Revisão Constitucional? Viva a resistência!

A disponibilidade, já publicamente manifestada, tanto do PSD como do PS, para levarem a cabo uma revisão da Constituição tem um tão importante quanto significativo objectivo comum: o de, em nome da necessidade e da eficácia, eliminar os últimos obstáculos constitucionais a que os órgãos do Poder, em particular o governo e as autoridades administrativas, possam restringir, suspender e até aniquilar direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, sob a invocação da bondade ou da legitimidade de certos fins, sem “empecilhos” como os das reservas de competência legislativa do Parlamento ou da necessidade de mandato judicial.

Porque esse é um progressivo e até relativamente silencioso (ou silenciado…) processo de aniquilamento da Democracia já conhecido de outras épocas, ainda que, quase sempre, e sobretudo no início, camuflado de outras vestes, julgo oportuno trazer aqui parte do texto-base da “Aula Aberta” com que, no passado dia 14/11, se celebraram no ISEG, a minha Escola, os meus 70 anos de idade e mais de 47 anos de docência universitária, ainda que ela tivesse sido mais direccionada para as questões do Trabalho e do Direito do Trabalho no século XXI.

O ideário do desmantelamento da Democracia

O conjunto de medidas aparentemente técnico-jurídicas, mas realmente político-ideológicas, que se pretendem viabilizar é sustentado e legitimado por um ideário não só do campo político geral, mas também do âmbito da própria dogmática jurídica que importa pôr a claro. Esse ideário, que, repete-se, nada tem de “técnico”, assenta num conjunto de concepções básicas que assim se impõe analisar criticamente, a saber:

  • Desvalorização do Trabalho como instrumento de afirmação e realização pessoal e social, e promoção permanente e absoluta dos valores do poder, do dinheiro e do sucesso a todo o custo;
  • pregação de um individualismo feroz, que passa pela concepção de todos os outros, a começar pelos próprios companheiros de trabalho, como adversários a ultrapassar, senão mesmo como inimigos a “abater”, e pela consequente defesa da “lei da selva” nas relações pessoais e sociais;
  • gestão “científica” do medo do estrangeiro, do deficiente, do diferente, do divergente, do “outro”, pois é muito mais fácil dirigir e controlar cidadãos, e sobretudo cidadãos trabalhadores, permanentemente amedrontados, divididos, instáveis e incansáveis, (sobre)vivendo e trabalhando como autênticos novos escravos;
  • desprezo e ataque aos mais fracos e vulneráveis, apresentados como seres “inferiores” e fontes de encargos e despesas escusados, que apenas prejudicam os restantes membros da sociedade, afirmando-se assim, como valor superior (e tal como justamente assinala Hannah Arendt), a sobrevivência dos mais aptos e dos considerados “superiores”.
  • utilização de uma linguagem pretensamente técnica (e até frequentemente em língua inglesa…) para assim procurar ocultar e mistificar a verdadeira natureza das medidas. Deste modo, o encerramento de escolas, centros de saúde, maternidades e tribunais é apresentado como mera “reorganização do mapa”, a restrição dos direitos sociais e o abaixamento das pensões como “garantia de sustentabilidade”, os despedimentos como “eliminação das gorduras supérfluas” ou de “processos de downsizing”, os cortes nos salários como “reajustes”, etc., etc., etc. Tudo isto a par de científicos e maquiavélicos mecanismos de manipulação das massas, designadamente com o uso das redes sociais, com a acrítica e mesmo bestializada mobilização dos “nossos” contra “os outros”, com a utilização do ódio e do insulto como instrumentos para rebaixar os adversários (ou simplesmente os divergentes), com a completa, intencional e programada falsificação dos factos e a sua substituição pelas verdades “oficiais” e “alternativas”, através da persistente utilização de uma linguagem tão aparentemente simples quanto ficcional, feita essencialmente de meros “slogans” e soundbites (de que, por exemplo, o Facebook, mas sobretudo o Twitter, são instrumentos privilegiados) e com uma Comunicação Social de um modo geral amorfa e suficientemente domesticada.

Uma sinistra combinação

Do ponto de vista jurídico-formal e da construção do discurso legitimador deste ataque aos direitos, não só laborais como também civis e políticos, é também muito interessante verificar como se assiste a uma curiosa, retrógrada e até terrorista combinação – designadamente em nome da pretensa necessidade de desmantelamento do Direito do Trabalho ou então da edificação de um Direito do Trabalho “de emergência”, ou “da”/ “na” crise – de concepções ultra-liberais (como as dos gurus da famigerada Escola de Chicago) com as concepções institucionalistas e autoritárias do centro da Europa dos anos 30. 

