TAP – A caça ao polvo

A decisão de demissão da Presidente da Comissão Executiva da TAP (e, como que por arrasto, a do Presidente do Conselho de Administração) foi finalmente tomada pelo Governo, mas, lamentavelmente, apenas e tão só quando ela se tornou absolutamente inevitável e incontornável.

António Costa continua fiel ao seu método oportunista de sustentar e apoiar até à última quem lhe é próximo, para depois, e apenas para evitar ser arrastado para o fundo, logo o largar da mão e o abandonar à sua sorte como se nada tivesse a ver com tudo o que antes se passara. E, por isso, pôde assistir-se à cena, tão surreal quanto eticamente repugnante, de o chefe do Executivo mandar os dois actuais ministros da tutela (Medina e Galamba) anunciarem publicamente, por meio de uma insólita conferência de imprensa, a demissão daqueles dois administradores. Como se o governo não tivesse nada que ver com a arrogante, incompetente e até danosa gestão da TAP e com a manutenção em funções de quem delas há muito deveria ter sido corrido.

A inevitável demissão da Madame Christine e do Dr. Beja e a sua substituição pelo Comandante Luís Rodrigues (cujo mandato à frente da SATA está, aliás, bem longe de ter sido o paraíso que alguns pretendem fazer crer…), sendo embora um imperativo de sanidade pública, não resolvem os problemas da TAP, ao invés do que a manobra ilusionista do Governo pretende fazer crer.

Antes de mais, porque Madame Christine há muito que deveria ter sido demitida e não era preciso o relatório do IGF para tal, pois os casos de má gestão vinham-se acumulando em velocidade uniformemente acelerada: 

  • a ostensiva violação da lei e dos próprios Acordos de Empresa, criando a Administração um “prémio” de 10% do salário-base para os tripulantes que aceitassem voar por sistema em folgas e em férias, com violação dos seus tempos de repouso;
  • a imposição de um ambiente de silêncio e opacidade, por um lado, e de verdadeiro terror por outro, com a contínua instauração, e por qualquer pretexto, de processos disciplinares; a instauração do assédio moral como “ferramenta de gestão” para perseguir e amedrontar trabalhadores, como no caso das trabalhadoras mães; 
  • a arrogante recusa de verdadeira negociação com os sindicatos;
  • o pagamento de astronómicas indemnizações a quadros da empresa (como Abílio Martins, Pedro Ramos e João Falcato), constando que parte delas oficialmente, e a maior parcela de forma encoberta; 
  • a destruição do gabinete Jurídico-Laboral da Companhia e a sua substituição pelo mesmo escritório de advogados que assessorou a CEO no acordo ilegal com Alexandra Reis (e que está instalado no seio da estrutura orgânica da TAP, utilizando inclusive e-mails oficiais da empresa); 
  • o emprateleirar de quadros portugueses com 20 e 30 anos de antiguidade e com experiência e competências indiscutíveis, e a contratação, com salários e benefícios milionários, de directores da sua confiança pessoal, como a mulher do personal trainer do marido; 
  • o decretamento e a manutenção do despedimento cego e desenfreado de centenas de trabalhadores (por exemplo, pilotos, tripulantes de cabine e técnicos de manutenção) absolutamente indispensáveis para a retoma da actividade da TAP, em contraste absoluto com o que se passa com as outras companhias aéreas; 
  • a consequente anulação de inúmeros voos por falta de capacidade operacional, com a obrigação de pagar milhões de euros de compensações aos passageiros ou a apressada e ruinosa celebração de contratos para cedência de aeronaves e tripulações (os chamados “ACMI”) com o consequente rombo para as finanças da empresa; 
  • a entrega a companhias estrangeiras e a preços exorbitantes das operações de manutenção de aeronaves e de substituição de motores devido à mesma falta de capacidade de resposta; 
  • a atribuição da transformação de dois aviões de passageiros em cargueiros a uma empresa não certificada, o que valeu a sua imobilização durante largos meses e outro prejuízo de milhões para a TAP; 
  • a medida (apenas gorada devido à sua denúncia pública) de atribuição de viaturas de luxo a 79 dirigentes de topo do grupo, enquanto os técnicos da Manutenção se têm de deslocar em serviço em viaturas “a cair de podres”; 
  • a tentativa, e nunca explicada, do negócio da transferência de instalações do Aeroporto de Lisboa para o edifício do Parque das Nações; 
  • etc., etc., etc.

