Queres tomar uma chávena de bondade comigo?

Vejo o mundo com olhos diferentes. Mais entendidos. Menos dolorosos. Mais alargados. Mais lacrimosos. Menos escondidos. O meu olhar metastizou-se pela corrente sanguínea. Carregou um código-postal que o encaminhou directamente às emoções que alimentam o meu coração. Sou culpada de todos os crimes de que sou acusada. Estou inocente do crime que carregou até à boca, o meu olhar sobre o pequeno mundo que conheço. Mais alargado. Hoje. Mas menos entendido. Por ser um crime doloso. De difícil reabilitação na consciência dos Homens. 


O meu crime foi o da submissão sem pensar na fuga para a liberdade. O meu crime relevou-se na minha aceitação. Tive uma nota de rebelião que vos contarei a seu tempo. Fui uma escrava. A última escrava raptada antes do final da escravatura como era prática corrente. Corria o ano de 1860. 


Permitam-me contar-vos a história, agora que descobriram o meu rasto.


Tornei-me uma mulher livre cinco anos depois de ter chegado a Selma, no Alabama da América. Não sou definida pela escravidão, mas pela escuridão da vida a que me sujeitaram e que me tornou submissa, fazendo-me aceitar todas as circunstâncias. Não escolhi ser assim. Deixei-me ser. Por melancolia e caridade. Não por preguiça, já que pensava fugir todos os dias da minha vida de escrava. Mas, há sempre um mas, quando pensamos nas escolhas que fazemos, ser bondosa comigo mesma, ao tornar-me complacente com os factos da vida, tem uma vantagem preciosa…tal como óleo de palma da minha terra natal – que hoje se negoceia como os escravos de ontem – escorre pela alma alimentando-a. 


Perdida que estou, neste contar da minha história, que quase me esquecia de vos dizer que me chamo Redoshi. 


Nasci num país longínquo deste onde vivi quase toda a vida, que hoje se chama Benin. Um país de riqueza abundante, com sete reis e sete minas de ouro. Lembro-me de uma infância feliz de brincadeiras em encantada liberdade. Tinha mais ou menos 12 anos, por isso me lembro tão bem desta fase da minha vida. Os meus pais não me queriam vender para sobreviver, nem precisavam, mas quem se importava? 


Fui raptada por homens estranhos à minha família, que me acorrentaram e taparam a boca. Era uma criança. Juntamente com outras crianças e adultos fui levada numa barcaça que desceu um rio até chegarmos ao porto de Cotonou. Nunca antes lá tinha estado. Mas já tinha ouvido falar. Fomos colocados à venda numa praça. Alguns saíram directamente da barcaça para um barco muito grande. Tão grande como aquele barco chamado “Amistad” de um filme que vi e contava a nossa história. Venderam-me por poucos dolars. As crianças valiam pouco já se sabe. Os nossos donos tinham que nos alimentar e deixar crescer, para que tivéssemos algum préstimo que fosse levado a sério. 


Juntamente com todos os que fizeram aquela viagem (onde alguns morreram sendo os seus corpos atirados ao mar escuro), fui comprada e depois revendida a um banqueiro de Selma, dono de uma plantação de algodão onde vivi até morrer em 1935, com quase 90 anos de idade. 


Casaram-me com um bom homem, também ele escravo. Muito mais velho que eu e de outra tribo. Fizémos juntos a viagem. Ele tomou conta de mim nessa viagem e continuou até morrer. Fomos vendidos como casal. Valíamos mais. Ele tinha uma família na sua terra e agora onde estávamos constituímos outra. Tivémos filhos que nos salvaram de morrer. Mal nos entendíamos senão no essencial. Eu era quase a filha de um homem adulto e também sua mulher. 


Depois do rapto, a viagem, a venda, os grilhões e os maus tratos já nada era estranho. Era tudo uma gigante e feia realidade. Do tamanho de uma plantação de algodão onde não via o fim.


Fomos ambos chicoteados, torturados, deixados amarrados sem comida e sem água por dias seguidos, à vontade do nosso dono e capatazes. Trabalhámos sem descanso. Ouvíamos gritos constantes na plantação de algodão. Alguns eram os nossos. Recebíamos castigos humilhantes e com o tempo, muitas cicatrizes se foram amaciando quando as acariciava com os meus dedos. 


Durante a guerra civil muitos homens tiveram de ir lutar, por isso as plantações mais precisavam de mão-de-obra. Eram oferecidas recompensas elevadas pela captura de escravos que tentassem fugir. Quando Harriet Tubman libertava às escondidas e tentava convencer milhares de escravos a fugir, eu já tinha filhos e com eles muito medo de me confrontar com a insegurança e o desconhecido que viria da fuga. Decidi ficar na fazenda. Era o mundo que eu conhecia.


Estávamos proibidos de falar a nossa língua. Foram-nos dados nomes brancos. Sally Smith era o meu. Como rebelião, como vos contei atrás, ensinei a minha língua materna aos meus filhos. Alguma coisa importante e bonita haveria de perdurar daquela maldita vida que me calhava em sorte. Os meus donos nunca haveriam de me tirar a dignidade de ser fiel à minha origem. Esse orgulho nunca haveria de lhes pertencer. A língua materna é a minha história. A minha memória. A minha insubmissão. Entre nós, só se falava a língua materna Mocualé. Era o nosso prazer escondido. Por nenhum momento me senti culpada deste crime.


A escravatura foi proibida antes da guerra civil americana (por isso vim no último barco de escravos raptados) apesar da sua abolição ter sido decretada por Abe Lincoln apenas em 1863. Nessa altura, ainda havia 4 milhões de escravos a libertar. Entre eles eu e a minha família. Depois da libertação ficámos na plantação por mais de 70 anos, de facto, até à minha morte. Já não tinha significado fugir. O meu país, o Benin, ficava num lugar inalcançável. De lonjura sofri toda a vida, contudo, naquela plantação fiz do algodão a suavidade possível da minha vida livre, tal como os seus espinhos foram as feridas abertas que carreguei enquanto última escrava raptada a chegar a terras americanas, no Clotilde, último barco negreiro. 


Neste país onde estávamos, não conhecíamos nenhum outro lugar. Parecia normal ali acabarmos a vida e ali cantarmos os nossos “blues” deixando-os como memória da origem do nosso sangue.

Hannah Durkin investigadora da Universidade de Newcastle descobriu os registos da última sobrevivente do último navio negreiro dos EUA cuja história criei com base nos dados encontrados.

Anabela Ferreira

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *