Saúde em estado de coma

Na sequência do que já aqui denunciara, soube-se agora que o Hospital de S. José – um hospital de “fim de linha” e centro de trauma – deixou de ter urgência de cirurgia vascular e assistência durante 24 horas aos doentes com patologias como o aneurisma da aorta, por exemplo, sendo os considerados mais graves encaminhados (como sucedeu neste último fim de semana) para o Hospital de Santa Maria.

A situação-limite existente no Hospital de S. José foi aliás descrita como “de catástrofe” e impondo “um plano de catástrofe” na carta de demissão apresentada por 16 dos 17 médicos chefes da equipa de Medicina Interna e de Cirurgia Geral, sendo que também já se sabia que desde há algum tempo o serviço de radiologia não funciona à noite.

Já antes, dirigentes da Ordem dos Médicos tinham avisado que, em todo o país, faltavam 541 anestesiologistas e também que a falta de obstetras estava a ameaçar gravemente os partos de risco neste Verão. E, agora, o Presidente da Secção Regional do Centro veio alertar para o perigo do fecho de serviços no Hospital Arcebispo João Crisóstomo, em Cantanhede.

Depois da continuação, não obstante todas as promessas, do escândalo da não realização de obras no Serviço de Oncologia Pediátrica do Hospital de S. João, no Porto, há menos de uma semana atrás soube-se que a própria MAC – Maternidade Alfredo da Costa, por falta de pessoal, encerrou 3 salas de partos e, pior, reduziu o número de enfermeiros por turno. Por estas e outras razões, os médicos chefes de equipa da MAC acabaram de apresentar a sua demissão. E os enfermeiros denunciaram, entretanto, a indisponibilização de mais 250 camas no País.

Apesar de o Ministério da Saúde manter o número de 1900 doentes por médico nas listas de atendimento e de se recusar a diminuir o número de horas extraordinárias anuais de 200 para 150 (tal como no resto da Função Pública), permanecem listas de espera para consultas e para actos médicos, como cirurgias, que em alguns casos chegam aos 2 anos!

E o que tem a dizer sobre tudo isto o Ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, o tal que anda há quase 3 anos a proclamar a sua alegada disponibilidade para negociar com os profissionais da saúde e as suas organizações e ainda não negociou coisa alguma…?

É absolutamente inacreditável, mas, sobre todo este autêntico cenário de cerco e aniquilamento do Serviço Nacional de Saúde, o que o referido ministro soube dizer foi isto: tratou-se “de dois ou três chefes de equipa que escreveram uma carta, que não se demitiram” e “o que é lamentável é que se faça o empolamento sistemático de situações pontuais, ocultando a realidade” (sic).

A realidade, porém, nua e crua é, por exemplo, a da situação de Manuel Villas Boas, de 78 anos de idade e a face mais conhecida do Movimento dos Utentes de Sangue no Norte – mais de 8 meses depois de ter entrada para uma lista de espera para uma operação, considerada simples, a uma hérnia inguinal, ainda hoje está à espera de ser chamado, muito provavelmente para um hospital privado pago pelo erário público com o chamado sistema dos “vales cirúrgicos”.

É que, na verdade, os propositadamente debilitados hospitais públicos, quando não têm capacidade de resposta para tratar ou operar doentes do Serviço Nacional de Saúde, podem encaminhá-los para hospitais privados “convencionados”, que são depois pagos pelo Estado através do tal sistema de “vales”.

Ora, comprovando a progressiva destruição da capacidade de resposta dos hospitais públicos e o crescente negócio dos privados, os ditos “vales cirúrgicos” subiram em flecha, entre 2016 e 2017, passando de cerca de 60.000 para 120.000. Todavia, do total das intervenções cirúrgicas enviadas para o privado, as que depois foram efectivamente realizadas durante o mesmo ano de 2017, foram apenas 24.608, ou seja, 20% do total.

