Recorda-se o meu Leitor(a) do filme “Braveheart” (1995)?
Está a ver o Mel Gibson de olhos esbugalhados, com a face pintada de azul, salpicada com o sangue dos inimigos? Recorda-se?
O personagem histórico, Sir William Wallace (1272-1305) foi derrotado em Falkirk, em 1293, pelo tirano Eduardo de Inglaterra, tendo sido executado em Smithfield. Perdeu!
A passagem do filme que recordo, e que importa agora invocar, é a de um William Wallace preso, acorrentado a uma parede escura e húmida de uma masmorra fétida, antecâmara de uma morte anunciada.
Na narrativa “Hollywoodesca”, William Wallace é visitado pela princesa francesa, casada com o filho de Eduardo de Inglaterra.
A princesa transporta consigo um veneno líquido, rogando a um Wallace, com medo do pouco futuro que lhe resta, que o beba. William, num gesto de puro cavalheirismo (um cavalheiro nada nega a uma bela senhora, a não ser que esta o peça) bebe. Quando a chorosa dama sai, cospe o “elixir do não-sofrimento”, a saída fácil pelo sono, a fuga da morte através da morte.
Antes do descrito, Wallace (ou o guionista genial do filme) diz que não quer ingerir o veneno porque “Todos os homens morrem, mas poucos vivem de facto!”
Não queria Wallace estar anestesiado, não desejava silenciar-se, queria manter a sua Honra, defendê-la, mostrar aos algozes que o podiam quebrar mas não vergar, queria ser homem, queria ser livre.
Esta semana reuni aqui em “Ébola” com o meu advogado.
Antes de abordarmos o tema do Julgamento, questionei-o sobre a medida cautelar que interpus relativamente ao meu ordenado, confrontando-o com as notícias da reintegração ao serviço do ex-director do SEF, Manuel Palos e de Manuela Antónia Anes (ex-secretária-geral da Justiça) até ao julgamento de ambos, estando acusados de corrupção, tráfico de influências e prevaricação.
Manifestei-lhe a minha indignação, justificada pelo facto de eu estar a ser discriminado negativamente: há 18 meses que não recebo a parcela do meu ordenado a que tenho direito, conforme previsto legalmente.
O desespero é tal que somente quero que se pronunciem: sim ou não!?
O meu estimado advogado aconselhou-me calma e paciência, a única coisa que se podia fazer era solicitar a aceleração processual e … esperar! Esperar serenamente, sem grandes manifestações públicas!
“E relativamente ao desfecho do processo-crime onde se investiga a violação do segredo de Justiça, no inquérito no âmbito do qual estou preso há 20 meses? Como está o processo, agora que o senhor foi ouvido e apresentou as provas materiais? – questionei-o, tentando pacificar o que sentia, tentando ter paciência.
Respondeu que estava a seguir os trâmites normais, os tempos da Justiça.
Quão sinuosos, rotineiros, paulatinos são os caminhos da Justiça: 20 meses, 1 ano e 8 meses, com provas materiais e nada!
“Que podemos fazer? Vou para Julgamento com uma acusação apresentada por um Procurador que, tendo ao seu cuidado um processo sob segredo de Justiça, permite (por acção ou omissão, desejo eu saber) realizarem-se 40 fotografias dos autos, e difusão das mesmas pelos “média”? – questionei: mais uma vez.
Mais uma vez, invocou o meu caro advogado, as vantagens de um espírito paciente, sereno. O facto de estarmos a menos de dois meses do Julgamento impõe agora discrição, contenção.
“Muito bem!” – concedi, dissimulando – “E o castigo por “delito de opinião”? Os 6 dias fechado 22 horas por dia, o facto de ter sido epitetado de mentiroso, de dar notícias falsas?”
Focalização! Mais tarde pode-se tratar desse assunto. É extremamente importante não criar ondas, serenidade.
O meu advogado é um indivíduo com experiência, uma pessoa com conhecimento das idiossincrasias do sistema, tem experiência na “Barra do Tribunal”.
As suas palavras são sensatas: que utilidade tem para o meu Julgamento toda esta indignação que sinto e a necessidade de a transmitir publicamente?
Como posso lucrar, em Julgamento, criticando o Dr. João Davin, denunciando as falhas do sistema, criticando o uso abusivo do instituto da prisão preventiva?
