Aparentemente, uma e outra coisa são bem distintas. Mas, se as examinarmos atentamente, verificamos que, na sua essência, elas têm afinal em comum praticamente tudo. Da reaccionarice e desprezo pelos direitos dos cidadãos à irresponsabilidade e impunidade.
As decisões do juiz Neto de Moura não são uma surpresa
Na verdade, os pelo menos 4 acordãos relatados pelo juiz Neto de Moura, agora conhecidos e proferidos em processos de violência doméstica, suscitaram e suscitam, e muito justamente, a maior reprovação e indignação. Porém, sobretudo para quem conheça mais de perto o que é hoje a Justiça em Portugal, eles não constituem propriamente uma qualquer surpresa.
O juiz em causa teve foi o condão de revelar explicitamente as suas posições ideológicas e os seus preconceitos profundamente reaccionários e completamente contrários aos princípios constitucionais que supostamente está obrigado a respeitar e cumprir. Mas a verdade é que tal tipo de posições e preconceitos está presente e marca o essencial da nossa jurisprudência, não apenas no campo do Direito Penal mas também no de Família e Menores e, muito em especial e não certamente por acaso, no do Direito do Trabalho.
Para não ir mais longe, bastará referir que na Justiça do Trabalho, da 1ª à última das instâncias, predominam na prática os entendimentos (completamente contrários à lei e à Constituição) de que, em nome da sacrossanta liberdade de iniciativa económica, os juízes não devem fiscalizar de modo efectivo as razões invocadas pelo patrão para justificar um despedimento colectivo; ou de que factos posteriores a este (como por exemplo a posterior contratação de outros trabalhadores, com vínculos precários e salários mais baixos) já não importariam para a análise da licitude ou ilicitude de tal despedimento!?
Recordo aqui que o próprio Tribunal Constitucional declarou, em Julho de 2012, a inconstitucionalidade do corte aos funcionários públicos do subsídio de Natal desse ano, mas depois, e no mesmo acórdão, logo proclamou que a norma que tinha acabado de declarar inconstitucional afinal era para vigorar à mesma, chancelando assim o referido corte. E, em 2014, considerou que o princípio constitucional da certeza e segurança jurídicas não era violado pelo corte dos complementos de reforma dos trabalhadores do Metro (que foram aliciados e pressionados pela empresa a irem mais cedo para a reforma precisamente com o argumento de que a penalização resultante dessa antecipação era coberta ou compensada por tais complementos, fixados desde há décadas pelo Acordo de Empresa), atingindo tais cortes a perda de 50% ou 60% do rendimento disponível de alguém que, ainda por cima, não tem qualquer possibilidade real de regressar ao serviço activo. Mas o mesmíssimo Tribunal Constitucional, assim que se tratou do possível corte das subvenções vitalícias dos políticos decorrentes do exercício de cargos efémeros por natureza, logo tratou de declarar a respectiva inconstitucionalidade, precisamente com o argumento de que tal corte… violentaria, de forma inaceitável, o mesmo princípio da certeza e segurança jurídicas!
Isto é, com os argumentos mais retrógrados e democrática e constitucionalmente inaceitáveis, num lado procurou justificar-se a violência física e moral sobre a mulher e no outro, a violência material, mas também moral, da privação do meio de subsistência a que trabalhou uma vida inteira.
A Justiça, como todos os outros Poderes, tem de ser democraticamente fiscalizada e controlada
Mas o mais recente acórdão do juiz Neto de Moura revela ainda diversas outras coisas que, aliás, alguns (poucos) foram referindo mas a que quase ninguém deu, ou quis dar, atenção: a invocada natureza colectiva das decisões dos recursos (que primeiro passou de 3 ou até 4 juizes para apenas 2 e, no caso das cada vez mais frequentes “decisões sumárias”, somente 1) é afinal uma farsa pois, em muitos casos, os adjuntos votam “de cruz”. A discricionariedade campeia desde logo porque muitas decisões não admitem sequer recurso. Na 2ª instância – sendo ela cada vez menos realmente fiscalizadora das sentenças da 1ª e, por seu turno, cada vez mais definitiva, pretende cada vez mais impor-se o entendimento de que, mesmo as mais bárbaras, reacionárias, anti-democráticas e inconstitucionais decisões podem afinal tornar-se definitivas e inatacáveis.
A tudo isto se soma algo que, de um modo geral, os nossos juízes sempre desejaram e de que beneficiaram e que é o anonimato das suas decisões, ficando a identificação da respectiva autoria escondida sob a fórmula abstracta de “a decisão do tribunal x”. E isto com o aspecto singular e perverso de os juízes que, por exemplo, em processos de ofensas à honra e consideração de alguém colocado num cargo público, se foram habituando a decidir que, exactamente por força de tal cargo, o visado teria que “ter a pele mais dura” e admitir ser alvo dos ataques mais injustos, mais violentos e até mais ignominiosos, serem afinal os mesmos juízes que, quando o anonimato das suas decisões é rompido, logo se apressam a clamar que estariam a ser alvo duma “campanha de assassinato cívico”…
Em suma, o que é correcto e justificado para os outros, designadamente para os titulares de outros órgãos de soberania, já não é para si próprios, ainda por cima quando integram o único órgão de soberania sem legitimidade democrática electiva!
Deixemo-nos, por isso, de subterfúgios: a Justiça, como qualquer outro Poder, tem (também ela) de ser – e actualmente não o é! – democraticamente controlada pelos cidadãos.