Quer dizer, mesmo este sistema de mandar para os hospitais privados os doentes que não se atendem nos hospitais públicos, afinal, deixa é sem atendimento ou tratamento a esmagadora maioria (80%) deles!

Este completo (mas muito proveitoso para alguns) absurdo deve-se a que, muitas vezes, as unidades de saúde que são colocadas à escolha dos cidadãos estão afinal muito longe da sua área de residência. Por exemplo, Barcelos para um doente residente em Gaia, ou Marinha Grande para uma residente em Setúbal.

Mas sobretudo deve-se àquilo que o próprio Presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, se encarregou de esclarecer: “os privados preferem as (operações) de baixo valor, sem grandes complicações mas ainda assim com margens de lucro significativas. Quando há complicações (os doentes) acabam nas urgências dos hospitais públicos. E não sabemos sequer se os requisitos mínimos de equipas e segurança são cumpridos no privado. Há falta de escrutínio do regulador em relação ao sector privado”!?

A isto se somam a compra maciça pelos serviços públicos ao sector privado de exames ou meios auxiliares de diagnóstico (os quais poderiam, se houvesse o adequado investimento nas instituições públicas, ser feitos nestas), bem como a concessão aos grandes grupos e interesses financeiros da saúde da gestão de unidades ou entidades públicas de saúde.

Convém a este propósito recordar que, de acordo com o relatório das Projecções Plurianuais do Orçamento de Estado 2018 da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), as famigeradas Parcerias Público-Privadas (PPP’s) na Saúde custaram ao Estado, em 2017, mais de 32 milhões do que no ano anterior, ou seja, um total de 479 milhões de euros, 173 dos quais só com a PPP do Hospital de Braga, cuja gestão é do Grupo Mello Saúde.

As transferências do Orçamento de Estado para o Serviço Nacional de Saúde a preços correntes (como a OMS – Organização Mundial de Saúde, no seu Relatório Health System Review-Portugal, e a própria OCDE têm assinalado) são manifestamente insuficientes, tendo atingido os 4,9% em 2010, rondado os 4,46% do PIB em 2017 e apenas 4,3% em 2018. Isto, enquanto o sector privado beneficia de um gigantesco financiamento, designadamente através dos subsistemas públicos de saúde (ADSE e outros), os quais já representam hoje cerca de metade de toda a facturação do sector privado. Facturação essa que, entre 2000 e 2016, cresceu “apenas” 78,3% e, no campo hospitalar, 245,5%!

Por fim, enquanto o mesmo Ministro da Saúde se recusa a abrir concursos para os mais que necessários médicos, enfermeiros e técnicos de saúde do Serviço Nacional de Saúde, bem como a rever e a dignificar as respectivas carreiras e grelhas salariais, gasta por ano 120 milhões com o pagamento de empresas de trabalho médico temporário e aumenta a contratação a recibo verde, sendo o Ministério da Saúde o segundo que mais contribuiu para o aumento de 14,6% desta contratação precária no Estado ocorrida em 2017.

Com tudo isto são também as seguradoras privadas a ganhar, pois que, com a propositada e progressiva deterioração do Serviço Nacional de Saúde e os elevados preços das instituições privadas, os últimos dados conhecidos apontam para que 25% dos portugueses já foram levados a arranjar um seguro de saúde enquanto os grupos privados de saúde engordam cada vez mais.

Em suma, “quem quer Saúde, pague-a” é basicamente aquilo que o Ministro da Saúde está a dizer quando refere que esta autêntica catástrofe não passa de “empolamento de situações pontuais”!

Ou seja, a Saúde não é um direito, mas um serviço, de que os cidadãos são meros “utentes”, para não dizer “clientes”. E para quem é pobre e fica doente ou ferido o melhor mesmo é que, se for urgente, tal não aconteça à noite ou ao fim de semana, e se o não for, tenha ainda uma réstia de forças (e de sorte) para aguardar meses ou até anos por uma consulta ou uma intervenção cirúrgica…

Uma Saúde pública em estado de coma, portanto!

António Garcia Pereira

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