Algumas pessoas julgam que as questões de princípio são coisas vagas e genéricas, desinteressantes e até mesmo inúteis. Quem assim pensa, porém, comete um erro de que, com grande frequência, só se apercebe quando algum infortúnio ou situação grave lhe tomba em cima. E é então, quase sempre, tarde demais…
Vem isto a propósito da questão de saber como e por quem podem, e devem, os poderes públicos, e em particular os de autoridade, ser efectivamente controlados e os seus eventuais abusos devida e atempadamente detectados e punidos.
Ora, o certo é que, a este respeito, os limitados espaços do Aeroporto de Lisboa, sobretudo os mais escondidos dos olhares públicos, voltam a ser notícia pelas piores razões.
Depois dos contínuos relatos de abusos e ilegalidades cometidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em particular no Centro de Acolhimento do Aeroporto de Lisboa – onde os cidadãos estrangeiros que ali chegam se amontoam sem quaisquer condições de higiene ou outras e são miseravelmente tratados e onde até os Advogados têm de pagar (uma taxa dita de segurança) para exercerem a sua profissão – eis que no passado dia 12 de Março o cidadão ucraniano Ihor Homenluk é brutalmente assassinado por três inspectores daquele serviço.
Segundo o Ministério Público que tem a seu cargo a respectiva investigação criminal, esses três “valentes”, depois de avisarem a segurança Mihaela Andrey (que trabalhava para a PRESTIBEL) para não registar os seus nomes, entraram na sala Médicos do Mundo onde o dito cidadão já se encontrava com o pés e braços atados e, primeiro, algemaram-no e depois agrediram-no selvaticamente a murro, a pontapé e à bastonada durante cerca de 20 minutos. À saída, entregaram as chaves das algemas à segurança e, ainda segundo o Ministério Público, ter-se-ão gabado de que “agora ele está sossegado” e “hoje já nem preciso de ir ao ginásio”. Ihor acabou por falecer às 18h40 desse mesmo dia.
Tudo isto consta das declarações para memória futura prestadas por Mihaela, uma senhora romena que vivia em Portugal há largos anos e que, após aquela barbaridade, decidiu emigrar para a Alemanha. Os inspectores do SEF autores desta façanha e os seus encobridores ainda procuraram inicialmente atribuir a morte de Ihor a um pretenso ataque epiléptico ou a uma aparentemente inexplicável paragem cardio-respiratória. Mas, depois de uma carta anónima denunciando o sucedido ter chegado à PJ, e de o relatório preliminar da autópsia ter determinado que a posição em que Ihor fora deixado (de barriga para baixo) e que as lesões nas costelas não o deixaram respirar, a verdade começou finalmente a vir ao de cima.
Porém, e ainda assim, os três suspeitos do homicídio puderam ir tranquilamente para suas casas com a mera aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
A acrescer a isto, acontece agora que o relatório anual de Asylum Information Database (AIDA) do European Counsil of Refugees and Exiles (ECRE) volta a denunciar que em 2019 – tal como já sucedera em 2017 e 2018 – no referido Centro de Instalação Temporária do Aeroporto Humberto Delgado, o SEF deteve 77 crianças e, destas, houve 25, não acompanhadas, que foram detidas por períodos de 1 a 47 dias e 52 crianças acompanhadas que foram objecto de detenção por períodos que foram até 59 dias de duração!
Perante o escândalo deste tipo de situações, sistematicamente ocorridas em 2017 – e que pouco ou nada ficam a dever às práticas de Trump, em particular nas fronteiras com o México – o Ministério da Administração Interna determinou em Julho de 2018 que o SEF não poderia deter crianças durante mais de 7 dias, na sequência de uma denúncia, então tornada pública, do caso de uma criança de 3 anos apenas que esteve detida mais de mês e meio.
Porém, o mesmo SEF, logo no ano seguinte, arrogou-se violar grosseiramente aquela dita directiva. E, não contente com isso, quando foi confrontado, já em meados de Junho de 2020, com o teor daquele relatório do ECRE, argumentou que não deteve, mas apenas “instalou” tais crianças!…
Ora, a verdade é que tais crianças, bem como os adultos sujeitos à mesma condição, ficam privados da sua liberdade de movimentos, têm de permanecer contra a sua vontade num local onde logo à entrada são despojados de todos os seus bens e têm direito apenas a uma chamada de escassos minutos. Chamar a isto, não detenção, mas sim instalação, constitui mesmo a mais sinistra das hipocrisias.
Como se tudo isto não fosse já suficientemente grave, Portugal foi recentemente condenado também pelo Comité Contra a Tortura das Nações Unidas, o qual denunciou precisamente, e entre outras indignidades, o uso excessivo da detenção, a falta de condições das instalações do Centro de Acolhimento e a já citada cobrança de taxas aos Advogados. E o mesmo Comité da ONU denunciou ainda o facto de que, ao contrário do que deveria fazer[1], o SEF não faz a identificação, como pessoal vulneráveis, dos requerentes de asilo que invoquem ser vítimas de tortura, violação ou de outras formas de violência física ou psicológica, não permitindo assim identificar, como a lei manda, as pessoas com quem deverá haver especiais cuidados.
