Subitamente, eis que se descobre que, afinal, na sociedade portuguesa e em particular no mundo do futebol grassa o racismo, de par com o culto da violência cega e dos ódios mais primários e com a lógica da alcateia que ulula e saliva de satisfação com a ofensa, a humilhação e o amesquinhamento do outro.
Os contínuos e miseráveis insultos racistas perpetrados no último Domingo, desde os exercícios de aquecimento antes do início do jogo até ao momento da sua saída de campo, contra o futebolista maliano do Futebol Clube do Porto, Moussa Marega, constituem um episódio absolutamente miserável, indigno de seres que se dizem humanos, de todo em todo inaceitáveis numa sociedade democrática em que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, de todos os cidadãos, não tenham sido ainda totalmente aniquilados.
Como absolutamente miseráveis são as posturas de quem, como o árbitro (que não interrompeu o jogo nem tomou então qualquer medida) ou os dirigentes e o treinador da equipa adversária, fingiu “não ter ouvido” ou “não ter percebido” aquilo que todos os outros, os que estavam no estádio e os que assistiam ao jogo pela televisão, ouviram e perceberam perfeitamente.
E mais miseráveis ainda, se possível, são as posições dos que logo apareceram a procurar desvalorizar ou até desculpabilizar o que se passou, tratando de proclamar – como fez o deputado fascista André Ventura – que “os portugueses não são racistas” e que “há outras situações que acontecem diariamente e ninguém faz nada” e que “quando é um polícia ninguém quer saber”. Ou dizendo complacentemente – como inclusive consagrou um lastimável Acórdão da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa de há uns 4 meses atrás – que insultos e obscenidades dos mais alarves constituem um comportamento “tolerado nos bastidores da cena futebolística”, que deveria ser “enquadrado no mundo do desporto, em particular do futebol” e “não sancionado penalmente”, desta forma se abrindo as portas para se tolerar que, em campos de futebol, possam também ser praticados actos e proferidas palavras de índole indiscutivelmente racista.
Depois, temos todos aqueles que pouco ou nada têm feito para combater as ideias racistas, xenófobas e até indisfarçavelmente nazis (como as das teorias das pretensas superioridade e inferioridade das raças, do medo e do ódio aos imigrantes, aos ciganos, aos homossexuais ou simplesmente a todos os que ousam ser ou pensar diferente). Porque são precisamente esses que pouco ou nada fazem contra tais ideias que agora aparecem a produzir enfáticas e gongóricas declarações de condenação do sucedido. Desde os Presidentes de Clubes onde, com o apoio e patrocínio das respectivas direcções, pululam hordas de energúmenos idênticas às que insultaram e humilharam Marega, até aos organismos e dirigentes desportivos que não sancionam exemplarmente estes e outros comportamentos antidesportivos e antidemocráticos. Desde o Presidente da República e Primeiro-Ministro até dirigentes partidários e deputados.
E é caso para perguntar onde estavam todos esses responsáveis políticos quando, por exemplo, o agente da PSP Manuel Morais foi obrigado, pela própria Direcção, a sair da associação sócio-profissional de polícias (ASPP) a que pertenceu durante 30 anos por ter cometido o “crime” de fazer um estudo académico onde examinou e assinalou práticas e concepções racistas no seio das corporações policiais? Ou quando ele foi objecto de um processo disciplinar instaurado pela Direcção Nacional da PSP devido ao facto de ter declarado o seu repúdio pela instrumentalização de uma manifestação de polícias pelo deputado André Ventura?
Onde estavam esses responsáveis perante as consecutivas denúncias, quer por parte da Provedora de Justiça, quer de organismos internacionais, acerca de tratamentos cruéis e desumanos, agressões absolutamente desproporcionadas e até disparos mortais praticados consecutivamente pelas polícias portuguesas contra cidadãos ciganos ou de raça negra?
Podem muitos vir agora tentar fazer passar a ideia de que aquilo que se passou com o jogador Marega se tratou de um caso isolado, mas a verdade é que de todo não o foi. Não só várias selecções nacionais como as da Bulgária, Roménia, Hungria, Sérvia e Eslováquia já foram sancionadas, como diversos jogadores, tais como Lilian Thuram, Kalidou Koulibaly, Balotelli, Nelson Semedo, Lukaku e Iñaki Williams têm sido, ao longo de anos, objecto de provocações e insultos racistas.
