Silêncios de chumbo

Decorreu na passada terça-feira, 15 de Janeiro, a habitual “sessão solene de abertura do ano judicial”.

Tratou-se de mais uma verdadeira cerimónia litúrgica em que cada um dos oradores, de uma forma geral, tratou de defender a posição corporativa dos seus pares e, no tocante aos que têm responsabilidades de governação ou de gestão, de afirmar que fizeram tudo o que lhes era possível e que o trabalho do órgão que representam até foi globalmente positivo.

Ou seja, em suma e salvo algumas excepções pontuais, tivemos “mais do mesmo”.

Ora, o que é verdadeiramente elucidativo e, ao mesmo tempo, estarrecedor é que os ditos “oradores solenes” ignoraram o ponto fundamental da Justiça, ou seja, O CIDADÃO! E nem por um momento se detiveram a examinar se a mesma Justiça é mesmo um direito fundamental de todos os cidadãos que a ela podem aceder para defesa dos seus direitos e legítimos interesses ou se hoje é antes um mero “serviço”, de que os cidadãos são simples “utentes”, que se a ela quiserem chegar têm de a pagar.

É assim muito significativo desde logo que, com a única excepção do Bastonário da Ordem dos Advogados, nenhum dos oradores e, muito em especial, os representantes do Ministério Público, dos Juízes e do Governo, haja dito uma só palavra sobre a verdadeira brutalidade das actuais custas judiciais.

Na verdade, ninguém ousou referir que, sendo a taxa de Justiça uma taxa, ou seja, a contrapartida de um serviço, é inaceitável que, para discutir se uma lei que repentinamente lhes retirou um complemento de reforma atribuído há décadas no Acordo de Empresa (como sucedeu com os reformados do Metro) será conforme à Constituição, ou se uma operação de transmissão de empresa ou estabelecimento para uma entidade fantasma sem património e com um capital irrisório (como aconteceu com trabalhadores da PT/Meo/Altice) é ou não contrária às leis nacional e comunitária, um trabalhador tenha de pagar, pelo menos, 612€, quantia esta que tem ainda de desembolsar de novo sempre que haja um incidente, uma reclamação ou um recurso a apresentar, ou até simplesmente a responder.

E, mais, embora o serviço do Tribunal seja rigorosamente o mesmo, se na mesma acção for autor, não um, mas 100 trabalhadores rigorosamente na mesma situação (poupando assim ao Estado o trabalho e os custos de uma centena de processos diferentes), é afinal exigido o pagamento do referido montante por cada um deles, embolsando assim o Estado 612€ x 100 = 61.200€!

É fundamentalmente por isso que, se em 2007 deram entrada nos Tribunais Judiciais 864.193 processos, em 2018 entraram apenas 437,554 (50,63%!?). Milhares e milhares de cidadãos, designadamente nas áreas do Trabalho, da Família e da Habitação, viram-se assim forçados a coibir-se de exercer o seu direito fundamental, consagrado no artº 20º da Constituição, de aceder aos Tribunais para defenderem os seus direitos por o respectivo custo lhes ser absolutamente proibitivo.

Mas claro que nem Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nem Procuradora-Geral da República, nem Ministra da Justiça, nem Presidente do Parlamento, nem Presidente da República, quiseram saber disto para nada…

Depois, ficou também absolutamente patente a completa incapacidade de juízes e procuradores não só de aceitarem que se faça uma análise séria e criteriosa da sua actividade como também de se autocriticarem.

Na verdade, há um balanço muito sério que tem de ser feito acerca do actual modelo de processo penal, em particular da sua fase de inquérito em que o Ministério actua como bem lhe apetece sem prestar contas a ninguém e sem respeitar os prazos processuais que, porém, já são obrigatórios e vinculativos para os cidadãos, sejam eles queixosos ou arguidos, e para os respectivos advogados.

O elevadíssimo número de escutas (em muito maior número do que na generalidade dos países europeus), a criação de ingeríveis megaprocessos, com dezenas de arguidos, centenas de testemunhas, centenas de milhares de documentos, e também as muitas e sempre cirúrgicas (e sempre impunes) violações do segredo de Justiça, os juízes de instrução criminal que, em vez de garantes dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos arguidos ou vítimas, se arvoram em polícias ou aceitam ser meros colaboradores do Ministério Público, tudo isto tem conduzido a quê? E para não falar nos casos dos Bancos, o que sucedeu com os processos-crime de investigação do caso dos submarinos? E dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo? E da TAP e da sua privatização? E das parcerias público-privadas na Saúde e nas auto-estradas? E dos “swaps”?

Num silêncio de chumbo nem uma palavra foi dita sobre tudo isto!

