É sabido que a gestão “científica” do medo e a produção massiva e asfixiante de informação (ou alegada informação) sobre um determinado tema constitui uma forma de impor uma única “verdade” (a que é produzida pelos meios de comunicação de massa e pelos poderes políticos, económicos e sociais, que os detêm e controlam), entorpecer o raciocínio crítico e impossibilitar que outros temas igualmente relevantes sejam analisados e debatidos.
Ainda vamos ter de esperar algum tempo pela análise fria e objectiva de observadores independentes para conhecermos tudo o que realmente se tem passado na guerra da Ucrânia, mas o que se sabe já hoje (por outras vias que não a nossa imprensa dita de referência) é que o governo de Zelensky, que os comentadores oficiais ocidentais tanto se têm esforçado em apresentar como um ardente lutador pela Liberdade e pela Democracia e um defensor dos interesses do povo ucraniano, não contente em ter ilegalizado cerca de uma dúzia de partidos da oposição interna e diversas organizações sindicais, está agora a preparar-se para um ataque aos trabalhadores ucranianos.
O ataque aos trabalhadores ucranianos
Sob o pretexto da guerra e da necessidade de combater a invasão russa, já tinham sido restringidos e suspensos, em Março e Abril, importantes deveres e direitos laborais. A lei de excepção/emergência de Março, entre outras medidas, limitou e praticamente inutilizou a negociação e representação colectiva dos sindicatos, aumentou a jornada semanal de trabalho para 60 horas e passou a permitir os despedimentos sem justa causa e a suspensão mais ou menos ilimitada dos contratos de trabalho.
Estas medidas, supostamente temporárias, e outras ainda piores, correm agora o risco de se tornar definitivas com a aprovação na generalidade, pelos deputados do Partido “Servo do Povo”, de Zelensky, no passado dia 12 de Maio, de um projecto[1] originalmente apresentado em Abril por Halyna Tretiakova, deputada daquele partido e Presidente do Comité Parlamentar de Políticas Sociais.
Esse pacote de medidas, de uma assumidamente radical desregulamentação das relações laborais, vinha já sendo preparado há algum tempo pelos parlamentares do partido de Zelensky, e a sua elaboração contou com significativos apoios, como os das grandes associações patronais ucranianas, da conhecida organização pró-patronal ucraniana “Escritório de Soluções e Resultados Simples”[2], do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânicos e até da USAID[3]. Sob o pretexto de que as relações de trabalho na Ucrânia ainda se encontravam reguladas por uma legislação laboral já muito ultrapassada (de 1971), o novo pacote legislativo propõe “des-sovietizá-la”, liberalizando o mercado de trabalho e introduzindo um regime mais “flexível” e mais “livre” para as relações de trabalho, tornando-a assim mais “atractiva para investidores”, nacionais e estrangeiros.
Todos estes “argumentos”, que os trabalhadores portugueses bem se recordam por terem sido no essencial os mesmos com que foram defendidas as reformas laborais dos tempos da Tróica, e que passam pela defesa da desarticulação do Direito do Trabalho e a sua aproximação ao Direito Civil, pela destruição da autonomia e da contratação colectivas e pela proclamação de uma pretensa igualdade e liberdade das partes nos contratos individuais, foram recentemente defendidos, e nestes exactos e significativos termos, por Hanna Lichman, membro do comité parlamentar para o desenvolvimento económico e, também, deputada do “Servo do Povo”.
O referido projecto prevê que em todas as pequenas e médias empresas (até 250 trabalhadores e que empregam mais de 70% da propulação activa ucraniana) as relações de trabalhadores sejam subtraídas à aplicação das leis laborais e sejam antes reguladas pelas cláusulas dos contratos individuais celebrados com os patrões, permitindo assim horários de trabalho de 70, 80 ou até mais horas por semana!
