Rui Pinto – Entre a realidade e a ficção

Rui Pinto aceita um acordo, em que deixa de estar em prisão preventiva em troca de colaborar com as autoridades.

Este “acordo” demonstra que nunca existiu qualquer dos pressupostos da prisão preventiva: nem perigo de fuga, nem de perturbação do inquérito, nem alarme social, nem de continuação da actividade criminosa. O que aliás respalda a prática generalizada, num país onde três inspectores do SEF que amarram e matam um estrangeiro à pancada ficam em prisão domiciliária.

Tal “acordo”, portanto, é objectivamente conseguido à força de meses de cárcere, que o “convenceram” a “colaborar”, equivalendo a um método só no grau de brutalidade se distingue da obtenção de prova por tortura.

Pior: colaborar, não na investigação dos crimes que lhe são imputados, mas a factos relativos a outros processos e pior ainda, na maioria dos casos, relativamente a factos que ainda não são processo sequer.

Tal “acordo” é mais incompreensível porque se as informações que o Rui Pinto detém foram obtidas de forma ilegal, jamais poderão ser usadas como prova em tribunal, o que significa que o acordo, além de não ter cobertura legal, visa um fim absolutamente ilegal: dar às autoridades acesso as informações sigilosas, obtidas de forma criminosa.

A medida de coacção é, aliás, atípica, não sendo uma prisão domiciliária aquela em que o domicílio do preso correspondente ao edifício onde está instalada a polícia que o investiga.

Situação que dá – ou deveria dar – que pensar, ao permitir às autoridades aceder, sem nenhum escrutínio, a todo um manancial de informação coberto por segredo fiscal e profissional e que compromete grandes escritórios de advocacia, juízes, procuradores, políticos, alta finança, clubes de futebol, e consequentemente, de selecionar aqueles contra os quais não lhe seja útil ou conveniente agir, não sendo indiferente que vários outros países tenham manifestado interesse nessas informações.

E tal “acordo” gera as maiores suspeitas sobre a imparcialidade do tribunal de julgamento, que aliás se iniciará nos próximos meses e terminará, com toda a certeza, antes de terminar a “colaboração” em execução deste “acordo”.

E se ao Rui Pinto for aplicada uma pena suspensa, tanto pior, porque isso só demonstra que alguém deveria ter suspendido a peregrina ideia de aplicar a medida de prisão preventiva a um miúdo de 30 anos com jeito para a informática, que denunciou e fez cair a Isabel dos Santos.

Por tudo isto, este “acordo” mais parece saído da imaginação do argumentista da “Casa de Papel”, perante a mais chocante complacência de tudo e de todos. A ordem dos advogados, que logo deveria acautelar o sigilo profissional dos seus, além das garantias de dignidade do sistema judicial e de Rui Pinto enquanto pessoa humana, nem se sabe o que pensa sobre o assunto!…

Diga-se em abono da verdade que o argumentista da série espanhola parece de resto bastante inspirado na realidade portuguesa. Não fosse “Lisboa” precisamente sujeita a um cárcere ilegal para a forçar a falar. Não fosse a segurança dos membros do bando um manancial de segredos de Estado suficiente para deitar o Estado abaixo. Sucede que, na série “Casa de Papel”, retrata-se uma sociedade com espírito crítico, onde persiste, apesar de tudo, o respeito pela dignidade da pessoa humana. Parece que mais uma vez a realidade ultrapassa a ficção.

Dino Barbosa

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