Mas, sobretudo após a Madame Christine ter dolosamente subscrito, em 4/2/2022, a declaração em que comunicava falsamente à entidade reguladora (CMVM), ao mercado e à comunidade em geral, bem como aos trabalhadores da companhia, que Alexandra Reis cessara as suas funções por renúncia da própria ao cargo para abraçar novos desafios profissionais, ao mesmo tempo que omitia e ocultava a milionária compensação de meio milhão de euros que lhe tinha sido paga, o governo de António Costa não precisava de mais nada para ter demitido logo, e com mais do que justa causa, a CEO da TAP. É que tal conduta consubstancia uma violação gravíssima da lei e dos deveres do gestor público e quebra, de forma tão evidente quanto imediata e irremediável, a relação de confiança que tem de existir entre o gestor e o acionista Estado, bem como com os cidadãos em geral, exactamente por se tratar de bens e dinheiros públicos.

A verdade, porém, é que todos estes casos – apesar da lei do terror e do silêncio que Madame Christine e Companhia trataram de impor na TAP – foram sendo do conhecimento público (para além de que o deveriam ter sido por uma tutela minimamente séria, empenhada e competente) e António Costa e o seu governo optaram por (continuar a) ignorar as denúncias dos trabalhadores e das suas organizações e ir dando plena cobertura e força política à Administração da TAP.

Há muito tempo que se sabia o que a CEO fazia, enchendo os bolsos, os próprios e os dos amigos, e praticando uma gestão tão arrogante quanto prejudicial aos interesses da Companhia, e que é até susceptível de responsabilização financeira, senão mesmo criminal. Mas o Executivo de Costa não só caucionava por inteiro essa forma de actuar como a permitia e até encorajava. Desde logo não nomeando os dois membros em falta para o Conselho de Administração e possibilitando assim que neste, em versão reduzida, a Comissão Executiva chefiada por Madame Christine estivesse sempre em maioria.

Também porque, cabendo ao accionista (o Estado representado pelo Governo), e em sede da assembleia geral da Empresa, a decisão não apenas de nomear, mas também de afastar os membros da administração, o Governo permitiu e ratificou que fosse a CEO a fazê-lo. Mas sobretudo porque, sabendo-se agora de forma inequívoca que o Governo (nas pessoas quer do Secretário de Estado Hugo Mendes, quer sobretudo do ministro Pedro Nuno Santos) tudo conhecia do acordo ilegal com Alexandra Reis, chancelado até pelo ministro (“por whatsapp”!?), e não tendo os responsáveis governamentais seguintes (em particular os figurantes da Conferência de Imprensa da passada segunda-feira, Medina e Galamba) tratado de procurar saber o que se tinha passado, ou, sabendo-o, ao não terem agido de forma correcta e imediata, a cena teatral do anúncio público da demissão da CEO e do Chairman da TAP tem, afinal, um bafiento cheiro a hipocrisia política. E apenas reforça a percepção de que se as medidas relativas à TAP se ficarem por aí, tudo ficará na mesma, ainda que com uma aparência mais “simpática”. E é isto que precisamente se deve qualificar de mais retinto oportunismo…

Três pontos finais se impõem ainda esclarecer, visto que os contra-ataques da desinformação e da manipulação (dos sectores do governo aos da oposição parlamentar, passando pelas “agências de comunicação” e por certas áreas do chamado “jornalismo económico”) já aí estão em grande ebulição:

 O PS e seus apoiantes não têm, de facto, legitimidade ou autoridade moral para criticar os “feitos” desta ou de outras gestões da TAP porquanto foram eles que, no tempo de Sócrates, viabilizaram e caucionaram o ruinoso negócio da compra da VEM – com a intermediação de Diogo Lacerda Machado, administrador da intermediária Geocapital – e que, já no tempo de António Costa, construíram a “brilhante” solução de o Estado ficar formalmente com a maioria do capital e das responsabilidades financeiras, mas serem os privados (Neeleman e Pedrosa) a mandar na Companhia. 

