O segredo de Estado e o Estado do segredo

No regime fascista, precisamente com vista à sua manutenção e reforço, tudo era segredo e segurança de Estado. E tudo, desde a apertada vigilância, a prisão, a tortura e até o assassinato dos adversários políticos até à mais feroz censura sobre o que supostamente pusesse em causa esse segredo e essa segurança, era deste modo justificado. Por isso mesmo a Pide seguia, escutava e vigiava quem ousasse pensar diferente da ideologia oficial. E as notícias de todos os factos desfavoráveis ou desagradáveis para o regime eram pura e simplesmente cortadas e eliminadas, como sucedeu, por exemplo, com as relativas às cheias de 1967 e às mais de 7 centenas de mortes que tais cheias, aliadas às mais miseráveis condições de vida de muitos dos nossos concidadãos, causaram.

Dentro desta mesma lógica, e em consonância com a ideologia que – sob aforismos como o de “Tudo pela Nação, nada contra a Nação!” ou o de “Quanto maior for a obediência, mais suave é o mando” – desprezava e desvalorizava o cidadão, considerando-o não um sujeito de direitos mas um mero objecto do exercício de poderes, todos os órgãos e serviços da Administração Pública, bem como as próprias empresas “majestáticas” concessionárias do serviço público, pautavam-se por uma postura em absoluto arrogante e autocrática. Própria de quem não tinha que dar informações e muito menos explicações sobre o que fazia e o que decidia, mesmo que com isso afectando direitos fundamentais e interesses legítimos dos cidadãos.

O cidadão, assim propositadamente confrontado com o silêncio e mantido na intencional ignorância acerca do que se passava, que questionasse o que quer que fosse, no mínimo era logo considerado um agitador ao serviço de “interesses inconfessáveis” acabando muitas vezes acusado de “interferir com a acção das autoridades”.

Ora era de esperar que com o 25 de Abril de 1974 e o derrube do regime fascista estas concepções e estas práticas, porque frontalmente contrárias aos princípios políticos e constitucionais mais básicos num Estado que se passou a proclamar “de Direito Democrático” (artº 2º da Constituição da República Portuguesa), fossem por completo erradicadas.

Mas a verdade é que não o foram!

Por um lado, continuamos a ter órgãos e serviços da Administração Pública – de que a Segurança Social, o Fisco e inúmeros órgãos autárquicos, bem como empresas concessionárias de serviços públicos, como as de transporte aéreo, são significativos exemplos – que continuam a ver o cidadão conhecedor e cioso dos seus direitos como alguém a ignorar, senão mesmo um “alvo a abater”.

O elementar direito à informação sobre o andamento dos procedimentos administrativos é todos os dias negado naqueles organismos e serviços, designadamente em autarquias locais, obrigando os cidadãos a terem de recorrer ao autêntico poço sem fundo que é a Justiça administrativa para, mediante a necessária intentação de um processo especial, obrigar a Administração a prestar a informação ou a passar a certidão que, voluntária e espontaneamente, há muito deveria ter disponibilizado. O princípio da audiência prévia do interessado é sistematicamente torpedeado por práticas administrativas sinuosas e habilidosas, nomeadamente da Segurança Social, que por completo o inviabilizam na prática.

Por outro lado, a lógica do “Estado do segredo” também vai longe. E todos os dias se repetem histórias, tão caricatas quanto significativas, como a conhecida saga de um jornalista que, há uns anos atrás, procurou saber quantos guardas florestais e quantos guarda-rios ainda existiriam em Portugal e se deparou, no Ministério da Agricultura de então, com um enorme e impenetrável muro de silêncio como se tivesse perguntado algo sobre segredos militares do País…

Ao mesmo tempo, continuam a campear impunemente as práticas policiescas de vigilância sobre activistas políticos ou sociais ou simplesmente vozes discordantes. E, por isso, actuações policiais completamente ilegítimas e ilegais como as de filmagens não autorizadas de manifestações, de detenções arbitrárias e apreensões de telemóveis e agendas, de obtenção pela Polícia, sem mandado de qualquer autoridade judiciária, junto da RTP de imagens em bruto (não editadas), de concentrações ou manifestações, tudo isso passou até agora impune, sem que desde logo o Ministério Público promovesse qualquer procedimento criminal contra os respectivos responsáveis.