Mas tal já sucedeu também no nosso próprio país, onde clubes como, por exemplo, o Leixões, o Rio Ave e o Sporting de Braga já tiveram sanções (aliás, absolutamente irrisórias) por comportamentos similares por parte dos seus adeptos. A jogadora norte-americana Shade Pratt, da equipa de futebol feminino do Sporting de Braga, denunciou publicamente insultos racistas de que também foi alvo em Outubro passado. E só em 2019, foram 15 os processos instaurados com base em queixas por demonstrações racistas em recintos desportivos, sendo decerto bem superior o número de casos não participados.
Esta questão é, porém, muito mais profunda do que uma “simples questão” de cor da pele e não é possível travar um combate consequente contra o racismo sem compreender as suas origens e a sua natureza de classe, pois que ele é uma manifestação de poder e uma ideologia de classes dominantes.
A escravidão e o comércio de escravos foram absolutamente essenciais para o desenvolvimento do capitalismo, propiciando a concentração de enormes massas de dinheiro nas mãos dos comerciantes de escravos e das burguesias europeias.
Tendo surgido com a escravidão, o racismo não é algo “próprio da natureza humana” ou sequer o fruto da mal explicada perversidade de uns quantos, mas antes um fenómeno historicamente saturado, uma ideologia criada para justificar e preservar a escravização dos povos. Primeiro, a escravização dos povos africanos. Depois, a escravização sob a forma do assalariamento e da criação de “exércitos industriais de reserva” compostos por trabalhadores mais mal pagos e utilizados pela classe dona dos meios de produção como um instrumento de pressão contra os outros trabalhadores pelo abaixamento dos seus salários e pelo corte dos respectivos direitos.
Por isso, os trabalhadores brancos nunca se poderão verdadeiramente emancipar numa sociedade em que os trabalhadores negros permaneçam marcados a ferro.
Em Portugal, antes do 25 de Abril, o racismo representava a “justificação ideológica” para a sobre-exploração e a repressão dos povos das colónias e a sua submissão a uma situação de quase escravatura, tratando, dentro da velha e relha táctica do “dividir para reinar”, de atirar o povo português contra esses mesmos povos das colónias e justificar assim a sua dominação e a própria guerra colonial.
O racismo e a xenofobia foram servindo igualmente para, em nome da pretensa inferioridade da raça, “justificar” pagar salários mais baixos e impor condições de vida mais degradas e assim rebaixar os salários e as condições de vida do conjunto dos trabalhadores.
Mais recentemente, as ideias racistas e xenófobas visaram, e visam, fazer crer, designadamente aos povos da Europa, e em particular dos países mais fracos, que os problemas que os afligem são o resultado, não da imposição dos interesses do grande capital financeiro e dos respectivos políticos e das suas “reformas” (como as da nomenklatura de Bruxelas e em especial da Tróica), mas sim dos imigrantes que “só vêm tirar os nossos empregos, viver dos nossos subsídios e assaltar, roubar e matar quem, como os europeus de origem, vive honestamente do seu trabalho”.
Se personagens como Ricardo Salgado, Oliveira e Costa e quejandos desviaram e se apropriaram de milhares e milhares de milhões de euros, nenhum dos Venturas da nossa praça se lembra de referir a cor branca da sua pele. Tal como a cor negra de Isabel dos Santos nunca constituiu qualquer motivo de reparos, muito menos de insultos, enquanto banqueiros, empresários e responsáveis políticos de todos os matizes a incensavam e glorificavam como magnífica empreendedora e empresária de sucesso, e sem que ninguém se tivesse importado com a circunstância de, com os seus negócios, ter, só no nosso país, metido ao bolso 494 milhões de euros.
Sem ideologia e sem organizações revolucionárias, com os partidos de “esquerda” a abandonaram aos partidos e forças da direita, uma a uma, todas as principais causas que sempre caracterizaram as forças progressistas (do combate à pobreza até à Saúde e Educação para todos, passando pela luta contra todas as formas de injustiça, prepotência e de arbítrio) e com a mentira, a aldrabice e a corrupção a grassarem cada vez mais e com a permanente e despudorada partilha, entre os partidos do Poder, de toda a sorte de tachos e benefícios da mesa do Orçamento, o terreno vai assim ficando cada vez mais livre para os populistas mais reaccionários.