Deste modo, ao individualismo extremo, chamado a legitimar, em nome da “liberdade contratual” e da “autonomia da vontade das partes”, o predomínio do contraente mais forte e a enfraquecer a dimensão das relações colectivas e os sentimentos e laços de solidariedade, juntam-se então as teses institucionalistas e autocráticas. 

Estas teses isolam o indivíduo em organizações de massa indiferenciadas, tornando-o assim facilmente manipulável e dominável, e apresentam a sociedade como um corpo social, constituído por sub-corpos sociais (Família, Escola, Empresa) em que, pelo chamado princípio da liderança (Führerprinzip), todos têm de ter um chefe (ou Duce ou Führer) indiscutível e indiscutido, o qual, ao nível da sociedade em geral, constitui a fonte legitimadora de todas as normas. E, assim, dentro da lógica destas concepções, e para usar a famigerada expressão de Carl Schmitt, o grande construtor da dogmática jurídica nazi, “O Führer [o chefe do Executivo] é quem protege o Direito”. 

Deste modo, de um ultra-positivismo legalista se passa, então e consoante as conveniências do momento, para uma versão modernizada da tristemente célebre teoria do “pensamento da ordem concreta”, estruturante do pensamento jurídico-político do III Reich, e que já foi reeditada depois, designadamente na altura da Presidência dos EUA George W. Bush, pelo jurista Antonin Scalia (que posteriormente chegou a juiz do Supremo Tribunal…), sob a forma da “teoria do executivo unitário”, consistente em que tudo o que o Führer, o Presidente ou o chefe do Governo faz é necessariamente legal, visto ser ele a Autoridade Executiva Absoluta.

E é fácil de ver onde rapidamente conduziram este tipo de teses – por exemplo, à também tristemente célebre teoria do “memorando sobre a tortura” de John Yoo, que não significa mais do que isto: os EUA não torturam, logo, se empregam violência nos interrogatórios, designadamente nos realizados no Iraque, isso não pode ser tortura e está legitimada por natureza.

A teoria legitimadora da Ditadura

Na sequência destas concepções, e assente na ideia de que todo o direito é “direito situacional”, Schmitt construiu então uma teoria legitimadora da ditadura, de acordo com a qual o fundamento da validade do Direito já não está sequer na norma, mas sim no monopólio decisório, de que é titular o soberano ou a autoridade executiva. Assim, a Constituição deixa de ser concebida como um instrumento de criação de limites jurídicos ao exercício do poder político e a fonte de legitimação de tal poder político passa a ser simplesmente a autoridade estatal, a qual, “para criar direito, não precisa de ter razão/direito”, e pode assim, em nome de interesses superiores que ela alegadamente personifica e representa, suspender, nos chamados estados de excepção (ou até fora deles) a própria Ordem Jurídica. 

É, em todo o seu “esplendor”, a tese do auctoritas facit legem, que foi depois devidamente recauchutada, primeiro na época da crise financeira e depois na da crise sanitária do século XXI, para a versão do necessitas facit legem, com o reconhecimento aos Executivos ditos democráticos quer da qualidade de uma espécie de guardiões únicos da Constituição, quer dos poderes de, perante as tais situações ditas de “excepção” (como as de crise política, financeira ou sanitária), fazerem cessar a aplicação da Lei Fundamental e suspender os direitos nela consagrados, operando assim verdadeiras revisões constitucionais não declaradas para depois fazerem as revisões formais sob o pretexto de que estas já correspondem ao que se pratica… Recorde-se que nos anos 30 do século XX em Portugal, em pleno fascismo, já este tipo de teorias – difundidas, entre outros, por Fezas Vital – significavam que, para o jurista digno desse nome, “fora das normas queridas e sancionadas pelos governantes, não há Direito, logo, não há direitos”!

Mas se este tipo de teses legitimou os maiores e mais horrendos crimes contra a Humanidade cometidos pelos regimes nazi e fascistas, é preciso também dizer, e com toda a clareza, que os que as elaboraram e desenvolveram e os que perante elas se calaram têm também as mãos sujas do sangue derramado por essas mesmas atrocidades. Tal como os mais recentes autores e cultores das teses da “emergência sanitária”, da “legitimidade dos fins” e da aferição da justeza dos meios unicamente em função da sua maior ou menor eficácia para alcançar tais fins são directamente responsáveis, não só pelos desenfreados ataques, cometidos por governos ditos democráticos, contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como também pelas respectivas consequências sociais e políticas.