É uma forte possibilidade que ao criticar Procuradores, Juízes, a Polícia Judiciária; os Juízes e o Procurador do Julgamento estejam “com um pé atrás em relação ao Inspector João de Sousa”.
– Agora não, João! – afirmou sensatamente o meu advogado.
– Então quando, Dr.?
– Agora não, João, só se prejudica. Pense em si, no seu futuro! Pense na sua corajosa mulher e nos seus filhos! – acrescentou com sinceridade.
Por momentos vi à minha frente o Coordenador dos Homicídios de Lisboa, quando me pediu para não entregar a informação de serviço onde criticava e repudiava o que se passava na secção.
Apareceu também a imagem de alguns profissionais do corpo de guardas prisionais, a alertarem-me para o facto de estar a “mexer com o sistema” e prejudicar-me.
Logo de seguida tinha à minha frente o Director de “Ébola”, a assegurar-me que iria instaurar procedimento disciplinar por escrever sobre o “Outro”.
Até apareceu o “Outro”, o “44”, a dizer-me: “João, vou aguardar a decisão da Relação, e somente depois publicarei mais uma carta!” Clara declaração de “oportunismo político”, “tacticismo”!
Entretanto voltou a imagem, real, do meu advogado que segurando a minha mão em cima da mesa, reiterando: “Agora não, está bem João?” – expectante – “Pare com o Blogue! Deixe de criticar. Você tem de compreender que as coisas são como são. Pare, João! Está bem?
– Sim. Vou parar!
– Não vai nada, eu estou a ver que não – como que rendido a uma evidência inamovível.
– Eu paro … eu paro … – sossegando-o.
– Claro! Não vai parar, eu sei – sorrindo.
O meu advogado, conquanto eu ainda aqui esteja, é uma pessoa sensata e conhecedora …
Sigmund Freud afirmava que fomos feitos de carne mas temos de viver como se fossemos de ferro.
A minha carne está massacrada, fustigada, mas o meu espírito, a minha mente, os meus valores e convicção são de aço, puro aço. Está aí ao virar da esquina: 2 anos de prisão preventiva!
Quando estamos no pedestal, quando somos o Sr. Inspector João de Sousa que salvou o Dr. Mário Mendes no acidente da Av. da Liberdade; o único polícia membro da Academia Americana de Ciências Forenses; o “Mentalista” que extraía confissões impossíveis a homicidas e pedófilos; o “masterblaster” da cena de crime, confortavelmente podemos virar a cara para o lado e deixar andar: nunca o fiz! Critiquei, alertei!
Quando estamos no pelourinho, algemados, derrotados, descredibilizados, rotulados de corruptos, então aí, nesse momento, o valor da acção, da palavra, é incomensurável. Aí, na lama, a coragem de manter os nossos valores, a nossa convicção, é a chama que nos aquece.
No primeiro caderno do “Expresso”, na coluna dos “Altos e Baixos”, o autor da mesma, o jornalista Bernardo Ferrão, coloca o Procurador, Dr. Rosário Teixeira, no negativo espaço dos “baixos”, sentenciando: “Não se pode deixar alguém durante tanto tempo em lume brando”.Refere-se a José Sócrates e ao facto de ter estado preso, sem acusação, sem julgamento.
Então e eu?! Está já aí, ao virar da esquina: 2 anos, preso preventivamente, a aguardar Julgamento!
Não devo indignar-me? Falar? Gritar o que sinto “sobre os telhados do mundo”, como ensinava Walt Whitman?
Vai prejudicar-me esta minha atitude?
Dia 29 de Novembro de 2015: 20 meses preso preventivamente. 1 Ano e 8 meses!
Tenho mais tempo de prisão preventiva do que o tempo que o Dr. Isaltino Morais cumpriu de pena efectiva, por crimes da mesma natureza daqueles de que sou acusado!!!
Faça, meu Estimado(a) Leitor(a), por favor, este exercício mental: recorde os últimos dois anos da sua vida! A evolução dos seus filhos, se os tiver. A realização de uma viagem há muito programada. Um casamento, um baptizado. O primeiro passo, ou a primeira palavra do seu bebé.
Uma promoção profissional. O término de um curso. Aquele concerto desejado, a estreia ansiada de um filme. Uma noite de paixão, o fim de um romance, o seu recomeço. O nascimento de um filho. A morte de um ente querido. A última representação de Luís Miguel Cintra …
A sua vida durante 2 anos! Foi isso tudo que eu perdi, sem estar condenado.
