião teria ficado reduzida a papa.

E antes de mim quantos e quantas já não passaram por esta “intifada da imaginação?”

Vai continuar a acontecer, porque deixamos que a violência seja o mote condutor da vida.

A violência não veio até mim porque as pessoas estão pobres e cansadas. Seria um insulto a todos os que de nós estamos empobrecidos e cansados mas lutamos como loucos enquanto vivemos.

Vem porque o sistema começado em 1452 as ensina a ser assim e perpétua a misoginia, o patriarcado, e no caso, o racismo.
Quem for anti-racista tem uma cruz marcada na sua porta, por estes energúmenos.

Porque razão continua a existir tanta violência doméstica em Portugal, perguntei-me ontem?

Pelas mesmas razões que o racismo sobrevive. O mesmo sistema de seiscentos anos baseado na violência e no ódio que ontem se atirou a mim, mostrando todo o poder da testosterona (nem falo das mulheres que seguem a mesma linha, com síndroma de Estocolmo, ou outro distúrbio de personalidade), sem verem o uso bruto de violência.

Então e os que vêm a revolução acontecer quando percebem brancos que amam pretos (e a estes últimos querem livres), e a todo o custo preferem o ódio?

Sentem-se a perder poder e esse é o seu combate.

Sim meus queridos, quem defende violência policial, violência doméstica, violência racial, ou nazis, tem de ter um parafuso a menos, ou em linguagem profissional distúrbios graves de personalidade e/ou dissonância cognitiva grave.

Voltando ao pensamento inicial, a revolução está em um branco amar um preto, ou uma vítima de violência.

E com a força desse amor, querer desmantelar o violento sistema, da sua violência entranhada.

Um preto amar um branco não tem nada de desconfortável.


O contrário sim, é uma prova dura, que pode revigorar uma máquina corrompida, que leva à exaustão, no mundo trivial dos homens.
Essa é a nova revolução.

Ontem senti-me centrifugar numa máquina, num mundo perdido na trivialidade do ódio de brancos que odeiam pretos.

Que preferem defender qualquer solução pelo uso da violência gratuita.

Se temos punhos e joelhos para bater porque havemos de nos controlar?

Querem-me arrastar para a lama do putrefacto ódio e dos instintos primários onde estes me conduzem?

Nunca cederei a essa vossa vontade.

Se eu estivesse na frente daquele homem ter-me-ia defendido a punhos, claro. Era o meu corpo ali presente.

E teria ido parar ao hospital com um traumatismo craniano, como a Cláudia foi.

Como na situação vivida pela Cláudia, não houve ninguém que soubesse falar a linguagem da não violência com ela e com a filha de 7 anos.


Não houve ninguém a fazer a revolução – um branco a amar um preto, nos corpos de uma mulher e uma criança.

Ainda hoje, há poucos.

Certamente não conto com o homem que me agrediu ontem.

E agride outras mulheres que se atrevam a pensar diferente, que não sejam submissas nem caladas, neste Estado que ainda tem os mais elevados números de violência doméstica. E racismo. E pedofilia na Igreja.

Só violências.

Temos orgulho no Império? Construído na base da violação de mulheres, de pedofilia da Igreja nas suas ex colónias, na Escravatura? Percebem o ciclo de violência de mil anos de História?
Mas é isto que vos traz ufanos e orgulhosos ó senhores?

Se eu pudesse passear naquele autocarro na Amadora iria ver os rostos dos passageiros pretos vestidos do medo da violência que assistiam.

No entanto sei que há brancos que amam os pretos.

Sim, até ao final dos dias, vou defender o meu amor aos pretos, por ser eles, por saber que a liberdade e visibilidade destes corpos como grupo desumanizado é ainda mais importante que a minha liberdade individual, e por saber onde está a revolução:
– está no momento que os brancos amam pretos e estão dispostos a enfrentar Infernos de Alieghieri para a concretizar.

Deixo aqui a minha admiração aos que existiram e partiram e aos que ainda hoje combatem o racismo nos dois lados da fronteira das cores.

Apoio o Mamadou Ba, a Cláudia Simões, o Bruno Candé, o Alcindo Monteiro, ou qualquer outro corpo preto, vivo ou morto, por ter sido usado e abusado pelo poder que gratuitamente faz da força e da violência a sua marca registada.

Guardam as patentes na Igreja e nos cofres do Estado que já foi império importante e hoje é um resquicío de trapos, que como velhos caquéticos fazem operações de estética para mascarar rugas, decadência e feiúra. Uns tristes.

Estarei sempre ao lado do combate a esse tipo de Estado, a esse tipo de Justiça, a esse tipo de Educação, a esse tipo de Segurança.
Deles quero distância. Contra eles marcho.

Não quero a reforma deste sistema – a coutada do macho ibérico que odeia pretos e bate nas mulheres, que finge combater o racismo e celebra o Império.

Quero sim que sejam todos presos, demitidos e responsabilizados. Não se trata de querer refazer a história de seiscentos anos de Império. Trata-se de trazer o azeite ao de cima.

Não há glória nas armas e nos brazões assinalados. Há sangue e vergonha!


Só há cura e reconciliação quando percebermos a origem da violência.
Será quando os corpos brancos amarem os corpos pretos.

Por isso estou aqui. Só assim sentirei que não estou aqui a perder dias preciosos da minha vida.–

Anabela Ferreira

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