karingana wa karingana (“era uma vez”, em changane)
Quando plantas uma jaqueira ela nunca dá mamão.
Se eu perder a minha memória perco a minha história, não sei quem sou, de onde venho, que caminho construir – para onde vou.
Por isso conto histórias, como as das ilhas no Equador, com o clima quente e húmido fatal para os primeiros colonizadores. Só os escravizados vindos do continente africano suportavam tamanhas aflições, nas plantações de açúcar, de cacau e café, o ouro dos reis.
Situo-me neste lugar da memória porque ambiciono ver estes povos – que são também os meus – a comprar utopias e novas histórias de futuro ao amolador de histórias, que passa por nós anunciando-se com toques de campainha, na sua ginga do tempo.
Os povos que fazem hoje estes países merecem-no. Pretos, brancos, crioulos, de origens tão diversas quanto o somos todos, representantes da mesma espécie humana.
Curiosamente foi o Mestre Malangatana, um descendente de escravos, como eu, tendo recebido múltiplos dons para cumprir – sendo o de contador de histórias um deles – para falar na voz dos antepassados, que me despertou a curiosidade sobre São Tomé e Príncipe.
Dizia-me Malangatana: wa karingana – com o andar do tempo e da colonização, as autoridades Portuguesas precisavam de trabalhadores baratos ou gratuitos, faziam rusgas nas machambas e nas aldeias, raptavam homens e mulheres sem avisar nem pedir licença, atiravam-nos para os porões dos navios (de novo), sem sequer dar tempo para avisar a família (como se isso fosse importante), carregando-os de mão de obra para as roças de cacau, café e plantações de cana de açúcar, seguindo rumo a São Tomé.
Os barcos apanhavam também os Cabo-Verdianos no maior entreposto de escravos, na Ilha de Santiago (muitos tinham recebido enorme mestiçagem, porque filhos de padres e senhores colonos brancos com escravos do continente, que se tornavam logo mal vistos pelos naturais São Tomenses e aproveitados pelo colono como capatazes ou inferiorizados, conforme a corrente que protegesse mais o interesse do administrador), e apanhava Angolanos da N´Gola. Os Angolares. Para nunca mais voltarem.
O regime foi sempre useiro e abusador da filosofia dos uns contra os outros, divididos para bem reinar, com provas provadas de bons resultados.
Aos Cabo-Verdianos não faziam rusgas, fingiam que os contratavam, prometiam que os iriam buscar de volta.
Estes até pediam por misericórdia para serem levados, para terem trabalho e perspectiva de vida melhor uma vez que a fome os matava nas suas ilhas baptizadas com nomes de Santos, pelos fervorosos padres que praticavam a Cristianização e a conversão dos infiéis.
Não regressavam. Ficaram lá esquecidos, indocumentados, ostracizados.
O filme de Leão Lopes, “Os contratados”, mostra a crua realidade, que eu conheci bem enquanto lá vivi, falando com os descendentes, ouvindo dos mais velhos histórias de horror e dor em karingana wa karingana que me lembravam o meu querido amigo Malangatana.
O regime de trabalho pós escravatura no final do século XIX até à Independência em 1974 era de igual violência, num mundo vil de exploração do homem pelo homem. De negócios, corrupção, e protecção de interesses.
Hoje só mudou a nomenclatura.
As mulheres, repetindo o padrão, não apenas eram exploradas no trabalho como de novo usadas ao serviço sexual dos patrões. As violações, os maus-tratos sempre foram uma forma de vida.
Com a benção dos padres a “protegê-las”…
Lembrem-se neste ponto já Estado Novo adentro, o povo Português que vivia na “Metrópole” estava sujeito ao mesmo regime violento de pobreza, sujeição, servilismo, silêncio, miséria, divisão de classes, analfabetismo, isenção de direitos e perseguição política e muitas bençãos de Fátima.
Continuando a karingana,
as primeiras cartas de alforria dão-se aos naturais de São Tomé obviamente descendentes de escravos pretos nascidos nas ilhas (os forros).
Essa liberdade vai distingui-los dos restantes trabalhadores em condições próximas da escravatura, os Angolares e os Cabo-Verdianos.
Estes dois últimos são mais tarde usados pelo regime, na violência contra os forros, o massacre de Batepá (1953), uma “guerra inventada” para reprimir, usando toda a violência imaginada pelo ambicioso, ardiloso e sanguinário Governador Português Carlos Gorgulho que afirmou – “O império não se sujeita às exigências dos nativos”, tudo porque este homem violento precisava de trabalhadores baratos.
A história da luta de classes repete-se, usando a distracção da luta de identidade, daí a relevância da memória.
Em São Tomé, como nos demais países africanos onde vivi, também entendi o significado da exclusão do mestiço, usado para dividir, a quem era dado um lugar acima no estrato social de baixo, para ao se sentir com algum poder, o exercesse debaixo de ordens, e desse lugar ser odiado pelo preto natural, porém sem se poder misturar com o branco hierarquicamente superior.
A função do mestiço era uma. Servir os interesses dos administradores das colónias.
Histórias ainda por contar, nesta minha digressão de tantos caminhos por São Tomé.
Tal como as que mostram hoje um domínio quase colonial dos Angolanos em São Tomé e Príncipe (diz-se ser este último, o navio encalhado ao largo, ou a décima-nona província de Angola), tão intimamente ligados aos naturais e à origens de São Tomé.
