Silêncios cúmplices em tempo de pandemia

Há várias questões com que, enquanto cidadãos activos e conscientes, nos deveríamos preocupar e que deveriam estar a ser debatidas amplamente, como se espera que suceda numa sociedade que se diz democrática. A verdade, porém, é que, e por formas bem mais sofisticadas e subtis do que os métodos do velho “lápis azul” da censura, não o estão a ser. E, todavia, elas estão lá, não desaparecem e antes influenciam, perturbam e até ameaçam as nossas vidas muito mais do que poderíamos pensar.

Vejamos:

Uma governante como a Ministra da Saúde, que até hoje foi incapaz de dirigir uma só palavra de afecto e de amparo aos profissionais do sector da Saúde, em particular aos infectados na linha da frente do combate à COVID-19, e que é a responsável máxima por um alegado erro informático que impede o pagamento este mês do (miserável) aumento dos salários desses mesmos profissionais enquanto todos os outros recebem, não deveria ser imediatamente demitida? Na verdade, se um profissional de Saúde, nesta ou em qualquer outra situação, por negligência ou incompetência, for autor de uma acção ou de uma omissão de que resultem para outrem, designadamente para um paciente, danos materiais e/ou morais, não está sujeito a responsabilidade disciplinar, cível e até criminal? Então, por que é que a Drª Marta Temido pode escapar incólume após mais esta sua ignomínia?

É ou não verdade que, ao longo do mês de Fevereiro, a OMS fez vários apelos (pelo menos quatro) para que os Estados tratassem de assegurar equipamentos de protecção suficientes, sobretudo para os profissionais da saúde, e de testar, testar o mais possível, e que o governo português só efectuou a primeira grande encomenda de material já bem em meados do mês de Março? Quantas vidas poderiam ter sido salvas – e bastava uma só! – se se tivessem logo efectuado, e com carácter de generalidade, testes da COVID-19 aos idosos que estão em lares (e são 100.000) e aos funcionários que aí trabalham (65.000)?

É ou não absolutamente inaceitável que, na terceira semana de Abril, perante a inércia das autoridades de Saúde, uma câmara municipal (a de Gaia, aliás, dirigida por um autarca socialista) em cujo concelho existe um lar com utentes e funcionários infectados com a COVID-19, se tenha visto obrigada, após cerca de duas semanas de falta de resposta, a mandar realizar, por iniciativa e a expensas suas, os testes a tais pessoas? Não teria sido mais correcto e mais verdadeiro a Directora-Geral da Saúde e a Ministra da Saúde terem logo no início reconhecido não haver máscaras e testes em número suficiente, em vez de terem procurado, durante semanas a fio, inventar justificações pseudo-científicas para desaconselhar o seu uso, para depois terem de se desmentir a si próprias?

Por outro lado, quais as medidas que até hoje foram decididas e adoptadas ao abrigo do estado de emergência que não poderiam ter sido adoptadas ao abrigo do estado de calamidade nacional decretado de acordo com a Lei de Bases da Protecção Civil? O que fez então correr o Presidente da República e o Governo para essa solução? Não é verdade que a suspensão do direito à greve e do direito constitucional de resistência são as únicas dessas medidas que, na verdade, não poderiam ser decretadas ao abrigo do estado de calamidade? E exactamente para que é que elas eram então necessárias? Por que razão praticamente desapareceram dos grandes órgãos de comunicação de massas, com as televisões à cabeça, os pontos de vista seriamente críticos do estado de emergência? É aceitável que, embora afirmando formalmente a liberdade de expressão, em nome do combate à pandemia e sob a capa da “responsabilidade” e do “não criar divisões”, ou, pior ainda, do estafado argumento da “necessidade de estabilidade política”, o unanimismo oficial imponha a supressão prática dessa mesma liberdade?