Os neo-liberais: menos Estado, mas mais Estado

Por outro lado, às exigências neo-liberais da máxima ausência de intervenção do Estado, designadamente na economia (por exemplo, com privatizações das empresas e sectores mais lucrativos), e da máxima desregulação das relações sociais, com as relações laborais à cabeça (e com a instituição da lei do mais forte a nível das contratações e o “darwinismo social”, ou seja, a “lei da selva” a nível da sociedade), juntam-se tão curiosa quanto significativamente as exigências da máxima intervenção dos poderes do Estado e dos seus órgãos, designadamente dos legisladores, das polícias e dos tribunais, para perseguirem e punirem os comportamentos sociais e políticos considerados como susceptíveis de porem de alguma forma em causa a ordem política e social vigente. 

E assim se defende a hiper-regulação e a hiper-punição administrativa, disciplinar e até criminal das condutas dos cidadãos e das suas organizações, com o desmesurado aumento, por exemplo, das normas e sanções penais. A perseguição e criminalização da pobreza, bem como dos movimentos de resistência, dos activismos sociais e até dos simplesmente divergentes (na lógica, já denunciada por Chomski, de que “quem se preocupa e quando se preocupa é logo acusado de ser ‘político’, ‘subversivo’ ou até ‘vermelho’ ”), é assim a reprodução sociojurídica da lógica de funcionamento do sistema global. E assim se “legitima” e até “normaliza” a perseguição social, política, disciplinar e até o afastamento e expulsão dos que pensam e falam diferente, designadamente na Administração Pública, a começar pelos professores universitários, tal como sucedeu em Portugal, no pós-Segunda Guerra Mundial, com a demissão de 26 dos seus melhores docentes ou a perseguição a professores no Brasil de Bolsonaro, sob o lema da “Escola sem Partido”. E assim também se vem processando o silenciamento e o ostracismo de quantos divergem do pensamento dominante acerca, por exemplo, do combate à pandemia ou da guerra da Ucrânia.

De todas estas ideias decorre em linha recta a tese (também ela nazi) de que o direito vigente é sempre legítimo simplesmente porque vigora. E vigora (apenas) enquanto as respectivas normas se conformarem com os objectivos do regime, logo sendo convenientemente esquecidas, reinterpretadas, inutilizadas ou revistas quando tal não sucede, e que é precisamente aquilo que se verifica quando preceitos da lei, designadamente da lei constitucional ainda vigente, são apresentados como “empecilhos” ou mesmo “forças de bloqueio” à acção governamental e aos objectivos por esta prosseguidos, e se apresentam propostas de revisão constitucional tendentes a eliminá-las. 

Assim, e dentro desta lógica, ao mesmo tempo que, por exemplo, o indivíduo é controlado, manipulado e esmagado sob a invocação do “interesse nacional” e a cultura é desvalorizada e atacada e progressivamente substituída por propaganda pura e dura, visando até a aculturação e a bestialização das pessoas, o Direito – com a lastimável cumplicidade, activa ou passiva, de uma parte considerável dos juristas – é por completo instrumentalizado relativamente aos objectivos políticos, económicos, sociais ou outros, visados pelo poder político dominante em cada momento, e a aferição da sua legitimidade é restringida ao saber se as suas normas atingiram ou não a finalidade que, por tal poder político, lhes foi apontada. 

A tese nazi de que os fins justificam os meios

É por isso que outro importante sustentáculo desta “nova” dogmática, designadamente jurídica, consiste, compreensivelmente aliás, na ostensiva e assumida expulsão do mundo do Direito, em nome da sua pretensa “neutralidade”, de todas as concepções e valorações da Justiça e da Ética (tidas como espúrias e estranhas à realidade normativa) e ainda na afirmação crescente de que, como já referido, os fins (designadamente os políticos e financeiros, convenientemente travestidos de “grandes desígnios nacionais” e assim definidos pelo “grande chefe”) justificam todos os meios, por mais brutais, injustos, ilegais e inconstitucionais que eles sejam