Uma não rara promiscuidade vinda do século XV, entre ódios, estratificação social, divisões e rancores, amor, paternalismo e vingança, onde cada um olha por si e protege os seus interesses, dos seus amigos, companheiros e familiares, definem a história destes dois povos.
Até à descoberta de petróleo, aguçando a cobiça e interesses de tantas outras tribos espalhadas pelo globo.
Que as ilhas são uma prancha giratória em profundidades de interesses, não tenho dúvidas.
Que é melhor deixar tudo embrulhado em pouco desenvolvimento e nenhuma educação, entregue aos negócios para erradicar a pobreza, entre amigos e facadas, está provado ser um medicamento favorável aos poucos uns que controlam os muitos outros.
Na guerra de tribos sem distinção de cor, o petróleo já ganhou ao cacau.
Alguns dos contos destas guerras soube-os na primeira pessoa.
São Tomé celebrou a sua independência dos quinhentos anos de colonialismo Português e regime esclavagista a doze de Julho.
Mal sabia eu que ao correr da primeira década de 2000 iria escolher São Tomé e Príncipe para lá viver, no seguimento de um convite para trabalho, na pequena cidade ladeada de árvores de fruta-pão e mangustão, longe das roças.
Eu não sou só das histórias que a cidade me trazia, sou dos lugares onde estão as histórias escondidas. Fui ao encontro delas. No meu livro de viagens deixei algumas.
Outras estão no segredo dos deuses e por lá ficarão.
Fui às roças conhecer o passado para entender o presente. O presente reflecte o passado que lá deixámos como Portugueses.
Plantámos um sistema que ainda serve de espelho, passados cinquenta anos de independência, sobre quinhentos anos de colonialismo e escravatura.
Deixámos um sistema que fez o upgrade.
Plantámos jaqueira, não podemos esperar que dê mamão.
São as tribos movidas a interesses e negócios, com modelos indeléveis na natureza humana em plena reprodução.
Basta olhar para a Europa e Estados Unidos.
Não há segredos no padrão. Basta copiar e colar.
Lá no meio circula o povo silenciado, abusado, servil que não conhece a história, mas conhece os traumas profundos, por vivê-los, traumas esses que ainda não encontraram a terapia adequada, os terapeutas certos para os curar, limpar e fazer avançar.
A memória não tem de ser fruto de trauma, sim de reconhecimento e entendimento. Por isso me encomendei o sermão de a reavivar.
Uma das histórias mais felizes foi a do dia que decidi ir conhecer todos os trabalhadores de uma determinada roça e (não me competindo) levar-lhes os ordenados em mão, em vez destes irem ao escritório onde eu trabalhava, como era o sistema, antes de lhes abrir conta bancária.
Fui explicar-lhes o meu papel, o que fazia ali, e tudo ficou leve-leve quando até então tinha sido apenas tensão deles para comigo, maioritariamente homens contra “aquela mulher, mestiça e inferior”, representante de um trauma passado.
Quando perceberam não estar na presença de uma mulher, nova-colona, estrangeira, a viver ali para os explorar, ou a chicotear com a mão de capataz do colono, encheram-me a traseira do carro com jaca, mamão, banana e fruta pão (tanta era que distribuí por toda a gente na cidade), espantados e agradecidos dizendo-me :
-” Candidata-te a eleições, vamos votar em ti”. Expliquei-lhes que estava só de passagem civil, pelo país e pela vida.
Por lá a vida corre leve-leve, escondendo o tsunami violento que borbulha no ventre dos vulcões originais. Tão leve quanto uma passa de boa erva, tão leve que o efeito ainda não bateu.
Surpreendia-me este facto como ainda hoje me surpreende perante a falta de evolução.
Como me surpreende o machismo e a violência endémica contra as mulheres que por lá bate forte forte.
Mais um contraste profundo com o calibre de mulheres fortes, inteligentes e donas de si que fui conhecer. Também vingativas e supersticiosas.
Esperem…os homens também são assim.
É ainda um país que pede socorro abrindo placas tectónicas na superfície. Só as vê quem estiver preparado para as olhar e ver.
Os deuses quando acabaram de pintar as ilhas, fruto de vulcões perturbados pela linha do Equador, comentaram felizes:
-Cacaôôô! o meu coração está tão pequenino com tanta beleza que em vez de bater, batem-lhe.
ps- vivi na casa amarela (levantada do chão, sobre estacas, para fazer passar ar fresco), comi a melhor fruta e os melhores peixes do mundo, sempre acompanhados de banana frita, e descobri uma nova paleta de cores que não existe em mais nenhum lugar.
Há um mundo a descobrir em STP (Somos Todos Parentes). Tenho histórias suficientes para um livro de karingana wa karingana, que um dia contarei, quando me reencontrar com o homem que me despertou o interesse por aquelas ilhas.
A quem lá vai aconselho a saída do mapa do turismo – sem destes falhar os ponto essenciais claro – e o mergulho no denso fundo do país, escondido por detrás dos rostos serenos das pessoas e do mar sempre calmo, que exprime o ritmo léve – léve do clima muito quente e muito húmido, concebido só para os muitos resistentes.
Anabela Ferreira
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