Porém, PSD e CDS também não têm tal legitimidade ou autoridade, até porque foram eles que em 2015 consumaram a privatização a preços de saldo da Companhia e viabilizaram o golpe de Neeleman (de concorrer à privatização da TAP com dinheiro da própria TAP, proveniente da Airbus, e em contrapartida da mudança da encomenda de aviões) e claramente apostam agora numa nova privatização, novamente acelerada e novamente a preço de saldo.

 Tendo sido demitida – não “despedida”, porque não era trabalhadora da TAP, mas sim sua administradora – com mais do que justa causa, Madame Christine, nos termos absolutamente explícitos do Estatuto do Gestor Público[1], o qual lhe é absolutamente aplicável por força do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial[2], não tem direito a qualquer compensação pela cessação de funções.

E quanto aos “prémios” ditos de desempenho estabelecidos no respectivo contrato – que, deveriam ser públicos e terem sido aprovados pelo acionista em Assembleia Geral, e não foi nem uma coisa, nem outra! – impõe-se referir não apenas que o seu não pagamento se afigura estar previsto[3], mas igualmente que o pagamento desses prémios está normalmente condicionado à permanência ao serviço até ao termo do período a que tais prémios respeitam. Mas sobretudo importa sublinhar que, ao contrário do que alguns “especialistas” andam agora a sustentar, o reporte ou condicionamento do respectivo pagamento ao atingimento de certos números não confere nunca direito ao respectivo recebimento em circunstâncias como as da “contabilidade criativa”, da venda injustificada de activos ou da prática de actos de gestão danosa.

 É absolutamente incontornável a ilegalidade (nulidade) do acordo firmado entre Christine Ourmières-Widener e Alexandra Reis, já que é, como já referido, indiscutível a aplicação a ambas do estatuto de gestor público e este só prevê, não qualquer tipo de “rescisão por mútuo acordo”, mas apenas a (publicamente anunciada) renúncia, e esta não confere direito a qualquer indemnização ou compensação. 

E, já agora, convirá recordar também que, tendo sido nomeada escassos meses depois para Presidente da NAV, onde terá ido auferir vencimento similar ao da TAP, mesmo em caso de demissão sem justa causa e por pura conveniência, não teria direito a receber nada a partir de tal nomeação. 

E também que constitui um absurdo jurídico pretender que a nulidade do acordo de saída teria de implicar o regresso de Alexandra Reis à TAP e até – pasme-se! – o recebimento de todas as remunerações desde a sua saída até agora, já que, por um lado, esse vínculo teria sempre cessado pelo início de funções na Presidência da NAV e, por outro, não tendo exercido qualquer actividade, sempre o instituto do chamado enriquecimento sem justa causa impediria esse mesmo pretendido recebimento.

Finalmente, importa sublinhar ainda que as desculpas e justificações que a ex-CEO vem procurando ensaiar – já o tendo, aliás, feito na audiência parlamentar – no sentido de que, como não é jurista, não tem de conhecer a lei e assim terá confiado cegamente nos advogados externos que foi contratar, e de que a negociata com Alexandra Reis teria sido conhecida e até autorizada pelo Governo, não têm qualquer procedência para efeitos da sua pretendida desresponsabilização. Desde logo porque a (pretensa) “ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”[4], para além de não ser minimamente crível que Sua Excelência não conhecesse o Estatuto pelo qual se teria que reger em toda a sua actividade. E, por outro lado, porque aquilo que a circunstância de haver várias pessoas responsáveis por uma dada situação ilícita determina[5] é a responsabilidade solidária de todas elas, e não a eximição de uma ou outra a tal responsabilidade.

Assim, aqueles que já andam por aí a pregar que os contribuintes portugueses se terão de preparar para, do seu bolso, pagarem àquelas duas senhoras, ou pelo menos à Madame Christine, avultadas verbas em dinheiro não têm razão e porventura visarão apenas criar espaço de manobra para futuras negociações e eventuais (novos) pagamentos nas costas do Povo portugês…

Em suma:

1 – Já antes do relatório do IGF havia mais do que justa causa para a demissão da ex- CEO da TAP e também do seu Chairman.

2 – Tal demissão, atrasada mas inevitável, só por si nem resolve os graves problemas da Companhia e apaga as consequências da gestão danosa da dita ex-CEO, nem absolve António Costa e o seu governo das graves responsabilidades na escolha e no apoio que, até à última, deu àquela.

