O homem põe o acento tónico nas sílabas átonas e fala aos solavancos. Aqui à mesa, chegam uns arranques guturais, soltados durante os intervalos em que não atende chamadas na frente dos dois sorumbáticos companheiros de refeição.
Fala sozinho de reivindicações, direitos e obrigações, cargos e assessorias. Os outros ouvem-no com atenção intermitente, depois de levantarem a cabeça da escolha de uma folha de alface escurecida, uma espinha, um cisco incómodo ou nojento. E voltam a baixá-la alheando-se em silêncio até às migalhas de comida que depositam com cuidado na boca surda, fechada sobre o alimento. Mastigam vagarosamente, estendendo o tempo. Também eles já não o ouvem.
Pelo suor da testa, o vermelho das maçãs do rosto e o esbracejar contínuo, o homem dá-se importância, não desiste, ao mesmo tempo que se perde, inseguro, pelos interstícios da ausência dos companheiros de mesa e do ruido de fundo da televisão, consumida num crepitar horrendo de chamas contínuas, apesar de ter chovido no dia anterior.
Ao seu lado sentam-se duas mulheres: “ela própria está confundida das ideias e ele tem que aceitar os que percebem do biznêss, meu!”, diz uma, intrigando, ainda que não haja qualquer homem na interlocução. “Eu não… não, pá! Tá-se bem, não sou destas cenas, em que eu… pessoalmente… é o meu trabalho, não é? Tenho que fazer o meu trabalho e certas e determinadas perguntas aborrecem-me pá!…”
Parecem mãe e filha. Olho melhor. A mais velha disfarça a idade com atavios floklóricos e despenteia, com a mão em abanico, os cabelos caídos sobre a cara: “Achei super-chique, o brand, mas claramente aquilo tem que ter mais África! Mais África! E pra chegar aqui é tudo muito mau! Meu! Porque “Africar”, na idade deles, é só bichos e cenas. Cenas de miúdos, que tenho que aturar, meu!”
“E as cores?”
“As cores whatever! Mas as cores base são as do louva-a-deus! Acho horroroso, meu!, mas que posso fazer? Sabem lá eles o que é África!”
Sinto qualquer coisa perfumada no ar, observo através do meu copo de vinho tinto. Às três horas, sentaram-se dois ginastas de fim de tarde, que bebem vinho branco. São energéticos, os músculos rebentam-lhes nas camisas finas, sublinhadas com colarinho debruado a azul no interior ou uns quadrados de risca quase invisível nos pulsos. Vestem ambos calças de cintura curta, ajustadas sobre um sexo dissimulado por boxers de marca, seguramente. Nenhumas outras lhes fariam ressaltar assim as curvas masculinas, fingindo escondê-las. Há um clima que rola, uma troca de olhares cálida e serpenteante no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio, até à outra mesa.
“Gosto de crianças grandes!” diz a publicitária usando uns decibéis que guardara para investir, “quando são ainda muito emocionais, muito à flor da pele! “. Eles riram, enquanto, mais longe, os sindicalistas limpam as nódoas da gordura do cabrito e bebem café.
Contornei a fábrica de realidade das elites que acreditam piamente em si – velhos sindicalistas, publicitárias à descoberta do poço de Alice, chief executive officers vitaminados – para poder transpor a porta. Acompanham-me as notas escritas em dois pedaços de papel roubado à toalha, no fim da refeição indispensável, a que todos os dias me salva e me ajuda a chegar à noite, inteira.
Pelo caminho de regresso, meditando sobre se um advogado deve ou não aprender a ensacar arroz e outras precisões, assalta-me uma catadupa de informação, que desenrola os seus desenhos animados em frente dos meus olhos.
Respiro, fecho os olhos, retiro da moralidade das coisas pequenas – uma borboleta resistente na cidade, um tronco a brotar dos rails de cimento da via rápida, um aceno de cabeça indicando prioridade ao outro, um cheiro a jasmim – razões fortes para não desistir, mesmo tendo que entrar pelas fantasias que crescem dentro dos seres, e que estranho.
Sorvo os espíritos que por mim passam e com que tento encher este vazio cada vez maior. Penso depois sobre o prazo, a vida a prazo, a minha vida a prazo e murmuro, para disfarçar, “os teus olhos”, “essa luz”, “noite escura”, “sala ampla”, “circunferência”, até completar seiscentas e noventa pequenas palavras.
Isabel Duarte
Fico feliz por este meu novo “encontro”. Que bem sabem as palavras aqui escritas! Muito obrigada.