Aliás, e já em todo este ambiente de inutilização e de esmagamento dos mais elementares direitos dos trabalhadores, e ainda antes da aprovação na especialidade da nova lei, inúmeras grandes empresas (como as da central nuclear de Chernobyl, do porto de Odessa, do metro de Kiev e da ferrovia ucraniana) já trataram de suspender unilateralmente os contratos ou acordos colectivos de trabalho e de alterar e agravar drasticamente as condições de trabalho dos seus trabalhadores.
Tal como organização civil ucraniana “Movimento Social” e o próprio gabinete da OIT (Organização Internacional do Trabalho) na Ucrânia denunciaram, e de forma muito clara, esta neutralização da contratação colectiva e da acção sindical, bem como a fortíssima individualização das relações laborais, obedecem à velha lógica ultra-liberal de que só pode haver empresas estáveis e competitivas com trabalhadores instáveis, permanentemente ameaçados e desprovidos dos seus mais basilares direitos e, sob a capa da “liberdade contratual”, visa a instituição de uma verdadeira e muito dura escravatura laboral, com horários extensíssimos, despedimentos arbitrários, extermínio da acção sindical e da contratação colectiva e imposição, pela força e pelo medo, de salários baixos e de condições de trabalho absolutamente desumanas e mais próprias do século XIX.
Por outro lado, é também muito curioso verificar que, na votação na generalidade deste tenebroso projecto, estiveram juntos, numa elucidativa “santa aliança”, os ultra-nacionalistas do “Servo do Povo” e do “Dovira”, deputados da “Frente Popular” (de Yatsenyuk, o banqueiro e oligarca ucraniano tão acarinhado pela União Europeia), parte dos deputados do partido “Pelo Futuro” (com forte ligação a Kolomoisky[4]) e ex-membros do partido pró-russo e ultra-conservador, “Plataforma de Oposição – Pela Vida”[5]. Ou seja, não obstante as divergências políticas e ideológicas destas forças políticas, todas elas se uniram para aprovar um ataque sem precedentes contra a classe operária e os demais trabalhadores ucranianos.
O caso Português
Como é sabido, nos tempos da Tróica e do respectivo “Memorando de Entendimento” – e até indo além deste – o Governo reconhecidamente de direita de Passos Coelho e Paulo Portas aprovou uma série de medidas anti-trabalhadores, sempre sob os argumentos da “emergência” (então, financeira) e da necessidade de tornar a legislação de trabalho mais “flexível” e mais atractiva para os investidores.
Essas medidas passaram pelo enfraquecimento da organização e luta colectiva (com a debilitação da acção sindical e a restrição do direito à greve), bem como da contratação colectiva (com base na permissão da caducidade das convenções colectivas e na possibilidade de estas terem cláusulas menos favoráveis do que as da própria lei) com a consequente e máxima individualização da regulamentação das relações de trabalho.
Passaram igualmente pela facilitação dos despedimentos por justas causas ditas objectivas (como os colectivos e os por extinção do posto de trabalho) e pela drática redução das indeminizações de antiguidade (que passaram a ser de apenas 12 dias de salário-base por cada ano de antiguidade), tornando assim muito fácil e barato mandar trabalhadores para o desemprego e manter os que estão no activo sob a permanente chantagem de terem que aceitar condições miseráveis sob pena de poderem, com grande facilidade, ser despedidos e, quando muito, receberem miseráveis compensações de antiguidade.
Ora, Governos ditos de esquerda (tanto os dois da “geringonça” do PS, PCP e BE, como o actual, de maioria absoluta do PS) sempre recusaram revogar essas medidas, mantendo-as no essencial intactas, e até as agravando com leis como a que passou a determinar –sob o pretexto de combate à precariedade!? – que o período experimental para um jovem à procura de primeiro emprego ou para um desempregado de longa duração, passe a ser de 180 dias![6] Ora, esta solução legal, o que verdadeiramente permite é o abuso de que, sobretudo nos sectores de maior rotatividade de mão-de-obra (como nos call center), cada trabalhador jovem seja posto na rua ao fim de cinco meses e vinte e nove dias, sem quaisquer necessidades de justificação e sem qualquer indeminização.
