Aos oito anos era a única criança na minha rua que não ia à Igreja nem à catequese. Num Portugal onde a Igreja Católica tinha um pacto de coesão com o Estado.
O meu avô abordado pelo Prior da terra, convidando-o a levar-me à casa santa – este que em tempos de ditadura feroz usava de vistas largas – perguntou-me se eu queria ir. Disse-lhe que ia tentar.
O meu avô que me conhecia por fazer muitas perguntas, às quais ele tinha todo o tempo, paciência e sabedoria para me responder, era o meu “catequista”, juntos estudámos as várias religiões e tudo o resto, acedeu ao pedido do senhor prior.
Fui à catequese talvez duas manhãs de sábado…
Tinha muitas dúvidas e fazia muitas perguntas. As respostas não me satisfaziam. Levantar-me cedo para voltar a casa em terror pelos castigos…era uma dose forte e sem graça. A vida (das manhãs de sábado) não podia ser aquilo.
Pensava que as histórias que lá se contavam eram o equivalente de hoje às séries de vampiros. Com muitos aderentes e fãs, mas sem sentido. Incluindo torturas e objectos de subjugação que me aterrorizavam o espírito e o perseguiam à noite, como a cruz com Jesus preso com pregos. Ir à catequese era uma espécie de um viver dentro de um Indiana Jones medieval.
Não era para mim. Tinha uma alma por demais sensível. No entanto, muita invenção e muita criatividade podia ajudar-me na minha própria imaginação, só que a finalidade da Igreja era não me deixar ser dona do meu pensamento e da minha criatividade. Era uma espécie de colonização como a que acontecia nesse data, na minha terra natal, a distante Guiné-Bissau.
Porque eu não era uma criança dócil e silenciosa na aceitação dos dogmas, a catequista não fez questão em que eu voltasse. Nem o senhor prior, que era até boa pessoa. Muito menos eu.
O meu avô, do alto do seu 1,98 metros, de cabeça redonda e calva, olhos claros e puros como mel, na sua imensa sabedoria e calma, tão elevadas quanto ele, sorriu quando lhe disse que não gostava daquela ingerência na minha imaginação. Era o que se passava na mente de uma criança de oito anos.
É o que se passa na minha mente ainda hoje. As dúvidas, as dúvidas. As questões que me afligem…Porque tantos acreditam sem questionar? O que é isso da fé cega?
A figura mitológica de Cristo merece-me interesse e respeito. Gosto da História que o envolve como samurai – sem seguir nem defender os senhores feudais do Império Romano.
A sua história simbólica é maravilhosamente bonita. Um refugiado, mulato, filho bastardo não se sabe bem de quem, criado por um carpinteiro e uma mulher devota de anjos e estrelas, abandonado pelo verdadeiro pai, tem tudo para ser personagem de um filme dos Monty Python.
Ou ser levada a sério pelos ensinamentos que contam ter deixado em forma de histórias, contadas pelos discípulos.
Porque ainda precisamos aprender sobre amor, paz, união e simplicidade, sobre distribuição da riqueza, ele que como verdadeiro samurai enxotou os vendilhões do templo.
Se é que existiu, este benfeitor de almas, não conseguiu que a casa fundada em seu nome, dê o exemplo da sua pregação, escondendo debaixo das suas batinas e paramentos, a pedofilia, a mentira, o abuso e a riqueza.
O tempo da História marca-se no calendário, com a sua chegada em AC e DC. Tal como podemos agora determinar o tempo deste século como AC (antes do corona) e DC se viermos a fazer aquilo que podíamos e deveríamos fazer desta Passagem.
A mudança de paradigma.
Tempo de quaresma são quarenta dias, tal como quarentena. Na minha história, chamar-lhe-ei o marcar do tempo de formação de samurais – seres evoluídos, unidos sob uma mesma vontade espiritual de passagem de um rito para outro.
Podemos ser quase todos hoje, neste momento de recolhimento físico mas não social, samurais preparados para obedecer a um código de ética comum, de Passagem das trevas para a luz.
O equinócio da Primavera é anunciado pela Paskha (do grego) numa celebração pagã, com um ovo como símbolo de fertilidade aos pés da Deusa Ishtar. A Pache (do latim), a Peschad (do hebraico) na mesma altura do equinócio, celebra a libertação do povo de Israel, que homenageia Esther (Easter).
Foi um salto pequeno que a Igreja fez, sem precisar de explicações plausíveis para celebrar a traição, tortura, morte e ressurreição de Jesus em três dias.
Como na Igreja eu não podia ser pagã ou gostar da história de Esther, nem acreditar que nada mais são que histórias, incluindo a de Jesus, deixei de ir à catequese. Proscrita e herege me tornei.
Hoje conto essas histórias com prazer e como um samurai preparo-me para a Passagem esperando que depois do Inverno chegue a Primavera.
Que é tudo o que desejo e onde escondo abertamente a minha fé. Dentro de um fértil ovo.
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Anabela Ferreira
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