Populistas estes que gritam muito alto e que criticam e insultam tudo e todos, mas sem nunca apresentarem uma medida ou uma política para a resolução dos problemas e muito menos esclarecerem (ao menos por agora, enquanto não chegaram ao Poder…) que tipo de sociedade pretendem construir e como pretendem lá chegar. Populistas que não gostam de pobres, de doentes, de deficientes, tidos como gente “a mais” que não produz. Populistas que têm horror à cultura e à liberdade de expressão de pensamento. Populistas que cultivam e praticam o ódio vesgo pelos negros, pelos ciganos, pelos homossexuais, pelos imigrantes, pelos simplesmente diferentes, sobretudo se estes, ainda por cima, recusarem o estatuto de “cidadãos de segunda”, ou seja, de escravos.
O fundo ideológico de barbáries como a do passado Domingo é, assim, o do grande capitalismo financeiro e das teorias que o servem: o individualismo extremo, a negação violenta de qualquer ideia de solidariedade, de esforço colectivo e de entreajuda, a apresentação do “outro” como um concorrente a vencer por qualquer meio e, mais do que isso, como um inimigo a abater, com a pregação do ódio mais cego e da violência mais gratuita e a afirmação, mais clara ou mais encapotada, das máximas (levadas à sua mais extrema aplicação no III Reich) de que “os fins justificam os meios” e de que “dos fracos não reza a História”.
A destruição da capacidade de organização e de acção colectiva daqueles que nada têm de seu e tudo fazem na sociedade, a transformação dos membros dessa mesma sociedade em seres tão “acarneirados” quanto isolados e até permanentemente acossados, a sucessiva corrosão do seu carácter procurando transformá-los em seres acéfalos, incultos, sequiosos de despejar o seu ódio contra quem vejam numa posição mais débil, sempre foram ao longo da História, e continuam sendo, o terreno fértil das “tropas de choque” que hoje, fazendo dos estádios “tubos de ensaio” das suas “capacidades”, cospem, insultam e humilham adversários desportivos e amanhã, se lhes for dada oportunidade para isso, perseguirão, torturarão e assassinarão adversários políticos.
Duas ideias finais:
A primeira é a de que se os Ventura cá do burgo crescem de intenções de voto, até já vão beneficiando de um crescente tempo de antena e, quais lobos vestidos com peles de cordeiro, se procuram apresentar como “dizendo aquilo que os portugueses querem dizer”, não é porque as suas ideias mereçam outra coisa que não seja o seu desmascaramento contínuo e implacável, mas sim porque os partidos e dirigentes políticos da área do Poder lhes escancaram por completo as portas. Até um dia acordarem sentados em cima de baionetas e chorarem então autênticas lágrimas de crocodilo…
A segunda é a de que, apesar de tudo, o mundo não está perdido. Há esperança, quando vemos que, como dizia o poeta, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”.
Assumirmo-nos como essa Resistência significa compreendermos que só é possível sermos livres e iguais numa sociedade em que a lógica do lucro e da exploração e opressão do homem pelo homem hajam sido derrotadas e banidas e empenharmo-nos e darmos o nosso contributo para esse combate por um mundo melhor.
E sentimos, sem dúvida, um grande incentivo quando vemos o belo gesto de um jovem jogador de futsal do Sporting, num recente jogo contra o eterno rival, o Benfica, ao esclarecer o árbitro de que a bola que acabara de pontapear fora embater não no braço, mas na cara do seu igualmente jovem adversário e que por isso a grande penalidade que fora inicialmente marcada a favor da sua equipa, fora-o erradamente e tinha, por isso mesmo, que ser dada sem efeito, como efectivamente foi.
Que enorme gesto, que belo e inspirador exemplo e sobretudo que grande lição – em especial aos energúmenos ululantes, profissionais do insulto e da agressão – deu este jovem!
Mostrando que um adversário é um oponente a vencer lealmente e não um inimigo a abater seja por que métodos for, que a verdade dos factos deve ser respeitada, mesmo quando não nos é favorável, e que a mentira, a infâmia e a humilhação são inaceitáveis demonstrações da maior baixeza moral. E, em suma, que se há seres superiores a outros, não é pela cor da pele, pela origem étnica ou pela ascendência económica e social, mas apenas pela elevação dos seus valores, dos seus princípios e das suas atitudes.
António Garcia Pereira
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