Século XXI -Século da Escravatura

Elis, num qualquer país globalizado pelo ismo vencedor, cabisbaixa, caminhava rapidamente juntando-se às centenas de concidadãos na dura vida de conseguir chegar ao final do dia para trazer o equivalente a uma factura de alguma conta para pagar a sua existência com oferta de juros para várias vidas do patrão. Essa era a transação. A água caía desesperada ensopando-a para além dos ossos. Vivia-se uma dura seca e de repente, sem aviso, como é próprio do tempo, ei-la a mostrar quem é rainha. Vários militares espalhavam-se pelas ruas a proteger camiões cisterna. A água era um bem racionado, distribuído pelas casas com muita avareza. Excepto para aqueles para quem Elis trabalhava. Falava-se numa nova guerra pelo controlo da rainha água. Estava-se num novo regime. Por razões de segurança viviam aterrorizados. Tinha havido uma guerra entre a democracia e o capitalismo. A vida tinha-lhes sido subtraída enquanto dormiam.

O Sol pendurado na corda que o liga à Via Láctea espalhava o seu brilho. Era a sua missão. Do seu majestoso lugar visualizava a bolinha azul que girava à sua volta. Tinham-lhe chegado relatórios sobre a vida que se vivia por lá. Encolheu os ombros. “É a vida estúpidos! Demos-lhes tudo e em lugar de aproveitarem a dom sagrado da vida rendem-se voluntariamente à não existência”.

Por razões de tristeza o sol pingava de suor. Eram lágrimas.

Há muitos milhões de anos deu-se uma enorme explosão, os macacos e outros animais viviam debaixo do Rei Sol rodeados pelas mil saias da Rainha Água. Únicos monarcas por inerência de funções vitais para a vida no planeta. Com a explosão floresceu a vida. Várias espécies de símios evoluíram de quatro patas na terra, foi-se o corpo erguendo até ficar permanentemente de olho no Rei. Espalharam-se pelos quatro cantos do mundo e cada um, determinado pelas condições e circunstâncias de cada lugar, evoluiu adaptando-se aos mesmos. Muitos milénios foram correndo sempre sob o olhar atento dos monarcas terrestres Sol e Água.

Os humanos conquistavam território, desbravavam todos os lugares e iniciavam-se na exploração dos seus semelhantes.

Os mais espertos, após várias experiências de guerras seculares e religiosas entre civilizações, chegaram à conclusão de que os meios autoritários são os mais seguros e lucrativos para se sustentarem e dominarem. Aos poucos e poucos, globalizando o planeta, minariam por dentro a vida de cada grupo. Desmoralizando-os, tirando-lhes identidade, criando divisões, tirando-lhes sustento, instilando medo, seriam as presas fáceis para a desumanização das almas. Quando as vidas fossem nada mais que vulgares baratas.

Na Líbia, país africano, rico em recursos naturais, Indjai senta-se no chão junto de outras centenas de homens. Tinham estado amontoados. Alguns dos seus amigos por se recusarem a ser levados para transacção tinham sido sumariamente executados, depois de levarem porrada com um chicote de espigão. Indjai tentava mexer os pés amarrados. As mãos mantinha-as atrás das costas, numa posição impossível de as poder mexer. Nada sabia dos seus irmãos que tinham tentado fugir. Sabia que Umbaló tinha perdido a vida a atravessar de barco no Mediterrâneo. Sabia-o porque se encontrara naquele pátio com o seu primo, que tal como ele tinha sido capturado para serem vendidos.

Mais umas vidas subtraídas para multiplicaram ganhos dos seus patrões numa qualquer mina de extracção de minérios preciosos para fabrico de tecnologia de ponta.

Os guardas olhavam-nos. O sol inclemente deixa-lhes a pele a luzir e a cabeça a doer. Tinha o corpo paralisado. Transido de horror esperava a sua sorte. Homens brancos gritavam uns com os outros. Aos poucos as centenas de homens ficaram dispostos em filas de cinquenta para tornar a venda mais fácil quando os fossem escolher. Para alguns homens há tradições que teimam em não morrer…

Os planos de domínio, de nova ordem, bem urdidos, impõe a era. Não se ouvem os gritos já roucos dos inocentes. Apenas o silêncio elevado dos culpados. Que são também aqueles que sabem e nada dizem. Que são também aqueles que fazem com que o lado da desumanização vença. O capitalismo venceu o fascismo e o comunismo. Sobram poucos humanistas e democratas. Os exércitos ao serviço do novo capitalismo autoritário dominam seres sem vontade, sublimados, com identidades arruinadas, num ambiente de medo, ultra competitivo, segregado pela ferocidade da sobrevivência vencido pelo desgaste. As organizações criadas para protecção da vida deixam que o mal se banalize.

Exaustos, Indjai e Elis caem. Nas suas costas uma esteira de corpos jaz ao som de um sonolento blues.

Anabela Ferreira

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