Porém, é sobretudo a concepção policiesca e até o espírito próprio de verdadeiros carrascos, bem como a “normal” impunidade de comportamentos absolutamente inadmissíveis, que levam, em linha recta, à tolerância, à cumplicidade e até ao encobrimento de barbaridades como aquela que vitimou Ihor Homenluk e também ao diáfano manto de silêncio que, como todos vimos, sobre este caso hediondo e os seus responsáveis se estendeu entretanto. Como se se tratasse de um qualquer “azar” ou até de um incidente isolado.
E é este mesmo SEF que o Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, tratou de elogiar no passado dia 23 de Junho!…
Mas, como se tudo isto já não bastasse, eis que é entretanto descoberta uma rede de, pelo menos, duas dezenas e meia de indivíduos, 14 dos quais detidos pela PSP e que são funcionários da omnipotente Autoridade Tributária, rede essa que se dedicava à actividade de desviar e reter, dando-os como perdidos ou extraviados, inúmeros objectos chegados ao Aeroporto de Lisboa e depois, em especial se os mesmos não fossem entretanto reclamados, deles se apropriar ou os vender e ficar com o lucro dessa venda.
Sim, não se trata de 1 nem de 2, mas de cerca de 25 personagens, 14 dos quais, repito, eram funcionários das prestimosas, sempre atentas e sempre eficientíssimas (na perseguição ao cidadão contribuinte[2]) Finanças, que há mais de 1 ano se dedicavam a esta actividade e em cujas residências foram encontradas centenas desses mesmos bens, de computadores e de tablets a telemóveis e máquinas fotográficas, por exemplo.
Ora, como é possível que, não um agente isolado, mas sim mais de 2 dezenas de larápios organizados se pudessem dedicar, e durante tão largo período de tempo, a uma actividade criminosa desta natureza e dimensão, e só agora fossem finalmente descobertos? Não será que também aqui foi a teia das cumplicidades e encobrimentos e o tal manto de silêncio sobre responsáveis e responsabilidades que permitiu o desenvolvimento e a extensão deste escândalo?
A magna questão do “quem guarda o guarda?” coloca-se, pois, aqui com toda evidência e importância. Poderes não controlados democraticamente pelos próprios elementos do Povo em nome do qual são atribuídos e exercidos, acabam sempre por se transformar nos piores arbítrios e abusos.
E é por isso também que não é só no Centro de Acolhimento ou nas Finanças do Aeroporto de Lisboa, mas por toda a parte e a todos os níveis, que tal questão pode e deve ser colocada. E quando vemos que se escapam impunes não só os banqueiros das fraudes financeiras (que já custaram mais de 15 mil milhões de euros aos Portugueses e ainda vão – veja-se o caso do Novo Banco – custar outro tanto) como todos os titulares de órgãos e poderes públicos que os deviam ter atempadamente supervisionado, fiscalizado e punido, em vez de elogiado, apoiado e encoberto, é essa, de novo, a questão essencial.
Tal como é quando – mesmo quando não gostemos de todo de quem é aí arguido – ouvimos denunciar que o Ministério Público se permitiu fazer, e durante uma década inteira, investigações ilegais, fora de qualquer processo crime e de qualquer controlo de um juiz, por meio do truque dos chamados “PA” (ou “pré-inquéritos”). Ou seja, através de procedimentos administrativos que não se inserem em qualquer processo crime, não estão sujeitos às regras do Código do Processo Penal nem ao controlo de legalidade por parte de qualquer juiz de instrução criminal. Quem nos guarda, pois, destes “guardas”, sejam eles o SEF, as Finanças, o Ministério Público ou as entidades ditas supervisoras?
Ninguém a não ser nós próprios, impondo que tais “guardas” não consigam (designadamente sob a capa da sua apregoada “independência” ou “autonomia”) quer eximir-se ao controlo por parte dos cidadãos que dizem servir, quer deixar de prestar contas daquilo que fizeram ou deixaram de fazer.
É que, como aprendemos e sentimos na carne ao longo de mais de 40 anos antes do 25 de Abril de 1974, numa sociedade verdadeiramente democrática e baseada na dignidade da pessoa humana[3], não podem existir poderes ilimitados e incontrolados, seja de quem for, nem despachos, instruções, medidas ou processos secretos, nem gorilas ou justiceiros privados (ainda que até tenham uma farda), nem tratamentos diferenciados consoante a capacidade económico-financeira, a origem social, a etnia, a religião, as ideias políticas ou a nacionalidade dos visados nem, enfim, seres que se julguem ou que se comportem como superiores aos restantes.
E enquanto não conseguirmos impor isso, a nossa apregoada Democracia não passará da Idade da Pedra Lascada…
António Garcia Pereira
[1] Por força da Lei do Asilo (Lei nº 27/2008 de 30/06, com as alterações da Lei nº 26/2014 de 5/5), em particular do seu artº 17º – A.
[2] Ainda todos nos recordamos, decerto, da famigerada operação das Finanças conjuntamente com a GNR, pomposamente denominada “Acção sobre Rodas”, levada a cabo em Maio de 2019 e em que funcionários das Finanças, emboscados numa rotunda de Alfena-Valongo, interceptavam condutores e aos que tivessem dívidas ao Fisco e as não pagassem logo ali ficavam-lhes com as viaturas.
[3] Como enfaticamente proclama o artº 1º da Constituição da República Portuguesa.
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