Silêncios sombrios

Aproximando-se a altura da discussão e aprovação do Orçamento de Estado para 2019, é muito curioso e significativo o silêncio sombrio que se pretende fazer cair, quer sobre as leis, quer sobre a Justiça do Trabalho.

Quanto a esta última, não obstante ser inegável o valor escandalosamente (para não dizer escabrosamente) alto das custas judiciais, em geral, mas muito especialmente nas questões laborais, e apesar de aparentemente todos os “actores” da Justiça (Juízes, Procuradores, Advogados e funcionários) concordarem nessa apreciação, certo é que, depois de algumas declarações gongóricas de há uns tempos atrás, agora nem uma só palavra se ouve sobre a absoluta e urgente necessidade (sob pena de um verdadeiro impedimento de acesso à Justiça) da drástica redução das custas, sobretudo em processos laborais.

É que os partidos da direita acham bem que, pelo garrote financeiro, se impeça os trabalhadores de reagir perante os abusos e as ilegalidades de que sejam vítimas e de intentarem os procedimentos judiciais adequados à defesa dos seus direitos. Mas os partidos da chamada geringonça, com o PS à cabeça, fazem afinal exactamente aquilo que, quando estavam na oposição, criticavam no Governo Coelho/Portas. Ou seja, em nome do “equilíbrio das contas públicas”, do “rigor” e da “contenção da despesa”, não querem abdicar dos valores exorbitantes que a máquina do Estado cobra aos cidadãos para que estes possam – como é seu basilar direito – aceder aos Tribunais.

Mas não só! É que o Governo do Sr. Costa já deixou, e por variadas vezes, bem claro que não mexerá uma palha no que houve de pior nas reformas laborais da Tróica, ou seja, na facilitação e no embaratecimento drástico dos despedimentos ditos por “justa causa objectiva”, isto é, dos despedimentos colectivos, por extinção do posto de trabalho e por inadaptação. Bem como na facilitação de certo tipo de contratação precária, ou até mesmo aprovando o seu alargamento como sucedeu com os contratos de muito curta duração, agora utilizáveis por períodos de 30 dias e em qualquer sector de actividade. Também – o que não é de somenos! – com a manutenção da possibilidade de os patrões provocarem a caducidade da contratação colectiva. E, finalmente, com a manutenção da regra[1]que impõe ao trabalhador que tenha sido atingido por um dos tais despedimentos por causas objectivas e que o queira impugnar judicialmente, a obrigação de devolver de imediato ao patrão a totalidade da indemnização de antiguidade que este tenha colocado à sua disposição, sob pena de, não o fazendo, a lei presumir que o trabalhador aceitou o seu despedimento e já não o poder atacar judicialmente, por mais ilícito e abusivo que ele seja.

Os fundamentos, já de si vastíssimos na letra da lei, para justificar esse tipo de despedimentos têm sido tornados ainda mais amplos por uma generalizada postura dos juízes do Trabalho no sentido de darem por boas e de não questionarem as decisões empresariais neste campo, chegando um acórdão de um Tribunal da Relação ao ponto de proclamar que a gestão empresarial “tem todo o direito a querer ser ruinosa” e que não cabe ao Tribunal analisar e fiscalizar a correcção ou incorrecção das razões ditas de “gestão empresarial” por aquele invocadas para tentar justificar o mesmo despedimento.

E tudo isto, ainda por cima, com indemnizações de antiguidade verdadeiramente miseráveis, pois que, por força das reformas laborais da Tróica, de Setembro de 2013 em diante aquelas passaram a ser de apenas 12 dias das já normalmente muito baixas retribuição base e diuturnidades por cada ano de serviço.

Ora, em nenhum destes pontos pretendem realmente os partidos representados no Parlamento tocar. Mas não só!

A verdade é que também reina o maior dos silêncios sobre a patente incapacidade de intervenção da ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho, a qual não vê, não ouve e não fala, designadamente sobre as inúmeras e cada vez mais escandalosas situações de abuso e de exploração patronais (do trabalho escravo na agricultura e na restauração à hiper exploração de jovens nos call centers, por exemplo), introduzindo assim uma ainda maior “flexibilidade” (leia-se, inefectividade) real da legislação laboral portuguesa.

É importante por isso relembrar que, precisamente ao invés do que diariamente proclamam os habituais pensadores da ideologia dominante, os trabalhadores portugueses não são apenas dos que mais horas trabalham e menores salários recebem na Europa.