Por que é que o governo do Sr. Costa, tão lesto a decretar a requisição civil na greve dos estivadores do porto de Lisboa – não obstante as sucessivas e bárbaras ilegalidades praticadas pelos patrões da estiva – não decretou essa mesma medida da requisição civil relativamente aos serviços dos SAMS cujo encerramento já dura há cerca de um mês, deixando mais de 90 mil beneficiários sem acompanhamento médico? Será por o Presidente do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, titular dos SAMS, e Presidente da Comissão Executiva destes, ser um conhecido deputado do PS?

O governo também anunciou pomposamente o aumento dos inspectores da ACT e o reforço dos poderes desta, mas, desde o início da crise, quantos autos foram efectivamente levantados e quantos despedimentos ilegais foram afinal realmente impedidos?

É aceitável que numa situação de crise como esta a concessão de subsídios de desemprego possa continuar sujeita a condições, designadamente de períodos mínimos de contribuições, que excluem logo à partida cerca de 2/3 dos desempregados oficiais? Um desempregado que chegara há quatro meses ao mercado do trabalho tem menos fome do que outro que já lá estava há mais tempo?

E, já agora, face às notícias de sucessivos casos de gritante especulação nos preços dos produtos essenciais no combate à COVID-19 (como o gel desinfectante e as máscaras) e ao elevadíssimo número de queixas apresentados (ultrapassando as 4.500), quantos autos por especulação levantou já a mesma ASAE? Somente 15?! E porque não vai a ASAE aos hospitais privados como os da CUF levantar esses autos pela cobrança aos pacientes de valores astronómicos pelos kits de protecção individual dos… funcionários desses mesmos hospitais privados?

Porque é que ninguém quer saber de quanto já era a dívida criada à TAP antes da COVID-19 pela administração designada pelo Sr. Neeleman e companhia, sobretudo quando se sabe que a mesma TAP já tinha então uma dívida de mais de três milhões de euros, que lançara obrigações no valor de 700 milhões com juros de 4,4% ao ano e que os prejuízos relativos ao ano de 2019 foram de 106 milhões de euros? Não será porque assim se permite atribuir à pandemia todos os buracos da desastrosa gestão financeira daqueles mesmos senhores e se permite proteger a teia de obscuros interesses a que os mesmos estão ligados?

E como é possível que ninguém denuncie, alto e em bom som, que aquilo que essa mesma administração da TAP pretende, para além de esportular em mais de 400 milhões de euros os contribuintes portugueses, constitui um crime, já que esses senhores se propõem ficar, e durante um ano, com os montantes descontados dos salários dos trabalhadores a título de IRS e de TSU, e que deveriam ser de imediato entregues às Finanças e à Segurança Social?

E é admissível que, em particular os defensores das medidas como as da Tróica – com o brutal aumento dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e os cortes de salários e de subsídios que elas representaram –, agora achem excessivo que se aumentassem os impostos sobre os enormes lucros dos Bancos e de empresas como a GALP ou a EDP (que estão a distribuir centenas de milhões de euros de lucros pelos respectivos accionistas)? 

É aceitável a hipocrisia, inclusive publicitária, das grandes multinacionais portuguesas (como a GALP, a EDP, a Jerónimo Martins, a PT, a SONAE ou o BCP) que, só entre 2009 e 2011, deslocaram 2,6 mil milhões de euros de lucros para a Holanda num esquema de “legal” evasão fiscal e que pretendem aparecer agora como grandes amigas dos portugueses e muito preocupadas com a situação destes?

E é aceitável o espectáculo mediático em torno das declarações do Sr. Costa acerca das afirmações do Ministro das Finanças da Holanda, quando este apenas disse em voz mais alta e em tom mais provocatório exactamente o mesmo que pensam a Áustria, a Finlândia e, sobretudo, a Alemanha, quanto ao apoio aos países europeus mais atingidos pela COVID-19?