O meu doutoramento agora já estaria terminado; não assisti ao nascimento do meu “filho-homem”; roubaram-me dois Natais; colocaram-me no meio de nada, tendo que suportar tudo!
E não devo falar, escrever? Se não agora, então quando?
Não devo açular quem me sujeita a isto?
Não devo indignar-me quando um avô de 73 anos, que abusou sexualmente da neta, fotografou-a, filmou-a, e difundiu essas imagens na “net”, é presente a Juiz e fica em Liberdade?
Não devo referir que isto se passou no Departamento de Setúbal da P.J., local onde eu trabalhava, onde conheço os meus colegas, sei como trabalham (suas capacidades e falibilidades) pelo que afirmo (ao contrário do que é useiro na P.J.) que a culpa não é do Magistrado do M.P. ou do Juiz, mas sim da falta de tecnicidade dos elementos da P.J. que não estão capacitados (lacuna na formação) para investigar proficuamente crimes desta natureza?
Saber, conhecer, compreender como funciona o sistema e nada fazer para alterar o “estado da arte”, é muito mais censurável do que a omissão daquele que desconhece por ser ignorante, e nada faz!
Os onze anos de investigação de homicídios, o contacto com a morte (seja na cena de crime ou nas centenas de exames autópticos a que assisti) sensibilizou-me para a fragilidade da vida e a gritante “falta de tempo” que a nossa condição mortal impõe, logo, se não agora, então quando?
É neste preciso momento que estou gelado, encolhido na cadeira de plástico onde me sento, junto à sanita, escrevendo este texto.
É neste preciso momento que, à noite, dentro da minha cela, autêntico jazigo, estão temperaturas negativas, não permitindo o Director que os reclusos tenham um ventilador com aquecimento.
É neste preciso momento que passo fome.
É neste preciso momento que, em minha casa, o meu “filho-homem”, que tem 18 meses de vida (eu tenho 20 meses de prisão) brinca, desconhecendo eu qual o brinquedo ou a brincadeira que gosta mais.
É neste preciso momento que a minha mulher está a cuidar do meu lar, a preparar as suas aulas, a ajudar as minhas duas filhas com os trabalhos de casa, a fazer de mãe, pai, e ainda a passar este texto “a limpo”.
É neste preciso momento que conto os dias para não ser esmagado por eles.
É neste preciso momento, quando as lágrimas ameaçam cair, que eu sinto vontade de gritar toda esta injustiça, é nestas ocasiões que me sinto frustrado por a musa não ter sorrido para mim e as minhas palavras não possuírem a capacidade de expressar tudo o que sinto, consequência da falta notória de talento do autor.
Perante tudo aquilo a que me sujeitam, meu Caro Defensor, eu não posso dar-me ao luxo de nada fazer ou dizer.
Quando a injustiça, a iniquidade, são um facto, a contestação, o público repúdio, o gesto e a palavra são um dever!
Como alguém maior, pródigo em talento predilecto da musa: “Poeta castrado, não!”
William Wallace perdeu! Ou melhor: ganhou perdendo!
Nunca proferiu as palavras que o seu seviciador lhe exigia, nem manteve o silêncio que o verdugo desejava impor. No fim “Hollywoodesco” que conhecemos, esventrado, reuniu forças para gritar liberdade … e … venceu!
A imagem que acompanha este texto ilustra o espírito indómito do homem livre, o desafio à tirania, o escárnio saudável que devemos alimentar e votar àqueles que injustamente nos sujeitam ao infando castigo que apesar de execrável tem de ser publicitado.
É a imagem da sátira, da capacidade superior do indivíduo que, apesar de se encontrar em desvantagem, com as apostas contra si, sorri, ri-se do perigo, desafia a ignorância e a tacanhez do opressor injusto.
Escolhi esta imagem, e não a cena em que os valorosos homens de Wallace levantam o “kilt” e revelam frontalmente a sua masculinidade, porque não era muito abonatório para a minha pessoa. Com o frio que se faz sentir aqui em “Ébola”, frialdade que transforma todos os apêndices em pequenas e humildes partes anexas, eu que metaforicamente desejo imitar o gesto, pouco tinha para mostrar que pudesse intimidar o adversário!
(*) João de Sousa é ex-inspector da policia judiciária em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora
Publicado originalmente no blog Dos dois lados das grades da autoria de João de Sousa
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