Antes de mais, através do respeito escrupuloso por princípios essenciais e estruturantes da sua própria legitimidade, os quais, porém, são todos os dias violados no nosso quotidiano judiciário, tais como o da real publicidade das audiências, o da recorribilidade de todas as decisões que afectem direitos fundamentais, o do efectivo duplo grau de jurisdição (quer em matéria de Direito, quer em matéria de facto), o da devida (e não meramente formal) fundamentação dos despachos e sentenças e o do “juiz natural” (proibindo-se juízes “especiais” ou “por inerência”, como designadamente sucedeu, anos a fio, com o juiz Carlos Alexandre).
Mas também por um efectivo conhecimento e controlo por parte da comunidade dos cidadãos sobre o modo como são recrutados e como são formados, sobretudo em termos cívicos, os juízes e sobre como é avaliada a forma como exercem a sua função, avaliação essa que não pode ser feita por um órgão como o Conselho Superior da Magistratura, controlado pelos juízes “do aparelho” e quase unicamente preocupado com o número de processos despachados e com a perseguição, avaliativa ou disciplinar, aos juízes que ousem pôr em questão a sua autoridade e os seus critérios.
E o que se passa com as decisões políticas de lesa-pátria e de lesa-cidadãos?
Então e o que temos, por outro lado, quanto aos governos de Passos e de Costa, e também aos de Sócrates e de Cavaco e aos que os antecederam?
Como as terríveis tragédias de Pedrógão Grande e do 15 de Outubro – que não podem ser esquecidas nem os respectivos responsáveis delas saírem impunes, também penalmente! – claramente evidenciaram, temos aí, e pelo menos, a criminosa negligência e irresponsabilidade, causadoras da morte de mais de uma centena de concidadãos nossos e da mais absoluta miséria de centenas de outros, bem como a prática persistente de que as funções e os cargos públicos são “tachos” para distribuir pelos “amigos de cartão partidário” e a criação e imposição dum clima de desresponsabilização sistemática e de consequente impunidade de quem assim actua.
Tudo isto com o Ministério Público – cuja falta de controlo do poder de arquivar é tão ou mais grave que do poder de acusar – a não querer fazer sentar no banco dos réus os responsáveis, e todos eles, por verdadeiros crimes causadores inclusive da morte de vítimas inocentes.
Assim, o mesmo Ministério Público que “nunca viu”, aquando do governo de Passos Coelho, a Polícia a espancar e a deter ilegalmente dezenas e dezenas de cidadãos (como sucedeu na noite de 14 de Novembro de 2012, a ilegalmente apreender e vasculhar telemóveis, a filmar manifestações e a obter sem mandado judicial imagens da RTP), como também “não viu” nada nas negociatas das Parcerias Público-Privadas, dos swaps ou da concessão de benefícios fiscais ou ainda nos apagões das transferências de milhares de milhões de euros para os off-shores, é também o mesmo Ministério Público que “não viu” nada na criminosa destruição dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, por exemplo.
Nem, é claro, nas persistentes medidas tomadas e não tomadas pelos sucessivos governos do PS, do PSD e do CDS, e das respectivas forças políticas apoiantes, em matéria de política florestal e de combate aos fogos.
Desde a criminosa destruição da nossa Agricultura (porque no quadro da União Europeia essa actividade era para a França) ao abandono do interior (primeiro expulsando, designadamente para a emigração, as pessoas e depois encerrando tudo, de Escolas a Tribunais, de Centros de Saúde e Maternidades a Repartições Públicas e estações dos Correios), passando pela extinção de guarda-rios e guardas florestais, pela desactivação das torres de vigia e, sobretudo pelas vergonhosas negociatas de muitos milhões dos meios aéreos (aviões Kamov, por exemplo) e comunicações (SIRESP), e ainda pela criminosa possibilidade legalmente concedida, decretada em 2013, da substituição de espécies autóctones (como o sobreiro e o castanheiro) queimadas pela livre plantação de eucalipto e pinheiro. E bem assim a lógica dos tachos e das aldrabices no preenchimento de lugares na Protecção Civil, tudo isto culminando na ostensiva e arrogante não adopção de quaisquer medidas após Pedrógão Grande e a apresentação dos dois relatórios técnicos sobre a tragédia, as suas causas e as medidas urgentes a adoptar.
Assim, aquilo a que temos vindo a assistir é a um dantesco e incontrolado incêndio de autênticos crimes não apenas contra o País, mas também directamente contra as pessoas, as suas vidas e os seus bens, sempre disfarçados e “explicados” sob a capa de pretensos argumentos técnicos e sempre realmente impunes, quer política, quer criminalmente.
Afinal, qual a diferença essencial entre o Acórdão do juiz Neto de Moura e, por exemplo, a decisão de António Costa, enquanto ministro da Administração Interna do 1º governo Sócrates, de manter o negócio, considerado ilícito pela própria Procuradoria Geral da República, do SIRESP, ainda por cima, e a troco dum ligeiro “desconto” do preço, passando a dispensar o período experimental inicialmente previsto?
Ou a dolosa e acintosa conduta do mesmo António Costa, agora já como actual Primeiro-Ministro, ao ignorar olimpicamente as preocupações e recomendações dos técnicos das várias áreas (da florestal à meteorológica, passando pelos próprios bombeiros), ao determinar a desmobilização dos principais meios e dispositivos de combate aos fogos florestais a partir de 30 de Setembro último e ao procurar eximir-se às responsabilidades com reaccionários e mesmo provocatórios “argumentos” como o de que “ainda iriam ocorrer muitos outros incêndios”?!
Tão (aparentemente) diferentes e afinal tão iguais!…
António Garcia Pereira
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