E já parámos um momento sequer para reflectir sobre o modo como a forma unanimista e asfixiante com que as questões da COVID-19 estão a ser tratadas nos embota a nossa razão crítica e a nossa capacidade de reflexão, ao ponto de passar quase despercebido um crime absolutamente bárbaro como o do brutal assassinato à pancada de um cidadão ucraniano, algemadocometido no Centro de Acolhimento do Aeroporto de Lisboa por três agentes do Estado português (Inspectores do SEF) que, mesmo depois de terem mentido vergonhosamente afirmando ao pessoal da emergência que o mesmo cidadão falecera de “doença súbita”, foram tranquilamente mandados para casa em regime de mera prisão domiciliária?

E quem duvida das pulsões securitárias que, à sombra do estado de emergência, se têm estado a preparar e a treinar, não se interroga sobre a forma totalmente desproporcionada e ameaçadora com que as forças da GNR e da PSP têm acorrido a acabar com concertos feitos por alguns artistas para os respectivos vizinhos? As polícias – que normalmente nada fazem relativamente a situações de ruído por completo abusivas – agora acorrem com sete carros patrulha e uma carrinha carregada de militares de “intervenção rápida” armados até aos dentes e de bastão em punho para acabar com um desses concertos?

Os dados pessoais dos cidadãos que estão a ser disponibilizados às autoridades policiais ou que estão a ser obtidos por estas nas operações que têm estado a levar a cabo, vão para que bancos de dados, e são geridos por quem e controlados por quem? É sabido que noutros países estão a ser obtidos e utilizados, em nome do combate à pandemia da COVID-19, dados de geo-localização dos cidadãos, designadamente a partir dos respectivos telemóveis, bem como acabou de ser noticiado que a própria Comissão Europeia está a trabalhar com oito operadoras de telecomunicações para esse mesmo efeito. E, entre nós, o que se passa neste campo? O governo português não está a colaborar com a União Europeia nesta actividade? E então para onde vão, quem utiliza e quem controla o uso destes mesmos dados?

E também nada temos a dizer da conduta de alguns juízes dos nossos Tribunais Criminais que, contra todos os princípios legais e constitucionais, mas invocando precisamente o estado de emergência, estão a forçar a realização de julgamentos penais sem a presença dos arguidos, mesmo quando estes expressamente pretendem exercer o seu direito a estarem presentes?

Que interesses reflectem e protegem todos estes silêncios cúmplices e impedem que os cidadãos reflictam pela sua própria cabeça e não se deixem iludir? E por que tipo de razões se pode explicar a singular circunstância de nenhum jornalista ter ousado confrontar os responsáveis por estas incongruências e falhas?

A ideia de que, em nome da emergência ou da segurança, sanitária ou outra, vale a pena e se justifica sacrificar as liberdades e os direitos essenciais dos cidadãos não é afinal a velha máxima nazi de que “os fins justificam os meios”? E não sabemos já onde conduziram sempre todas as experiências históricas em que os povos aceitaram que ela, mesmo que de mansinho, se fosse impondo?

Em suma, o que é que se julga que, não apenas no mundo em geral, mas também no nosso país, vai acontecer em matéria de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, quando a crise do COVID-19 tiver finalmente passado? Ou, dito de outra forma, à saída desta crise queremos ser, e estamos dispostos a ser, mais ou menos cidadãos? Será que não conseguimos vislumbrar a serpente que, paulatinamente, mas aos olhos de todos os que queiram ver, se tem vindo a desenvolver dentro do ovo?

Será que não nos apercebemos de que ficou agora aberto o caminho e o precedente para, quando no futuro um qualquer Governo adopte medidas de austeridade e de autoritarismo como as que já conhecemos entre 2011 e 2014 e os trabalhadores e os cidadãos em geral justamente se revoltem contra elas, logo sejam decretados novos estados de emergência e novas suspensões de direitos fundamentais, sob pretextos como os de combater essa revolta social e de preservar “a estabilidade política” e “o funcionamento das instituições”?

Talvez nunca como hoje faça tanto sentido a última estrofe do belo poema de José Gomes Ferreira musicado por Fernando Lopes Graça:

“Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!”

António Garcia Pereira

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