E o recente Acórdão proferido no chamado “processo dos vistos gold” levanta, também, questões muito sérias, mas sobre as quais nenhum dos responsáveis da Justiça pretende que se discuta. Por um lado, o Juiz presidente do Tribunal que proferiu a decisão que absolveu todos os arguidos pelos factos referentes aos ditos “vistos gold” sentiu-se na necessidade de vir explicar as razões da absolvição e de proclamar que o Tribunal não aceita fazer fretes a ninguém. O que bem mostra a prévia posição condenatória que foi, entretanto, construída na opinião pública através de escandalosas violações do segredo de Justiça e da dimensão da pressão objectiva para a condenação dos arguidos que ela representou.

Por outro lado, as provas apresentadas e sustentadas por um Ministério Público triunfante (e, claro, proclamador do seu habitual discurso de que “agora estamos a atacar os poderosos e a impunidade destes acabou”) como mais do que suficientes para levar os arguidos a julgamento e, neste, à sua condenação – e que também tinham sido confirmadas pelo incontornável juiz de instrução Carlos Alexandre, que as classificou de “avassaladoras” – foram afinal criticadas, desmontadas e reduzidas a pó na decisão do Tribunal de julgamento.

Ora, alguém errou aqui e gravemente e não pode deixar de prestar contas à comunidade pelo que fez! É que, das duas, uma: ou essa decisão de absolvição está errada e importará verificar como é possível que um Tribunal de julgamento (composto por 3 juízes) decida ignorar as provas para absolver uns dados arguidos, ou essa decisão é correcta e os que não só acusaram como condenaram, sentenciaram e executaram na praça pública, a começar pelo Ministério Público, têm de prestar contas por essa atrocidade (e pela deficiente investigação em que se baseou).

Mas é claro que também sobre isto ninguém quis falar na terça-feira passada…

Como também ninguém quis falar que temos hoje uma Justiça a duas velocidades. Por um lado, arrastam-se interminavelmente os megaprocessos criminais (como, por exemplo, os dos Bancos que, ao fim de 10 anos, ainda não meteram na cadeia um único banqueiro). Mas não só! No Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa e no Tribunal Tributário (onde correm as acções de anulação de decisões ilegais de entidades feudais e arrogantes como a Segurança Social ou o Fisco), por exemplo, há processos a aguardar decisão há mais de uma década, produzindo assim a inutilização prática dos direitos que com tais processos e com tais acções os cidadãos autores pretendiam acautelar e defender.

Em contrapartida, a Justiça penal para os “pilha-galinhas” anda muito celeremente. E desde que o Conselho Superior da Magistratura arvorou a capacidade de “matar processos” como o critério essencial, senão praticamente único, para avaliar os juízes e para os fazer, ou não, progredir na respectiva carreira, na jurisdição laboral, em particular em Lisboa, para fazer andar depressa os processos passou a valer tudo (desde a inquirição de testemunhas “ao molho”, isto é, 3 ou 4 em simultâneo, até à violação ostensiva do Código de Processo do Trabalho não fazendo as diligências que este determina como, por exemplo, a chamada “audiência de partes”).

Ao mesmo tempo que o representante máximo dos juízes perora sobre o princípio da independência, vigora hoje nos Tribunais a figura de um autêntico “polícia” dos juízes – o Presidente da Comarca – que, além de ser “os olhos e os ouvidos” disciplinares e de avaliação e classificação do Conselho Superior da Magistratura, tem nomeadamente o poder de propor ao mesmo Conselho a retirada de um dado processo ao juiz a quem ele foi distribuído para o atribuir a outro julgador, com frontal e escandalosa violação dos princípios do juiz natural e da independência do poder jurisdicional.

Mais! A incapacidade da autocrítica é mesmo absoluta quando se verifica que as verdadeiras atrocidades que foram sendo consagradas, e por Tribunais superiores, no nosso País – e algumas das quais foram motivos de humilhante condenação do Estado português por Tribunais Internacionais como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – são por inteiro desvalorizadas e consideradas meros casos “pontuais” (como se uma só barbaridade já não justificasse um juízo crítico muito sério). E, logo, ninguém discute e ninguém quer que se debata como, por quem, e porquê são escolhidos, ensinados e formados os juízes e os magistrados do Ministério Público, e depois como, com que critérios e por quem são avaliados, classificados e sancionados. E assim este tipo de decisões aberrantes vai impunemente proliferando não só na Justiça Penal, mas também, por exemplo, nas do Trabalho e da Família.

E, todavia, estamos a falar de um órgão de soberania (“Tribunais”) que não tem uma legitimação democrática e quando aqueles que sempre gostam de se apresentar como seus titulares (os juízes) não são eleitos por ninguém.

