Todos sabemos que a famigerada polícia política do regime fascista, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), rebaptizada em Novembro de 1969 por Marcelo Caetano como Direcção Geral de Segurança (DGS), para além de prender, torturar e até assassinar combatentes anti-fascistas como José Dias Coelho, Humberto Delgado e Ribeiro Santos, vigiava, seguia, ouvia, interceptava correspondência e fazia escutas telefónicas de todos aqueles que considerasse suspeitos de lutarem pela Liberdade e pela Democracia. E para esse efeito contava não apenas com aparelhagem de intercepção, escuta e gravação das conversações telefónicas, como também com toda uma rede de informadores ou bufos que, a troco de pagamentos mensais, denunciavam os oposicionistas.
Todas as informações assim recolhidas eram organizadas e catalogadas em ficheiros – por pessoas e por organizações – que incluíam dados de toda a ordem (não só política, mas também familiar e pessoal) sobre dezenas e dezenas de milhares de cidadãos.
Alguns saberão, mas provavelmente a maioria desconhecerá, que, desses ficheiros, os relativos a pessoas e organizações à esquerda do PCP foram, apenas alguns dias depois do 25 de Abril de 1974, retirados da sede da PIDE, situada na Rua António Maria Cardoso, e levados por militares da Marinha para destino então desconhecido, mas que se veio a confirmar, inclusive pelo relato de Vasili Mitrokhin, um ex-espião do KGB (a polícia política da União Soviética), ter sido o mesmo KGB.
Ficámos recentemente a saber que a Stasi, a tristemente famigerada polícia política da chamada República Democrática Alemã (RDA), vigiou e controlou de perto, e até 1989, vários cidadãos portugueses.
Em Portugal, e sob o eterno pretexto da necessidade do combate ao terrorismo, a Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) foi aprovada em 1984 e o chamado Serviços de Informações de Segurança (SIS), que é actualmente regido pela Lei nº 9/2007, depois de estruturado com o apoio da CIA, iniciou funções em 1986.
Desde cedo – e tal como alguns, bem poucos, haviam, em vão, alertado – se começaram a conhecer indícios e até a ouvir algumas denúncias de que o SIS, extravasando por completo as suas competências legais, vigiava, não espiões ou terroristas, mas sim dirigentes políticos, sindicais e associativos, se dedicava a actividades que nada tinham que ver com a segurança interna e que, para obter informações e preencher os seus bancos de dados, usava métodos e procedimentos que lhe estão completamente vedados por lei, designadamente escutas telefónicas, filmagens e fotografias não autorizadas.
Convém recordar que, nos termos da lei, e ainda bem, uma escuta telefónica só pode ser realizada no âmbito de um dado processo crime, visando alguém que é suspeito da prática de crimes particularmente graves, e desde que seja devidamente autorizada por um juiz de instrução criminal e, uma vez produzida, seja por ele validada, devendo o mesmo juiz mandar destruir todas as escutas que não tenham que ver com o objecto do processo, designadamente aquelas que, por engano, verdadeiro ou simulado, abrangeram pessoas que não são suspeitas da prática de qualquer crime e matérias, nomeadamente do foro estritamente pessoal, que em nada respeitam ou interessam àquela investigação.
Ora, a verdade é que sucessivamente em 1997 (relativamente à Universidade Moderna), 2001 (quanto a vários dirigentes políticos), 2003 (taxistas em greve e prostituição infantil), 2006 (espionagem económica) e em 2011 (agitação social e sindical contra as políticas governamentais), foram sempre surgindo referências a actividades de vigilância, escutas ambientais e intercepções telefónicas completamente ilegais levadas a cabo pelo SIS.
Todavia, a posição de todos os governos e de todos os partidos que têm estado no Poder foi também sempre a mesma: negar a pés juntos a existência de práticas ilegais por parte do SIS (e também dos outros serviços de informações), jurar que o respectivo controlo (a cargo de uma Comissão dita de Fiscalização) seria eficiente e que nada de irregular ou ilegal detectara, mas inviabilizar continuamente qualquer investigação efectiva, séria e eficaz acerca das referidas suspeitas de práticas ilegais.
As coisas foram mesmo ao ponto de, em 1997, um confesso espião do SIS – o oficial do exército sul africano do tempo do apartheid e espião dos serviços secretos da África do Sul (BOSS), Pieter Hendrik Groenewald, residente na Parede e que foi detido pela Polícia Judiciária, primeiro sob a suspeita de tráfico de drogas e depois de tráfico de armas – ter confessado, no âmbito do respectivo processo crime, trabalhar para o SIS. Chegou mesmo ao ponto de indicar quem eram os seus controleiros (o agente do SIS António Luís Lopes e o sub-inspector Beirão), quanto recebia por mês e quais os serviços de que fora encarregue sendo o último deles a montagem de escutas ambientais e telefónicas no escritório e na casa de um suspeito de pertencer à máfia russa. Para tal efeito, tinha em sua casa um verdadeiro arsenal (dezenas!) de equipamentos de escuta telefónica e ambiental, incluindo microfones disfarçados em vários objectos, como bolsas de mão ou calculadoras.