Esta tese surge convenientemente embalada com teorias como a do “estado de necessidade sanitária”, para assim justificar um verdadeiro “estado de sítio não declarado”, com a consequente compressão ou até a supressão de direitos, liberdades e garantias fundamentais. E isto não apenas no campo dos direitos laborais, mas também no campo mais amplo dos direitos sociais e políticos (por exemplo, com a revisão das leis penais e processuais penais e o aniquilamento de princípios constitucionais essenciais como o da presunção de inocência,  as restrições legislativas às liberdades de expressão, de manifestação e de organização, e a própria revisão das leis constitucionais para, por exemplo, permitir confinamentos, recolheres obrigatórios e detenções sem necessidade de mandado judicial), num processo grave e preocupantemente similar ao que se verificou com a Constituição de Weimar no início da ascensão do nazismo ao Poder e perante a “distracção” ou o conformismo de uns quantos supostos democratas…

Traço típico da nova versão deste tipo de teorias é, também, o aparecimento, a par dos mais ou menos inflamados e demagógicos discursos moralizadores (arrancando embora de reais e graves problemas como o da corrupção), de um “activismo judiciário”, com “super juízes” e “super procuradores” mediaticamente promovidos a uma espécie de “salvadores da Pátria”, os quais, também eles “justificados” pela pretensa legitimidade dos fins que proclamam, actuam e se comportam como se estivessem acima da própria lei…

Que fazer? Resistir, resistir sempre!

Perante tudo isto, os juristas, mas também os cidadãos em geral, não podem ser uma espécie de ignaros e obedientes “guardas de Auschwitz”, nem aceitar o papel de meros instrumentos, distraídos, dóceis e pretensamente neutrais, de todo este processo de profundo retrocesso social, político e civilizacional. É preciso, pois, assumir uma postura eminentemente cívica de resistência, firme e consequente, e mesmo quando o mar da barbárie parece mais alto do que a terra da dignidade humana.

Essa postura passa pela luta, firme e persistente, contra a autêntica Gleichschaltung (a uniformização e o controle absoluto proveniente do topo, na terminologia da teoria jurídica nazi) do pensamento dominante e, desde logo, da denominada “nova” dogmática jurídico-política imposta sob os já referidos “postulados” os quais, em vez de apresentados como indiscutíveis e indiscutidos, ao abrigo daquilo que Noam Chomsky apelida certeiramente de “teorias da fabricação do conhecimento”, devem antes passar a ser completamente discutidos e, mais do que isso, cientificamente demolidos. Como passa também pelo combate ao reprovável conformismo do chamado “argumento de Vichy”, ou seja, do argumento colaboracionista de que, como os nazis ocuparam brutalmente a França e arrogantemente marcharam sob o Arco do Triunfo, em Paris, seria correcto e até patriótico aceitar tal ocupação porque supostamente não há alternativa…

Contra o discurso da pretensa neutralidade do Direito, da imposição censória e asfixiante do pensamento dominante e da proclamação de que a sociedade injusta e desigual em que vivemos seria inevitável e inelutável e de que não há alternativa senão a de obedecer e calar, diria que não nos calemos, pois, se nada dissermos nem fizermos, aceitaremos afinal a “banalização do mal”, para usar a expressão de Hannah Arendt, e enfrentaremos seguramente aquilo para que o poeta brasileiro e resistente contra a ditadura militar, Eduardo Alves da Costa, já alertava no seu belíssimo poema “No caminho com Maiakóvski”: 

“Na primeira noite eles se aproximam 

e roubam uma flor 

do nosso jardim. 

E não dizemos nada. 

Na segunda noite, já não se escondem: 

pisam as flores, 

matam nosso cão. 

E não dizemos nada. 

Até que um dia, 

o mais frágil deles 

entra sozinho em nossa casa, 

rouba-nos a luz, e, 

conhecendo nosso medo, 

arranca-nos a voz da garganta. 

E já não podemos dizer nada.”

Há, pois, alternativa, como a Resistência se encarregou de demonstrar e a História de confirmar. E hoje, nós, cidadãos empenhados na construção de um mundo mais justo, sem exploração nem opressão, é que somos, é que temos de ser, a Resistência!

Vamos, pois, a essa luta, desmontando a dogmática, política, económica, jurídica e não só, dos grandes interesses e defendendo os direitos, a Justiça e a dignidade de quem trabalha!

Saibamos erguer as nossas vozes, de espíritos livres e inconformados contra todas as formas de injustiça e saibamos lançar bem alto o grito que sempre fez estremecer os tiranos e os opressores de todas as épocas: Viva a resistência!

António Garcia Pereira

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *