A corajosa e bem documentada reportagem televisiva da Jornalista Ana Leal sobre os abusos cometidos por Paula Brito e Costa, Presidente da associação Raríssimas, pôs a nu factos que a todos nos devem indignar.
Os luxos e os abusos eram mais que muitos, ainda por cima numa instituição de solidariedade social amplamente financiada com dinheiros públicos. Desde um “modesto” vencimento de 3.000€ (quando o máximo que a lei permite são 1.685€) até ao recebimento de mais 1.300€ em ajudas de custo, passando por outros 1.500€ em deslocações de casa para o trabalho apesar de ter um luxuoso BMW 520 atribuído para uso total e cujo leasing, por sua vez, era de 921,59€ mensais). E a que se somavam ainda um PPR (Plano de Poupança Reforma) de 816,67€ por mês e o uso, para benefício pessoal, do cartão de crédito da Associação, com o qual foram efectuadas compras de centenas de euros em vestidos de luxo e marisco.
A tudo isto somavam-se tiques feudais e ditatoriais como o de gritar, em videoconferências, “andor” relativamente aos que ousassem levantar um só cabelo contra a sua “magnífica” gestão, ou o de impor que as funcionárias que se encontravam perto do seu gabinete se levantassem das cadeiras sempre que Sua Alteza Real entrava ou saía do dito gabinete, ou enfim o de apresentar o seu filho (que a própria empregou na Associação, assim como ao marido) como o “herdeiro da parada”…
É evidente que os factos apresentados, para mais confirmados ao vivo por ex-tesoureiros e ex-dirigentes da Associação, não deixaram à dita senhora outra alternativa que não fosse a de, claro que proclamando ser vítima de uma qualquer “cabala” e as acusações estarem “descontextualizadas”, apresentar a respectiva demissão. O mesmo caminho seguindo o agora ex-Secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado, contratado pela Raríssimas, como “esclareceu” o próprio, na qualidade de “Consultor para a área da organização e serviços de saúde” por meio de uma avença de “apenas” 3.000€ mensais, pagos, porém, e segundo denúncia de um dos ex-tesoureiros, com dinheiros do Fundo de Socorro Social, sendo essa circunstância do conhecimento do avençado.
Há, porém, neste caso, muito mais do que os já de si absolutamente inaceitáveis abusos cometidos ao longo de anos e anos por uma Presidente de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que ainda por cima recebeu da Segurança Social mais de 2,7 milhões de euros, só nos últimos 5 anos, e no âmbito do Ministério do Trabalho e Segurança Social.
É que se vieram entretanto a saber duas coisas, que não podem nem devem, de todo, ficar por aqui.
Por um lado, a referida senhora soube ir construindo uma rede de contactos e influências que, exactamente sob o subterfúgio da “divulgação e visibilidade da Associação” (o argumento usado para justificar as astronómicas benesses como as ajudas de custo, o carro de luxo e o cartão de crédito), serviram para ir criando uma autêntica almofada protectora em torno da sua figura. Desde Maria Cavaco Silva a Marcelo Rebelo de Sousa, passando pela Rainha de Espanha e outros personagens “ilustres”, tal teia de amizades e cumplicidades foi sendo paulatinamente construída e que, claro, abrangia igualmente dirigentes políticos e deputados. O actual ministro do Trabalho e de Segurança Social Vieira da Silva já fora, entre 2013 e 2015, Vice-Presidente da Assembleia Geral da Raríssimas. E a respectiva esposa, Sónia Fertuzinhos, deputada do PS, viu os custos de uma sua viagem de trabalho à Suécia serem bondosa e antecipadamente adiantados pela Associação. Entretanto, estava também já indigitado para ser o próximo Vice-Presidente o deputado do PSD (e membro da Comissão Parlamentar da Saúde) Ricardo Batista Leite, o qual, perante o estalar das denúncias, se escapuliu a tempo.
Ora, foi essa teia de cumplicidades e compadrios que precisamente propiciou o desenvolvimento e a impunidade de toda a situação.
Por outro lado, e tão ou mais grave ainda, a denúncia de irregularidades praticadas pela Presidente da Raríssimas já havia sido feita, e desde há vários meses, a diversas entidades, que, porém, nada fizeram e que agora até têm o supremo descaramento de invocar que “nada sabiam”.