3 – Impõe-se, não apenas revogar ou anular todas as medidas gravosas adoptadas ou tentadas pela administração Christine – desde os despedimentos individuais e o despedimento colectivo às contratações milionárias dos amigos, sejam eles gestores ou juristas, passando pelos negócios obscuros como os da transferência de instalações para o Parque das Nações –, como também proceder a uma exaustiva e rigorosa auditoria, a cargo de entidade independente e idónea (que não as auditoras contratadas pela TAP), às suas sucessivas gestões.

4 – O “acordo” celebrado com Alexandra Reis é nulo e de nenhum efeito e de tal nulidade resulta a obrigação de devolver tudo o que, a título de compensação pela cessação do mandato de administradora, haja recebido (cerca de 450.000€), nem tendo direito a qualquer “reintegração” ou ao pagamento de quaisquer remunerações ou “compensações” que não sejam apenas as referentes à cessação do seu contrato de trabalho, dado que era Directora antes de ser nomeada Administradora.

5 – A destituição com justa causa de Christine Ourmières-Widener não lhe confere direito a receber qualquer subvenção ou compensação e mesmo o prémio anual do presente ano não será devido por não ter completado o período respectivo (muito menos os restantes até ao termo normal do mandato), para além de poder até ser demandada judicialmente pelos danos que a sua conduta causou à Companhia e ao erário e interesse públicos.

Mas, uma vez mais, veremos se o polvo não voltará a escapar… Pela minha parte, tenho procurado contribuir para que isso não aconteça:

26/01/2023 – TAP: “O polvo” 

12/01/2023 – TAP – Quem tem medo de que se descubra a verdade? 

29/12/2022 – Os negócios da TAP – a náusea… 

20/10/2022 – Os salteadores da TAP perdida 

12/07/2022 – A Administração da TAP mente e a ANAC cala…

07/07/2022 – TAP – As desculpas dos indesculpáveis

30/06/2022 – TAP: crónica de uma morte (cada vez mais) anunciada?

19/05/2022 – Um nevoeiro que se adensa e nos asfixia

25/06/2021 – Alerta, Pilotos e Tripulantes de Cabine: novos horários de trabalho a caminho!

24/06/2021 – Contra a intimidação e manipulação na TAP (com sugestões para os trabalhadores)

15/06/2021 – A miséria moral dos Recursos Humanos da TAP (para quem ainda tinha dúvidas)

20/05/2021 – TAP: Um manto de silêncio sobre ameaças, mentiras e incompetências

29/04/2021 – TAP – Trabalhador castrado, não!

22/04/2021 – TAP – a insustentável vileza em marcha!

06/03/2021 – TAP – Parte II: abusos e abusadores!

04/03/2021 – TAP – A culpa, claro, é dos trabalhadores!

16/02/2021 – Desmentido

04/02/2021 – Reestruturação da TAP ou escravização dos trabalhadores?

9/12/2020 – TAP: Ilegalidades, silêncios e sombras

16/07/2020 – Casos BES/GES e TAP, tão diferentes e tão iguais!

14/05/2020 – Covid-19 e TAP – tão ladrão é o que vai à vinha…

05/03/2020 – TAP: Saqueadores à solta

11/07/2019 – O verdadeiro estado da Nação

13/06/2019 – Este é o Estado que temos. Mas é este o Estado que queremos?

28/03/2019 – O elefante no meio da sala que ninguém quer ver

28/06/2018 – TAP: o negócio da vergonha ou a vergonha do negócio

05/10/2017 – Os silêncios cúmplices do Governo e dos Partidos que o apoiam

06/06/2017 – A irresponsabilidade e impunidade em que vivemos

29706/017 – A TAP: um bando de ilegalidades voadoras

02/03/2017 – Almaraz, TAP, Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Justiça Penal e Offshores

26/01/2017 – Silêncios cúmplices a mais…

01/09/2016 – “Eu ainda sei o que vocês fizeram no Verão (e Outono) passado”

……

António Garcia Pereira


[1] Art.º 25.º, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 71/2007, de 27/03.

[2] Art.º 21.º do Dec.-Lei n.º 123/2013, de 03/10.

[3] Também no mesmo art.º 25.º, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 71/2007, de 27/03, que refere não haver pagamento de “qualquer, subvenção ou compensação”.

[4] Art.º 6.º do Código Civil.

[5] Nos termos do art.º 497.º, n.º 1 do Código Civil.

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