TAP: crónica de uma morte (cada vez mais) anunciada?

Sempre defendi que um país com cerca de cinco milhões de cidadãos na diáspora, duas regiões autónomas compostas por ilhas atlânticas, relações privilegiadas com as suas ex-colónias, e em que o turismo é uma importante actividade económica devido às suas condições naturais de excelência, Portugal deveria ter uma companhia aérea “de bandeira”, de titularidade e controlo públicos, que pudesse desempenhar o importante papel estratégico, económico, político e social que o transporte aéreo pode e deve desempenhar. A lastimável verdade, porém, é que a TAP está cada vez mais longe de ser a companhia de aviação de que o país necessita e, apesar de sorver inúmeros recursos públicos, tal situação não cessa mesmo de se agravar.

É, pois, tempo de fazer uma análise e um debate sérios e aprofundados, onde os jogos de bastidores, os acordos e negócios obscuros e sobretudo a gigantesca máquina de manipulação da opinião pública de que o governo e, com o apoio deste, a Administração da TAP dispõem, não se possam impor.

A TAP é hoje uma empresa onde quem a fez, ao longo de décadas de esforço e de empenho (ou seja, os seus trabalhadores) não se revê, onde reina a lógica da ameaça, do terror, da falsificação da realidade e dos golpes e habilidades pseudo-legais. Todos os quadros e responsáveis da empresa sentem o seu emprego em risco, constando até que há uma lista dos indesejáveis a despedir, já que presentemente só parece haver lugar para os “yes men”, quase todos franceses, que a CEO Christine Ourmières-Widener anda a colocar na TAP. Tudo o que possa ser discordante à mesma CEO ou a divulgação de algo que possa ser interpretado como desagradável para a gestão da TAP é ferozmente ameaçado e perseguido. Praticamente todas as instâncias de decisão na empresa estão paralisadas porque “tudo tem de ir lá acima”, ou seja, à referida CEO. E é esta, apenas esta, acolitada nas questões do Pessoal pela nova Directora de Recurso Humanos, Ana Dionísio, e nas questões jurídico-laborais pela sociedade de Advogados que a TAP, a custo milionário, contratou sobretudo para despedir trabalhadores, quem decide todas as questões.

Assim, do ponto de vista da estrutura interna, da sua componente humana, a TAP é hoje uma organização parada e anquilosada, em que se perderam o entusiasmo, a alegria e o comprometimento e em que impera um clima de medo e este conduz à inacção e até à mentira, valendo tudo para não indispor a Madame Christine…

É facto que, de um modo geral, quem ficou após os despedimentos, em particular nos sectores vitais da actividade da empresa, o faz com zelo, diligência e até em sobre-esforço, dada a enorme carga de trabalho que actualmente recai sobre cada um desses trabalhadores.

Na verdade, já se sabe que, para os gestores capitalistas e em particular para os forma(ta)dos nas teorias do neo-liberalismo radical, reestruturação é sempre e necessariamente sinónimo de despedimentos e pouco ou nada mais. Assim, contrata-se uma consultora (no caso, a BCG) que elabora um “estudo” mais ou menos clandestino, mas pronto a ser invocado como justificação técnica ou científica e que decreta que para reestruturar é preciso pôr na rua centenas ou mesmo milhares de trabalhadores. De seguida, elabora-se uma lista de futuros despedidos e, sob ameaça de um despedimento colectivo preparado por um dos tais escritórios de advogados especializados em despedir, passa-se a ameaçar e constranger os visados a aceitarem “rescisões por mútuo acordo”, com textos prévia, unilateral e abusivamente estabelecidos pela empresa. Os que não aceitam, são retaliatoriamente incluídos no dito despedimento colectivo e mandados sem dó nem piedade para o desemprego, ao estilo do “agora, se quiseres, devolve o valor de indemnização e vai-te lá queixar ao Tribunal do Trabalho.”

Sendo a pandemia um fenómeno necessariamente temporário e havendo que preparar a respectiva retoma, uma empresa cuja administração o quisesse e soubesse fazer é evidente que não poderia fazer cortes cegos apenas para atingir um objectivo numérico. E por isso os trabalhadores da TAP e algumas das suas organizações logo assinalaram o absurdo e, mais do que isso, o errado que eram os cortes que estavam a ser feitos, em particular nos sectores dos Pilotos, dos Tripulantes de Cabine e dos Técnicos de Manutenção. Mas a Administração, ou melhor, a CEO da TAP, com a cobertura e o apoio conferidos pelo governo, em especial pelo Ministro Pedro Nuno Santos, desvalorizou e silenciou aquelas chamadas de atenção e consumou os ditos despedimentos, sendo que os seus resultados começam a estar, e cada vez mais, à vista.

O serviço de IT (Informática e Novas Tecnologias), bem como o Call Center, estão quase todos exteriorizados (ou seja, com empresas prestadoras de serviços que “fornecem” trabalhadores à TAP), com custos superiores aos dos trabalhadores internos entretanto despedidos e com perdas sensíveis de qualidade e eficácia. A Manutenção – onde a TAP e seus acólitos forçaram criminosamente a saída de cerca de 100 trabalhadores – está autenticamente a rebentar pelas costuras, só se aguentando com um número gigantesco de horas extraordinárias e com níveis de cansaço cada vez maiores e crescentemente preocupantes do ponto de vista da própria segurança de voo. 