Peter Groenewald chegou mesmo a entregar nessa altura às autoridades uma cassete contendo gravações de conversas havidas entre ele e o oficial do SIS, António Luis Lopes, em que era combinada a montagem de tais equipamentos.
E o que fez então o Ministério Público do Tribunal Judicial de Cascais? Não obstante as enormes evidências da prática ilegal pelo SIS de intercepções de conversações, entendeu que esse era um terreno onde não se devia aventurar… E assim, e após dois elementos do SIS terem admitido conhecer o espião sul-africano, mas invocado o segredo de Estado para nada mais dizerem, o mesmíssimo Ministério Público – o tal campeão da luta contra a alta criminalidade, o tal que não teme ninguém!… – não promoveu o levantamento do invocado segredo de Estado e não acusou Pieter Groenewald da prática de escutas ilegais. E este, acusado apenas da posse de material de escuta (isso era impossível esconder ou esquecer pois constava do auto de apreensão), acabou absolvido no mesmo Tribunal de Cascais sob o absolutamente extraordinário argumento da “falta de consciência da ilicitude”, porquanto – coitado… – supostamente não saberia que em Portugal é ilegal a detenção de material de escuta.
E desta forma se caucionou e silenciou, agora não só a nível político, mas também judicial, a impunidade das condutas ilegais do SIS. Cujo exemplo, aliás, frutificou, surgindo notícias de que todas as polícias tinham e têm, afinal, e de forma tão clandestina quanto ilegal, o seu próprio e doméstico “serviço de informações”, designadamente o célebre DIPOL da PSP, suspeito de utilizar veículos com matrículas falsas e de fazer vigilâncias e escutas a agentes policiais dirigentes das respectivas associações socioprofissionais.
Esta triste realidade foi, aliás, desmascarada aquando da nunca verdadeiramente explicada detenção, no dia da greve geral de 27 de Abril de 2012, de 226 manifestantes, junto ao viaduto Duarte Pacheco. Na verdade, tais manifestantes foram percorrendo diversas artérias de Lisboa, sempre acompanhados e escoltados pela PSP (que até cortava o trânsito para eles passarem…), até que foram subitamente metidos, pelo Corpo de Intervenção, numa “caixa”, tendo aí sido revistados e identificados e tendo sido levados a Tribunal no dia seguinte sob a rocambolesca acusação da prática do crime de atentado à segurança do transporte rodoviário que é um crime punido pelo artº 290º do Código Penal com pena de prisão que pode ir até 8 anos!
Uma vez apresentados no Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, os advogados dos citados 226 arguidos, estupefactos (ou talvez já não…), constataram que, do “expediente” remetido pela PSP, constavam fotografias e elementos identificativos constantes de um qualquer ficheiro, completamente ilegal, com referências a outros eventos, designadamente manifestações públicas. E perante as evidências, uma vez mais, de a Polícia estar a levar a cabo ficheiros e serviços ilegais, o que fez o Ministério Público? Para evitar que essa questão fosse conhecida e debatida num julgamento público, arquivou pura e simplesmente o processo por despacho de 10 de Julho seguinte e quanto aos indícios da actuação policial ilegal, nada fez…
O mesmo se passaria depois, aquando da manifestação junto ao Parlamento de 14 de Novembro de 2012, com a realização, pela PSP, de filmagens ilegais (porque não autorizadas pela Comissão Nacional de Protecção de Dados) de manifestantes, da obtenção de filmagens em bruto junto da RTP e a detenção ilegal (não tendo dado origem a qualquer processo crime mas havendo servido para sacar dados, com a revista e devassa das malas, mochilas e telemóveis) de dezenas e dezenas de jovens, durante largas horas, nos calabouços do Tribunal do Monsanto, com a mesma PSP a negar publicamente as mesmas detenções (aliás constatadas in loco pelo então Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados Dr. Vasco Marques Correia). E o que se passou depois? Passou-se que o Ministério Público tudo fez para enterrar o caso e todas as coisas que ele evidenciava, arquivando o processo por várias vezes e fazendo-o arrastar-se até à prescrição do procedimento criminal contra os autores de tais desmandos.
Depois de o Juiz Conselheiro e ex-Procurador Geral da República Dr. Pinto Monteiro ter, já em 2011, declarado publicamente suspeitar ser alvo de escutas ilegais, eis que, em 2015, no âmbito do processo em que eram arguidos dois ex-funcionários do SIS (Jorge Silva Carvalho, que foi depois trabalhar para a Ongoing, e João Luis), acusados de devassar a facturação detalhada de um jornalista, a defesa do primeiro invoca explicitamente que eles se teriam limitado a actuar como era habitual no SIS, invocando desde logo as acções de formação, designadamente em matéria de escutas telefónicas, que eram ministradas aos funcionários do mesmo SIS. Mas também o próprio “Manual de Procedimentos” ao qual o Jornal “I” teve acesso e de que o juiz Carlos Alexandre também declarou ter recebido um exemplar em Setembro de 2016 e o qual, segundo o mesmo jornal, estipula que um oficial de informações pode, à “boa” maneira da antiga Pide, obter notícias através da “intercepção das telecomunicações” (escutas ambientais ou intercepção de dados através de meios electrónicos), vigiar pessoas que não são arguidas nem sequer suspeitas em qualquer processo-crime e pagar a fontes por informações.
