Em 1992, James Carville, estratega da campanha presidencial de Bill Clinton (que então enfrentava o Presidente George Bush o qual, após a guerra do Golfo e de acordo com as sondagens da altura, contava com 90% das intenções de voto), usou internamente uma frase que acabou por se tornar um slogan não oficial da campanha – “É a economia, estúpido!”. Esta frase ficou célebre e passou a significar, não qualquer insulto, mas sim a necessidade e a utilidade (Clinton venceu aquelas eleições…) de centrar o debate nas questões que são verdadeiramente essenciais.
E, hoje em dia e mais do que nunca, são de facto os princípios que mais importa defender e preservar.
Na época do desenvolvimento, nuns casos mais lento, noutros mais aberto e acelerado, de verdadeiros protofascismos (Le Pen em França, Bolsonaro no Brasil, Erdogan no governo da Turquia, Viktor Orbán no governo da Hungria, Rodrigo Duteste no governo das Filipinas, e Matteo Salvinio, líder da Liga Norte, hoje no governo, e o movimento Casapound em Itália, entre outros), esse mesmo desenvolvimento é promovido, facilitado e acelerado pela liquefação das ideologias e dos princípios e pela desvalorização, até ao limite, do seu papel.
Na verdade, o enfraquecimento da consciência colectiva dos Povos (que passa também pela liquidação da sua memória, da sua língua e da sua cultura), bem como o culto pelo imediatismo, pela ligeireza, pelo facilitismo e pelo mediático abrem caminho a toda a espécie de demagogias populistas e a todo o tipo de “salvadores da Pátria”, os quais, muitas vezes vestindo primeiro a pele de cordeiros, assim que se apanham com o poder nas mãos rapidamente mostram os seus dentes de lobo, ou seja, a sua verdadeira natureza de ditadores.
Historicamente, sempre que, existindo um equilíbrio relativo de forças entre a Revolução e a Contra-Revolução, se verificou um agravamento da crise económica e financeira e a falência das soluções ditas “intermédias” (em particular dos partidos políticos que, dizendo-se socialistas e até comunistas, meteram afinal o socialismo e o comunismo na gaveta e se assumiram como uns meros gestores da sociedade do império do dinheiro, ou seja, da sociedade capitalista), abriu-se também o campo ao tipo de soluções bonapartistas, profundamente reaccionárias e profundamente antipopulares.
Esse processo de dissolução (das ideologias políticas, dos princípios éticos e até jurídicos, da própria memória colectiva) vem sendo progressivamente levado a cabo pela sucessiva, sinuosa e mesmo insinuante propaganda, aparentemente “neutral” e não ideológica, mas que assenta sempre nos mesmos 4 ou 5 axiomas fundamentais:
– a gestão científica do medo (o medo de perder o pouco que ainda se tem hoje, o emprego ou a casa; o medo do próximo, seja ele o colega de trabalho, o imigrante ou simplesmente o que é diferente);
– a responsabilização dos direitos fundamentais dos cidadãos, das suas liberdades individuais, dos seus espaços de privacidade e de um pretenso “excesso de garantismo” pela crise existente e pelas suas consequências;
– a pregação e a afirmação de palavras de ordem autoritárias, senão mesmo militaristas e violentas, como “único caminho” para “repor a ordem” e “restaurar a confiança e tranquilidade públicas”;
– a criação de sentimentos fortes de culpabilidade pelos males do país (como o desemprego, a miséria e a fome) relativamente a um determinado conjunto de pessoas apontadas como privilegiadas e a defesa da sua humilhação, da sua prisão e até da sua eliminação, inclusivamente física;
– a destruição da memória colectiva e o apagamento ou a reescrita da História para que assim não possamos recordar e aprender com os erros e, mesmo, com as tragédias do passado;
– a imposição por toda a parte e por todos os sectores de actividade (incluindo a Política e a Justiça) da lógica de que os fins tidos por “legítimos” – apresentados aprioristicamente como tal, mas nunca admitidos à discussão e menos ainda à necessidade de comprovação – justificariam afinal todos os meios, por mais reprováveis e repugnantes que eles se mostrem;
– a utilização sistemática da mentira, da força bruta, do insulto e da calúnia (mesmo que nunca demonstrada), bem como o apelo aos sentimentos mais primários e aos instintos mais rudimentares em detrimento da nobreza de ideais, da justeza dos métodos e da elevação das atitudes;
– a pregação permanente, pelos defensores desta “nova ordem”, do auto-elogio e de uma pretensa supremacia moral sobre os restantes cidadãos, como se eles tivessem tido o privilégio de um qualquer “toque divino” que os colocaria acima de toda a discussão e, mais ainda, acima de toda a crítica.