Na verdade, Paula Brito e Costa também fundou, em 2008, uma outra entidade, a FEDRA – Federação de Doenças Raras, à qual tratou de presidir desde então. Até que, perante a denúncia, feita na Assembleia Geral de Março deste ano, de condutas irregulares da sua parte, suspendeu o respectivo mandato. Em causa estava nomeadamente o facto de ter decidido ser ela própria a representar a Federação numa deslocação ao Brasil onde depois terá ido acompanhada do marido e onde terá também alugado um veículo de luxo (BMW) e feito uso de um SPA no valor de 400€, tudo isto a expensas da FEDRA.
Acontece que, tendo tal denúncia sido feita, e por escrito, pela Secretária da Direcção da Federação, quer ao ISS – Instituto da Segurança Social, quer ao INR – Instituto Nacional para Reabilitação, até agora rigorosamente nada acontecera. E o Presidente da Segurança Social veio mesmo dizer que não tinha recebido a carta de denúncia e até pedia à estação televisiva onde foi emitida a reportagem que lha enviasse agora!…
Mais! Em Agosto deste ano seguiu para a mesmíssima Segurança Social a primeira denúncia, feita por um dos ex-tesoureiros, agora acerca das graves irregularidades praticadas na Raríssimas. Como nada se passasse nem nenhuma resposta recebesse, cerca de um mês depois remeteu-a para o Ministro do Trabalho e da Segurança Social Vieira da Silva. E como ainda assim o silêncio e a inacção se mantivessem, remeteu-a também para o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. E agora todos estes responsáveis vêm pretender desconhecer em absoluto tudo o que se passava na referida Associação. Marcelo teve mesmo o desplante de afirmar que “não devia ser necessário haver denúncias para o Estado saber o que se passa nestas instituições”. E Vieira da Silva correu a anunciar (como acontece sempre nestes casos) uma “inspecção urgente” à Raríssimas, inspecção essa que, pelos vistos, nunca existira ou nunca funcionara antes. É preciso ter descaramento!…
O que tudo isto revela é algo para que vimos, desde há muito, chamando a atenção. E de que o Ministério do Trabalho e da Segurança Social e os serviços da mesma Segurança Social são um tão lastimável quanto significativo exemplo. Habituados a não terem que prestar contas a ninguém, conhecedores do estatuto de impunidade que a completa ineficácia, quer da Justiça Administrativa (o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por exemplo, leva 9 a 10 anos a proferir uma sentença de anulação de um acto ilegal da Segurança Social), quer da Justiça Penal (onde o Ministério Público nunca descortina indícios suficientes da prática de crimes como os de abuso de poder ou de gestão danosa), tais serviços mostram a sua verdadeira face e a sua real natureza.
São fracos e inertes para com os ricos, os poderosos e os influentes, nunca vendo nada do que de grave, irregular ou ilegal se passa sob os seus narizes. Mas são fortes e implacáveis para com os fracos e os pobres.
A mesma Segurança Social que deixa tranquilamente fluir dívidas de milhões e milhões de euros de patrões sem escrúpulos, não lhes instaurando execuções e até lhes passando a declaraçãozita de que “têm a situação contributiva regularizada” para assim poderem apresentar-se a concursos e aceder a fundos públicos, é a mesma que se encarniça contra o pequeno devedor, efectuando penhoras que deixam o beneficiário com muito menos do que o salário mínimo nacional. Que levanta toda a sorte de obstáculos burocráticos a quem quer trabalhar honesta e correctamente na área da solidariedade social. Ou que, arrogantemente e contra a lei expressa, se escusa a pagar o subsídio que é devido a um cidadão desempregado ou os salários intercalares (para além dos 12 meses a cargo do patrão) a um trabalhador ilegalmente despedido. E tudo isto sem se dignar prestar qualquer informação ou dar qualquer explicação. “Informações” e “explicações” essas que, todavia, logo sobram quando se trata de, como agora, procurar justificar o injustificável.
Todas estas situações são do inteiro conhecimento e da absoluta responsabilidade (e, como se vê, do seu completo interesse pessoal e social) dos dirigentes políticos e dos quadros superiores da Administração Pública. E, por isso, todas estas “explicações” do “eu não vi” e do “eu não conheço” por parte desses dirigentes políticos e desses quadros para casos como o da Raríssimas são, afinal e infelizmente, frequentíssimas. E representam mesmo um imenso e pegajoso lodaçal e um insulto à nossa inteligência e à nossa cidadania.
É mais do que caso para, parafraseando Cícero, exclamarmos bem alto: “Até quando abusareis vós da nossa paciência?!”.
António Garcia Pereira
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