Os Governos, o actual e todos e cada um dos que o antecederam, acham bem que se acoberte, sob o manto diáfano do silêncio e sob as mais variadas justificações, designadamente de carácter jurídico-formal, tudo o que lhes possa ser inconveniente, tal como fez o Governo de Salazar, por exemplo, em 1967 relativamente às já referidas cheias e às suas terríveis consequências.

E assim o Capítulo 6 do Relatório sobre “O complexo de incêndios de Pedrógão Grande e Concelhos Limítrofes, iniciado a 17 de Junho de 2017” da equipa de investigação coordenada pelo Professor Domingos Xavier Viegas, mesmo depois de expurgado de todos, sem excepção, os dados pessoais das vítimas, é metido na gaveta. Como o é também o Parecer pedido pelo Primeiro Ministro ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a imunidade ou não do ex-Vice-Presidente angolano Manuel Vicente num processo-crime actualmente a correr.

Mas, entretanto, é o mesmo António Costa que, intencional e ostensivamente, impediu a investigação judicial das acções, denunciadas por próprios funcionários do SIS – Serviços de Informação e Segurança, de vigilâncias, de escutas telefónicas e de intercepção de comunicações electrónicas, acções essas totalmente ilegais (porque fora do âmbito de um processo crime, executadas sem mandado judicial e por entidade que não tem para elas competência legal) e executadas pelo mesmo SIS.

Com efeito, e com base em certidões vindas do conhecido processo-crime nº 5481/11.4TDLSB em que foram arguidos, julgados e condenados, entre outros, os ex-funcionários do SIS Jorge Silva Carvalho e João Manuel da Silva Luis, foi instaurado pelo DCIAP – Departamento Central de Investigação e Acção Penal do Ministério Público, um outro processo-crime (o nº 219/16.2TELSB). Este outro processo destinava-se à investigação de condutas, anunciadas pelos próprios no processo em que foram julgados, de monitorização de comunicações, quer telefónicas, quer por via electrónica, bem como de gravação de som e de imagem em espaço público e até privado, de cidadãos, e as quais resultavam fortissimamente indiciadas não apenas por actuações e procedimentos referidos na audiência de julgamento, mas também pelos próprios Manual de Procedimentos e Módulos de Formação disponibilizados aos agentes do SIS.

Tendo-se as pessoas que podiam depor sobre tais matérias esquivado a fazê-lo invocando – é claro!… – o segredo de Estado, o magistrado do Ministério Público, como questão absolutamente imprescindível para a investigação da descoberta das ditas escutas, intercepções, vigilâncias e gravações, pidescas e completamente ilícitas, requereu em Julho de 2016 ao Primeiro Ministro António Costa o levantamento do mesmo segredo.

E o que fez António Costa? Conforme se soube apenas há pouco tempo, três meses depois daquele requerimento do Ministério Público, por ofício de 7/10/16, não só não autorizou o levantamento do dito segredo do Estado, inviabilizando e assim por completo aquelas investigações, como logo classificou de secreto esse seu próprio despacho, impedindo deste modo que se conheçam as razões que o Chefe do Governo invocou para não querer que se investiguem aqueles gravíssimos, e absolutamente intoleráveis num Estado de Direito, abusos.

O que fez, e faz, correr António Costa nesta questão?

Qual a diferença então entre a opaca e sigilosa Administração Pública do fascismo e a da actualidade, pelo menos nos casos relatados? E qual a diferença entre a impunidade garantida aos agentes da Pide para vigiarem, seguirem, escutarem e gravarem os cidadãos tidos por incómodos ou perigosos e a impunidade garantida (pelo não levantamento do segredo de Estado) aos funcionários do SIS ou a elementos de outros serviços policiais, formais ou informais, que façam (e a verdade é que fazem…) rigorosamente o mesmo?

E, já agora, e visto que tal por aí consta, por que razão não esclarece o Governo se os novos submarinos da Armada têm ou não capacidade para efectuar intercepções de comunicações telefónicas e, em caso afirmativo, para que é que é utilizada essa tecnologia, e quem, como e onde controla o seu uso?

Ou mais um muro de silêncio se irá erguer também sobre esta matéria?

António Garcia Pereira

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