É tempo de acordarmos e, também, de recordarmos!
É que foi assim que Hitler, Mussolini e Salazar chegaram ao Poder e instalaram as mais violentas das ditaduras. E é também assim que os fascistas dos tempos modernos vêm chegando ao Poder e lá se encontram instalados.
Impõe-se, por isso, travar uma luta sem tréguas pela preservação da memória colectiva e pela defesa intransigente dos princípios. Contra os espectáculos mediáticos e as investidas populistas. Contra as falsificações e manipulações da verdade histórica e contra as gritarias primárias, corporativas e xenófobas.
Reflictamos a sério para onde é que – quais ovelhas a caminho do açougue – nos estamos, afinal, a deixar encaminhar quando permitimos as mais diversas situações contra as quais nos deveríamos erguer.
Na véspera de se completarem 46 anos sobre o assassinato a tiro, em Económicas, do estudante de Direito José António Ribeiro Santos por um esbirro da Pide, convém recordar que esse mesmo esbirro, de nome António Joaquim Gomes da Rocha, nunca foi julgado e muito menos condenado. Óscar Cardoso, o inspector da Pide responsável pelo massacre, a tiro de 2 metralhadoras, na tarde de 25 de Abril de 1974, da manifestação que então ocorreu às portas da Pide, na Rua António Maria Cardoso, safou-se impune desse crime, foi condenado a uma pena simbólica pelas funções de dirigente superior da Pide e pôde tranquilamente reformar-se e gozar a sua pensão numa quinta do Alentejo. E dos autores morais e materiais do assassinato do General Humberto Delgado (Silva Pais, Barbieri Cardoso, Álvaro Pereira de Carvalho, Casimiro Monteiro, Rosa Casaco, Agostinho Tienza, Ernesto Lopes Ramos) foram ou absolvidos ou sentenciados à revelia ou então condenados, também eles, a penas verdadeiramente irrisórias para o crime que cometeram.
Mas também se impõe realçar que, já nos dias de hoje, têm cada vez mais prevalecido teorias e práticas verdadeiramente fascizantes como a de que a “necessidade”, designadamente a financeira, tudo justificaria, designadamente em termos de violentar ou mesmo destruir direitos fundamentais, por exemplo laborais (como os cortes de salários, de subsídios e de pensões bem como dos tempos de carreira).
Ou a de que os fins justificariam os meios, pelo que “não faz mal” que os órgãos de Justiça façam batota com as violações do segredo de Justiça, com a produção de meios ilegais de prova, com o acintoso desrespeito pelo princípio do “Juiz natural” e pelas regras das distribuições dos processos, ou com a complacência para com os abusos e as violências policiais e prisionais sobre os suspeitos da prática de crimes ou até sobre os por eles já condenados.
Ou ainda a de que os princípios (nomeadamente os grandes princípios jurídico-constitucionais) não passariam de “verbos de encher” e a única coisa que valeria seriam as leis que o Poder em cada momento vigente produz, ao estilo da velha tese nazi de que as leis são legítimas apenas e simplesmente porque são leis, dificultando ao máximo – seja por custas judiciais elevadíssimas ou por entendimentos judiciais ultra-restritivos – a fiscalização e o controle da sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República, a Constituição.
E também o modo como, seja pela gritaria corporativa, seja pelos sorrisos altivos e condescendentes, seja pela calúnia ou pela mera “boca” desdenhosa, logo se trata de desacreditar e silenciar todos os que ousam erguer a voz contra esta sucessiva, até aparentemente silenciosa, mas absolutamente inexorável, destruição da Democracia.
Não será que todos os dias nos deparamos com alguns destes tiques e alguns destes sinais? Esquecermos os ideais e os princípios e embarcarmos no “pragmatismo”, ou seja, no oportunismo mais primário, transforma-nos afinal em co-responsáveis de todo este processo destrutivo.
E não, meus Caros leitores, não digam que não é bem assim, que estarei a ser “catastrofista” ou que não é possível vislumbrar esse autêntico “toque a finados” de uma sociedade democrática.
É que, como a certa altura certeiramente refere Hans Vergerus, personagem do conhecido filme de Ingmar Bergman, “qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpente. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado”.
Será que não conseguimos ou não queremos ver? E até quando? Espero, sinceramente, que, até “antes que seja tarde!”, como reza o título do belíssimo poema de Manuel da Fonseca:
Abre os olhos e volta,
Abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
Nasce de vez para a vida.
António Garcia Pereira
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