SNS ou atestado de indigência?

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

Até aos primeiros anos da década de 1960, em plena ditadura, a saúde era uma mera subsecretaria de estado do Ministério do Interior.

Os cuidados de saúde então existentes eram integralmente pagos pelos cidadãos a não ser que conseguissem apresentar um atestado de indigência emitido pela respectiva junta de freguesia.

As amplas movimentações médicas nesse período e a contestação acrescida que isso representou para o regime ditatorial, determinaram alterações importantes na estrutura dos serviços de saúde, até aí impensáveis.

A primeira delas foi, desde logo, a criação do Ministério da Saúde e depois a elaboração de diplomas legais que lançaram as bases de uma nova abordagem, ainda que tímida, a nível da organização dos serviços.

A criação em 1979 do Serviço Nacional de Saúde (SNS) veio assegurar a universalidade dos cuidados de saúde a todos os cidadãos independentemente do seu nível sócio-económico, sem os ultrajantes atestados de indigência.

Desde a sua criação, o SNS tem sido alvo de frequentes políticas governamentais visando a sua desarticulação e desmembramento, tendo por pano de fundo, sempre, a facilitação de negócios privados, com a saúde a ser encarada pelos poderes instituídos como mais uma mercadoria.

A crise agudizada que se instalou no SNS nos últimos anos é a acumulação de todas as malfeitorias que lhe têm sido feitas.

Muitas vezes é referido que tem havido reforços orçamentais para o SNS, mas o que não é explicado é que a maior parte desses reforços não param no SNS e vão diretamente para entidades privadas que fornecem serviços externalizados pelos serviços públicos de saúde.

Por outro lado, todos sabemos que os recursos humanos são sempre o fator crítico de uma organização e tem sido aqui que a grande maioria das administrações nomeadas entre as clientelas partidárias têm sido mais sádicas na hostilização dos profissionais de saúde.

A experiência acumulada em diversos países, mostra à evidência que as constantes querelas e conflitos abertos com os profissionais conduzem à desorganização dos serviços e ao seu baixo rendimento.

Outra questão nuclear, é que enquanto não for desencadeada uma iniciativa enérgica para alterar profundamente o atual quadro legal da gestão na saúde, os serviços públicos não vão parar de definhar.

A criação de uma lei de gestão hospitalar em 1988, durante um governo presidido por Cavaco Silva e que instaurou o comissariado político, não foi uma iniciativa inocente e obra do acaso.

Se não existir uma gestão competente e sujeita à prestação pública de contas, mesmo que se processem injeções astronómicas de financiamento orçamental, elas não se traduzirão em correspondentes melhorias na capacidade dos serviços públicos saúde para responderem adequadamente às necessidades dos cidadãos.

O que não deixa de ser muito preocupante é que apesar dos resultados deste tipo de gestão mostrarem o mau serviço prestado ao SNS, o PS, que desencadeou o processo de criação deste instrumento constitucional da garantia do direito à saúde, nunca teve a coragem de romper com esta lógica cavaquista e de ultraliberalismo.

É de extrema urgência a elaboração de um novo enquadramento legal da gestão dos serviços públicos de saúde que garante a transparência e competência de todos os nomeados e a criação de patamares de participação dos profissionais de saúde e dos cidadãos inseridos na área geográfica de referência de cada serviço público de saúde.

É indispensável instituir a gestão clínica, entendida como a forma de gerir baseada na responsabilidade dos profissionais na concretização dos objetivos da organização.

A gestão clínica pretende melhorar a eficiência, melhorando a utilização dos recursos diagnósticos e terapêuticos e dotando os profissionais da responsabilidade necessária para que possam tomar decisões em benefício dos doentes e gerindo a procura a partir de critérios éticos, epidemiológicos e científicos.

A gestão clínica é um sistema de descentralização da gestão que nasceu com a finalidade de obter maior implicação profissional na concretização de objetivos de eficiência e qualidade.

É necessário gerar um cenário que possibilite a inovação, a qualidade e a melhoria contínuas, ao mesmo tempo que se potencia a identificação e o compromisso dos profissionais com a instituição.

A gestão é conduzir pessoas e esta ação significa sincronizar vontades.

A gestão é sempre, e em primeiro lugar, de recursos humanos.

Os serviços de saúde têm de alcançar os objetivos (eficazes), utilizar bem os recursos (eficientes) e gerar resultados úteis à sociedade (efetividade).

A fuga de médicos do SNS é uma situação dramática que se pode explicar com a acumulação de diversos problemas que os vários governos sempre teimaram em ignorar numa perspetiva de degradação dos serviços públicos de saúde e de encolherem a “folha salarial” respetiva.

A expansão de múltiplos serviços privados à custa da degradação dos serviços públicos e do encerramento de serviços de algumas especialidades, tem vindo a absorver uma grande parte destas saídas, oferecendo melhores condições de trabalho e de remuneração.

Mas tendo presente diversas experiências internacionais, logo que essa absorção deixe de interessar aos acionistas privados e o objetivo central de extremo debilitamento do SNS esteja concretizado, colocando-o numa posição subalterna, aí a situação irá mudar radicalmente.

O SNS é o pilar fundamental para assegurar a coesão social, entendida como a capacidade de uma sociedade para gerir a mudança e o conflito social, mediante uma estrutura democrática de distribuição dos seus recursos sócio-económicos, sócio-polítiticos e socio-culturais. 

O SNS tem desempenhado um importante papel de “almofada” face às injustiças e às desigualdades sociais.

A Saúde é também um fator de equidade indispensável para um desenvolvimento sustentável.

As medidas que algumas forças políticas têm apresentado para, dizem elas, reformar o SNS, são um direta importação de políticas já amplamente testadas em vários países que enveredaram pela privatização dos seus serviços de saúde, caso mais flagrante da Grã-Bretanha, e que derivam das pressões do Banco Mundial.

O mesmo se passa com os ataques à profissão médica, copiados da experiência da América do Norte. Só que nesta matéria o PS no último ano cometeu a proeza de ultrapassar a direita neoliberal ao elaborar nova legislação sobre as Ordens profissionais.

Nessa zona do continente americano as interferências políticas na dinâmica técnico-científica dos médicos atingiu a sua expressão mais extrema no Ontário, em que os colégios profissionais dos médicos passaram a ter uma representação de mais de 40% de cidadãos não médicos, bem como nos órgãos disciplinares.

Em todo o mundo, a saúde está exposta a um conjunto alargado de fenómenos sociais que caracterizam a mudança social, tais como: aumento da longevidade; a diminuição da natalidade; a imigração; o aumento da prevalência de doenças crónicas; a rapidez do progresso científico; a intensidade da mudança tecnológica; a globalização económica; a judicialização da prática médica; a maior presença dos problemas com a saúde na comunicação social; e um maior acesso à informação por parte dos utentes/doentes.

Todos estes aspetos fazem da saúde um ”barril de pólvora” na cena política de um país.

Dentro de pouco mais de 2 meses, teremos eleições legislativas antecipadas e então veremos que propostas concretas que as principais forças partidárias irão apresentar para superar esta grave situação.

É urgente reerguer o SNS com um programa de revitalização global, de modo a que não tenhamos a regressão civilizacional do retorno dos atestados de indigência numa saúde mercantilizada. 

Mário Jorge Neves, médico.

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