Por isso o Governo inscrevera na “Agenda para o Trabalho Digno” a medida de exigência de uma justificação por escrito de denúncia dos contratos durante o período experimental. Mas bastou a CIP (a Confederação dos Patrões da Indústria) manifestar-se contra tal proposta para logo o Executivo de Costa deixar apressadamente cair essa alteração ao Código do Trabalho, bem como a da retoma dos valores das horas extraordinárias que vigoravam antes da Tróica[7].
Assim, fica a claro o que podem esperar os operários e demais trabalhadores portugueses da “maioria absoluta do diálogo” tão apregoada por António Costa: manutenção das mais gravosas medidas das leis da Tróica (“flexibilização”, ou seja, aumento dos tempos de trabalho, salários de miséria[8], definhamento ou mesmo destruição da contratação colectiva, despedimentos fáceis e baratos, etc.), uso e abuso da requisição civil e agravamento das condições de trabalho[9], enquanto o patronato aumenta e de forma exponencial os seus lucros.
Fome e miséria para muitos, riqueza e poder para poucos
A Oxfam International[10] divulgou recentemente um relatório intitulado “Lucrar com a Dor”, no qual demonstra que, entre 2000 e 2020, o número de multimilionários a nível mundial aumentou exponencialmente, atingindo um total de 2.668, cuja riqueza corresponde a 13,9% do PIB global, e os dez homens mais ricos do mundo têm nas suas mãos uma riqueza maior que a de 40% da população mais pobre do mundo.
Efectivamente, com a pandemia, os lucros dos grandes grupos económicos subiram de uma forma alucinante. Nos últimos dois anos, só a BP, Shell, Total, Exxon e Chevron (cinco das maiores empresas do sector da energia) estão a obter, no seu conjunto, lucros de 2600 dólares… por segundo, e as empresas farmacêuticas (com vacinas, testes, máscaras e tratamentos), estão a lucrar 1.000 dólares por segundo. Só nas vacinas, esses gigantes cobram 24 vezes mais do que o custo potencial da produção genérica, beneficiando além disso de enormes financiamentos públicos, que rapidamente transformaram em fabulosos e bem superiores lucros. No sector tecnológico, as cinco maiores empresas (Apple, Microsoft, Tesla, Amazon e Alphabet) alcançaram em 2021 ganhos de 271 mil milhões de dólares, praticamente o dobro dos resultados de 2019.
Contudo, em Portugal, os salários médios estagnaram, o salário mínimo subiu 6%, mas a inflação já vai em 8%. E, entretanto, tanto em 2021 como em 2022, todos os principais bancos[11] – que, recorde-se, numa só década mandaram para a rua 30% dos seus funcionários e, desde a vinda da Tróica, despediram mais de 12.000 trabalhadores – bem como outras grandes empresas acumularam lucros de centenas e centenas de milhões de euros.
Ou seja, ao mesmo tempo que se despediram ou se suspenderam contratos de trabalho de milhares de trabalhadores e se reduziram drasticamente salários e direitos (sempre sob o pretexto da crise pandémica e da necessidade de sacrifícios para quem trabalha), os grandes capitalistas acumularam riqueza como nunca!
Vamos, assim, continuar a assistir ao perpetuar do valor astronómico das custas judiciais do trabalho, à real inacção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para sancionar devidamente o golpe e a fraude, e à manutenção de péssimas condições para quem trabalha, designadamente em termos de segurança e saúde. E quem tiver dúvidas, vá de novo a Odemira e verifique in locu como a miserável escravatura dos trabalhadores agrícolas, em particular dos do Extremo Oriente, ali continua intocada e impune. Ou verifique – pelos relatórios de actividade do Ministério Público – não apenas como os processos de acidentes de trabalho mortais cresceram mais de 50% em dois anos (as comunicações de óbitos por acidente de trabalho, que em 2018 tinham sido de 475, ascenderam em 2020 a 727), como também que este número terrífico é cinco vezes superior ao oficialmente registado pela ACT sem que ninguém se pareça mostrar preocupado com esta discrepância!? Isto enquanto Portugal, entre 30 países europeus, tem o maior número de acidentes de trabalho por cada 100.000 residentes[12].