Ora, tendo sido requerido ao Primeiro-Ministro o levantamento do segredo de Estado para tais elementos poderem então vir para o processo, o que fez António Costa? Negou tal levantamento por meio de um despacho que classificou de confidencial pelo que nem os fundamentos dessa sua decisão puderam ser conhecidos. E uma vez mais se impediu uma investigação séria acerca do que faz realmente o SIS.
Ficou entretanto a saber-se que, aquando das investigações do processo dos “Vistos Gold”, o SIS procedeu, numa operação em que participou o seu próprio director, Horário Pinto, a um varrimento electrónico do gabinete do arguido daquele processo, António Figueiredo, Director do Instituto de Registos e Notariado, vendo-se assim e de novo um serviço que legalmente não pode fazer a intercepção de comunicações a executar uma contra-intercepção da escuta legalmente decretada por um juiz de instrução criminal e executada pela Polícia Judiciária.
E, de novo, o que aconteceu relativamente ao Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP), do qual faz parte o SIS e que era dirigido, e desde há largos anos, pelo magistrado do Ministério Público Júlio Pereira? Nada, rigorosamente nada, com o mesmíssimo Ministério Público a assobiar para o lado como se não se estivesse perante a marcada indiciação de vários e graves crimes públicos!…
Entretanto, tivemos também de assistir à inaudita vergonha de, na inspecção encomendada pelo governo contra a Ordem dos Enfermeiros, se utilizarem como meios de prova gravações anónimas de alegadas conversações telefónicas de dirigentes da mesma Ordem. E igualmente a essa outra vergonha de, na Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), se ordenar em Agosto de 2019, aos inspectores do trabalho que actuassem como colaboradores da polícia nas operações de vigilância sobre os motoristas de matérias perigosas em greve.
Quase ao mesmo tempo, ficámos a saber que a auditoria ao completo colapso, em 2014, do sistema informático dos Tribunais Judiciais (o Citius) – cujo responsável máximo, Joaquim Morgado, chumbou no concurso para o lugar de Secretário-Geral Adjunto do Ministério da Administração Interna, onde todavia se encontra desde Dezembro de 2018 em regime de substituição… – foi afinal escondida pelo Inspector-Geral das Finanças, Vitor Braz, que a classificou, e na sua integralidade, de confidencial, impedindo o seu conhecimento e divulgação.
Como disse um dia Francisco Salgado Zenha, pior ainda que o “segredo de Estado” é este “Estado de segredo” que tudo cobre e encobre com o manto do silêncio e da opacidade e que impede que este assunto seja discutido e quais os autores dos desmandos anti-democráticos, seja por acção, seja por omissão, confrontados com as suas responsabilidades.
Na Marinha, correm cada vez mais rumores de que os novos submarinos têm capacidades tecnológicas para efectuar, e a longas distâncias, a intercepção de conversações telefónicas, sem que se saiba quem pode fazer, quem faz, em que condições e sob que controle, tais operações, e sem que nunca essa referência tenha sido desmentida.
E há poucas semanas a PSP, confrontada com a ilegalidade – comunicada pela Comissão Nacional de Protecção de Dados – das filmagens por drones, por exemplo, de manifestações, responde acintosamente que a lei está desactualizada e que ela, PSP, vai continuar a cometer a ilegalidade.
Agora, mais recentemente ainda, Frederico Carvalhão Gil, ex-oficial do SIS condenado por espionagem, veio confirmar, ponto por ponto, as actividades ilegais do mesmo SIS e, pior do que isso, a existência quer de avisos prévios acerca das acções de fiscalização (que assim eram tornadas numa farsa), quer de um “sistema informático extra” nos serviços que permitia “escapar ao controle dos magistrados que fazem parte da Comissão de Fiscalização”!?
A questão é, assim, demasiado séria para poder continuar a ser ignorada. As verdadeiras orquestras negras, como estes serviços de informações sem rei nem roque que nas nossas costas têm vindo a ser criados e mantidos, são autênticos Estados dentro do Estado que actuam fora de qualquer controle democrático. E que, com toda a facilidade também, e com as inúmeras informações assim ilegalmente obtidas, podem desenvolver toda a sorte de manobras de chantagem e de extorsão, podem abater cidadãos, instituições e governos e podem apear e colocar no Poder quem bem entendem, tudo isto à margem de qualquer processo de decisão ou de controle democrático.
E que, enfim, e como se tem visto, representam um poder com quem nem o Ministério Público, nem o Primeiro-Ministro, nem Partidos parlamentares se ousam meter.
Compete, pois, aos cidadãos democratas lutar contra este estado de coisas. E o primeiro passo desse combate passa precisamente pela denúncia destas autênticas novas Pides, com firmeza e sem receio de quem, cobardemente, se acoita na sombra da impunidade.
António Garcia Pereira
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