Com efeito, dados estatísticos recentemente conhecidos demonstram que, em 2018, 76,6% – exactamente, mais de 3/4!… – dos trabalhadores portugueses por conta de outrem não tem um horário “normal”, fixo, com base no qual possam estruturar, programar e organizar devidamente a sua vida pessoal e familiar, sendo que, no sector da construção, essa percentagem atinge mesmo os 85%. Por outro lado, segundo o próprio Serviço de Ciência da União Europeia, Portugal está em 3º lugar na percentagem (quase 10,6% do total) de trabalhadores europeus que, em condições de enorme precariedade e praticamente sem quaisquer direitos ou regalias, designadamente em termos de horários, retribuições mínimas e condições de segurança e saúde no trabalho, trabalham para plataformas digitais como a Uber, a Ubereats, a Taxify, a e-Booking, a Tripadvisor, a Airbnd e a Glovo.

E enquanto a Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA) encontrou em Portugal e denunciou, não apenas inúmeros casos dos abusos laborais mais infames, como também a inexistência ou a total inconsequência, na maioria dos casos, da intervenção da mesma ACT, a própria e insuspeita OCDE, no estudo “How´s Life 2017: Measuring Well-Being”, apresentou Portugal como um país de salário médio muito baixo (846€), um nível de produtividade baixíssimo (27,2) com o número de horas de trabalho semanal mais elevado (39,4) e um dos mais baixos índices de equilíbrio entre a vida pessoal e familiar (5,2%). Isto, enquanto, por exemplo, em Espanha, o salário médio é de 1.718€, o nível de produtividade de 49,6, o número de horas semanais de 38 e o índice de equilíbrio de 6,4. E em Itália, respectivamente, 1.948€ de salário, 45 de nível de produtividade, 37 horas por semana e um índice de equilíbrio de 5,9.

Enquanto os pregadores do reino afirmam que a taxa de desemprego nunca foi tão baixa, certo é que temos mais de 14 mil cidadãos em situação de autêntica escravatura e mais de 22 mil trabalhadores sem receberem os seus salários. No 1º trimestre do presente ano de 2018, 65% dos trabalhadores entre os 25 e os 34 anos ganhavam em média 876€, isto quando o estudo do INE “Rendimento Adequado Portugal”, recentemente actualizado, aponta para que 1.025€ seria o valor do rendimento necessário para um adulto viver sozinho, sem pessoas a cargo e com um padrão de vida minimamente digno. Mas, entretanto, mais de 600 mil trabalhadores ganham apenas o salário mínimo nacional e perto de 134 mil têm de sobreviver com um rendimento abaixo dos 310€ por mês.

É certo que, ainda assim, os “especialistas” oficiais se atrevem a proclamar todos os dias que os trabalhadores portugueses ganham razoavelmente, trabalham muito pouco e têm inúmeros direitos e regalias.

Mas a verdadeira realidade do nosso país é a de que, sobretudo os jovens, apenas conseguem empregos precários à partida e, mesmo para licenciados, muito mal pagos, bastando ver que 80% das propostas de emprego do Instituto do emprego e Formação Profissional – IEFP são para trabalhos com salários inferiores a 1.000€ mensais. Mesmo os trabalhadores mais antigos e com contratos aparentemente mais estáveis são hoje muito facilmente despedidos por meio dos já referidos despedimentos colectivos ou por extinção do posto de trabalho e com indemnizações baixíssimas.

Multiplicam-se, livre e impunemente, os truques e as artimanhas dos contratos de fornecimento de mão-de-obra, dos pagamentos por baixo da mesa ou sob a capa de “quilómetros”, de “ajudas de custo” ou de “comissões”. A ACT não vê, e se vê não actua, muito menos eficazmente. O recurso aos Tribunais está cada vez mais transformado num produto de luxo, só acessível aos que têm maiores recursos financeiros.

Por tudo isto, para estes milhões de pessoas que não têm outra coisa de seu que não seja a sua força e capacidade de trabalho, que todos os dias saem de casa sem saberem nem a que horas vão conseguir regressar nem se, nessa altura, ainda têm emprego, todo este silêncio dos dirigentes políticos torna-se sombrio. E os debates sobre o Orçamento de Estado não passam de um lúgubre e decadente espectáculo de circo.

António Garcia Pereira

 

[1]Artº 366º, nºs 4 e 5 do Código do Trabalho.

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