Em suma, a lógica do sistema capitalista e as relações sociais por ele criadas, impostas e reproduzidas, é exactamente esta: para os trabalhadores e para os pobres, sejam eles de Portugal, da Ucrânia, de África, da América ou da Ásia, miséria, precariedade, desemprego, fome e sofrimento; para os ricos e poderosos, cada vez mais riqueza e poder. E nada disto é fruto do acaso ou da falta de sorte na vida.
Torna-se cada vez mais evidente que os progressos científicos e tecnológicos, se forem colocados ao serviço da humanidade, decerto permitirão criar-se um mundo melhor, mais justo, menos penoso e mais feliz. Porém, nada disso é possível enquanto se mantiverem as relações sociais de produção que precisamente permitem a sua apropriação e a consequente acumulação de riqueza por uma pequena minoria.
Mas, se é assim, temos de nos lançar a essa tarefa histórica de combater e destruir essas velhas relações sociais e de criar em seu lugar uma sociedade onde tudo o que é novo e progressivo seja usado em benefício de todos e onde a exploração e opressão do Homem pelo Homem hajam sido banidas da face da terra.
António Garcia Pereira
[1] Projecto n.º 5371.
[2] Criada por Mikheil Saakashvili, ex-Presidente da Geórgia (entre 2004 e 2012) e ex-Governador de Odessa (entre 2015 e 2016).
[3] A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional é um órgão do governo americano a quem compete, sob a direcção do Departamento do Estado norte-americano, distribuir os dinheiros (e cobrar as respectivas facturas) da chamada ajuda externa, designadamente estabelecendo as contrapartidas que os países e governos beneficiários dessa “ajuda” ficam obrigados a adoptar.
[4] Igor Kolomoisky é um poderoso oligarca ucraniano e um dos grandes beneficiários da fraude do esquema Ponzi.
[5] Um dos onze partidos suspensos pelo Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia em Março e que tem nas suas fileiras Viktor Medvedchuk, amigo pessoal de Putin.
[6] Art.º 112.º, n.º 1, al. b), iii) com a redacção conferida pela Lei n.º 93/2019, de 04/09.
[7] Ou seja, 50% de acréscimo na 1.ª hora extra, 75% na 2.ª hora e seguintes e 100% nas horas prestadas em dias de descanso e em feriados, e que foram reduzidos, respectivamente, para 25%, 37,5% e 50% pela Lei n.º 23/2012, de 25/06.
[8] Os salários são de tal modo baixos que, em 2021, 525 mil pessoas com emprego não conseguiram ter um rendimento superior a 554€/mês, 2,7 milhões de trabalhadores têm uma remuneração base mensal inferior a 1.000€ e 70% dos jovens, não obstante as suas qualificações, só conseguem vínculos precários, sendo que 40% têm remunerações da ordem dos 627€/mês.
[9] Segundo os dados do INE, relativos a 2021, 471 mil trabalhadores trabalharam durante a semana e inclusive na sua própria casa entre as 20h e as 24h, 1.914 milhões trabalharam ao Sábado e 1.095 milhões ao Domingo, sendo que a maior parte desse trabalho suplementar e nocturno não foi remunerado, muito menos devidamente.
[10] Confederação de 19 organizações e mais de 3000 parceiros que actua em 90 países na busca de soluções para os problemas da pobreza, da desigualdade e de injustiça social.
[11] Só no 1.º trimestre de 2022, os seis maiores bancos portugueses embolsaram 617,4 milhões de lucros (Santander: 155,4 milhões; CGD: 146 milhões; Novo Banco: 142,7 milhões; BCP: 112,9 milhões; Montepio: 11,4 milhões), assim como uma série de outras grandes empresas (como a Navigator, com 50,6 milhões, ou a Sonae SGPS, com 42 milhões).
[12] Estudo elaborado pela consultora britânica Claims.co.uk, com base em dados estatísticos do Eurostat relativos a 2019 (UE +2).
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