Num conjunto de autênticos silêncios de chumbo nada disto foi falado pelos diversos responsáveis da Justiça. Como também não foi referido nas suas intervenções o problema da situação absolutamente catastrófica do nosso sistema prisional e de muitos dos seus estabelecimentos, ou o da inaceitável menorização e desqualificação dos funcionários judiciais que deveriam ter direito à palavra na sessão solene e tão justa quanto ruidosamente protestaram na rua, em frente ao Supremo Tribunal. Como ninguém (à parte uma correcta, mas muito ligeira, referência do Presidente do STJ a que não compete aos Tribunais erigir alvos essenciais da sua actividade) ousou dizer frontalmente à Procuradora-Geral da República – que, para além de retomar a questão da composição do Conselho Superior do Ministério Público, pretendeu apresentar desafios e prioridades da política criminal – que a definição desta é da competência do Governo, e não do Ministério Público.

Não se falando em nada disto, tornou-se absolutamente claro que, para estes responsáveis, é tudo para ficar no essencial na mesma. Assim, se nós, cidadãos, não nos erguermos contra este estado de coisas, o Ministério Público continuará a fazer o que quer na fase do inquérito e as violações do segredo de Justiça vão continuar a suceder-se impunemente.

A brutalidade das custas judiciais será para manter, assim se engordando as receitas do Estado e diminuindo o número de processos pendentes.

A formação, a avaliação, a classificação e o sancionamento disciplinar dos magistrados continuarão entregues à elite dos seus aparelhos corporativos, sem que os cidadãos tenham nada a ver com isso, e com aqueles que ousam pensar pela própria cabeça ou posicionar-se “fora da caixa” a serem silenciados ou até disciplinarmente castigados, enquanto os autores das referidas barbaridades judiciais prosseguem tranquilamente as suas carreiras.

O livre desenvolvimento das ideias que tendem a dar mais importância (e mais pesadas penas) aos crimes económico-financeiros do que aos crimes contra as pessoas irá assim continuar.

Vão também continuar a desenvolver-se, com o auxílio da Comunicação Social “amiga”, as teses de que há um “excesso de garantismo” e o que é preciso é destruir direitos (designadamente de reclamação e de recurso) e remover obstáculos (desvalorizando a função e mantendo ou agravando a dificuldade ou até a impossibilidade da intervenção dos Advogados, tidos como um empecilho à “acção da Justiça”).

Terá mesmo de ruir um estabelecimento prisional para o actual Director-Geral das prisões e a Ministra da Justiça finalmente reconhecerem que algo está podre neste domínio.

A Justiça, essa, será um luxo, apenas acessível a ricos, e um instrumento triturador do pequeno delinquente e de abate de adversários políticos ou de cidadãos incómodos.

E é por tudo isto que não nos devemos espantar que se repitam – como se repetiram em 2018, por exemplo, com o Acórdão de 27 de Junho do Tribunal da Relação do Porto (ler artigo “Quando os lobos julgam“), no caso da jovem violada num bar de Gaia, também subscrito por Manuel Ramos Soares, antigo secretário-geral e actual Presidente da Associação Sindical dos Juízes – barbaridades medievais como a da “coutada do macho ibérico” do tristemente célebre Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/1989 e cujo teor integral foi, aliás, entretanto e muito significativamente eliminado do registo dos Acórdãos na net (dgsi), apenas dele constando um seu sumário, mas de que aqui se cita e se recorda o seu mais significativo trecho:

A verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização.

Na verdade, não nos podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”.

É impossível que não tenham previsto o risco que corriam, pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la.

Assim, ao meterem-se as duas num automóvel juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam turistas estrangeiros habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que o da maioria das nativas.

(sic, a fls. 165 do Boletim do Ministério da Justiça nº 390, de Novembro de 1989).

É esta a Justiça que nós, cidadãos, queremos e permitimos?

António Garcia Pereira

Um comentário a “Silêncios de chumbo”

  1. Pedro Leal Narciso diz:

    O Nosso Sistema Cultural é Dogmático, Litúrgico, Está Historicamente Corrompido, Contra-Reforma, as Vítimas, São a Maioria dos Cidadãos. Temos, Uma Má Gestão Governativa e Publica dos Serviços Administrativos do Estado, Chefias, e em Bancos Privados, Aumento do Tráfico de Influências, Corrupção. Daí o Atraso do Estado Social, Pobreza, Injustiça, Discriminação, Divisão, Emigração, Grandes Desigualdades e Falência Económica Nacional. Complementar Comentário.

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