Por exemplo, no passado dia 01/06 soube-se que apenas no “walkaround” (ou seja, a inspecção visual feita na pista imediatamente antes da descolagem por um dos pilotos) foi verificada uma anomalia (rebites do rebordo das asas com tinta estalada), não verificada antes, mas que levou à (cautelosa e correcta) colocação no chão de 8 aviões A330 NEO, o que provocou o cancelamento de 3 voos (para Nova Iorque, Recife e Miami) e atraso de muitos outros. A Administração da TAP foi a correr obter uma “carta de conforto” da Airbus, desvalorizou por completo a questão e nunca explicou nem porque é que, se tal ocorrência é “normal”, todos os aviões foram depois postos em terra, nem porque é que aquela só foi detectada no “walkaround”.

Por outro lado, só no passado mês de Abril, 190 voos do grupo TAP (TAP, Portugália e White) foram cancelados, 105 dos quais considerados elegíveis para a necessidade de pagamento de compensações aos passageiros, o que mostra bem que pelo menos esses se deveram, não a factores externos (como factores meterológicos ou greves de controladores), mas à incapacidade da TAP em realizar esses serviços de voo, designadamente por falta de tripulantes (pilotos e tripulantes de cabine). E só desde o início do mês de Junho já foram cancelados mais 46 voos e atrasados outros 76!? Isto é que é aproveitar e realizar a retoma de actividade? 

E o que fez acerca desta derrocada iminente a Administração da TAP? Pretendeu silenciar a todo o custo tais informações, ameaçou que perseguiria implacavelmente quem as divulgasse para o exterior e, persistindo em manter um número de trabalhadores claramente inferior às necessidades, tratou de violar os Acordos Temporários de Emergência que negociou com os Sindicatos no início de 2021, desrespeitou o regime de folgas e forçou tripulantes e outros trabalhadores a trabalharem em dias de folga, em feriados e até em férias!

O estado de cansaço dos técnicos da Manutenção é de tal ordem que a 28/6, no Funchal, houve uma avaria numa janela e, na tentativa da sua reparação por uma pessoa da Manutenção, a manga de emergência foi inadvertidamente accionada e houve que retirar todos os passageiros do avião e esperar pelo colega seguinte da Manutenção, que só entrou às 8h30. E não há falta de pessoal e cansaço acumulado!?

Entretanto, o SITEMA (Sindicato dos Técnicos de Manutenção) anunciou publicamente que, por falta de pessoal na empresa e com custos acrescidos, a TAP vai enviar quatro dos seus aviões A320 para manutenção… na companhia eslovena Adria Airways entre a próxima semana e o final de Julho com novos e agravados cancelamentos e atrasos de voos precisamente na fase mais importante e crítica da época de Verão! E vários dos A330 irão também para fora, efectuar a mudança de motores noutra companhia…

Tudo isto significa que aquilo que desde sempre foi o grande património da TAP, ou seja, uma cultura de máxima segurança e de respeito por todos os parâmetros que a ela respeitam, por um lado, e um empenho, uma alegria e até um orgulho, por parte dos seus trabalhadores, está a ser completamente delapidado pela actual Administração e pelo governo que a tutela, os quais, com as suas “técnicas de gestão” do terror, do chicote, da falsidade e até de atropelo à lei e à contratação colectiva, estão a inviabilizar a retoma da empresa e, mais do que isso, a sobrevivência da própria TAP. 

A Administração da TAP e o governo bem sabem que, tendo procurado justificar o despedimento colectivo com o “argumento” do pretenso excedente de trabalhadores, o conhecimento público dos factos acima descritos é absolutamente contraditório com tal pseudo-fundamento. É exactamente por isso que procura impor a “lei da rolha” (como já o fez com as cláusulas que impôs nas rescisões por mútuo acordo), matar os mensageiros e ocultar a veracidade dos factos e dos números. A título de exemplo, quanto gasta actualmente com os serviços que, entretanto, exteriorizou, ou aumentou a respectiva exteriorização? Quanto já pagou à BCG e à sociedade de advogados que contratou para executar o despedimento colectivo, as fases que o precederam e a sua defesa em Tribunal? Quanto custam as duas advogadas da mesma sociedade que estão hoje instaladas na TAP? Quanto pagou ao ex-Administrador Abílio Martins e aos ex-Directores Elton d’Souza, Pedro Ramos e João Falcato pelas respectivas saídas? Quanto custarão agora as acima referidas operações de manutenção e de substituição de motores em empresas exteriores? A quanto ascendem já as indemnizações por cancelamentos e atrasos de voos, etc., etc., etc.?

Lastimavelmente, foi-se criando nos sucessivos gestores da TAP e nos governantes que os deveriam tutelar uma cultura de absoluta impunidade. Desde logo porque, para a TAP, operações manhosas ou ruinosas, ou ambas, foram podendo ser sucessivamente praticadas sem que os seus autores tivessem que assumir responsabilidades. Para não ir mais longe, recordem-se a compra da PGA ao BES por um valor enormemente mais elevado (140 milhões de euros) do que o da prévia aquisição pelo Banco, a compra pela TAP da falida empresa de manutenção VEM, no Brasil (responsável por um buraco financeiro de centenas de milhões de euros e com uma “comissãozinha” de venda de 4,2 milhões de dólares para a Geocapital dos Srs. Stanley Ho e Lacerda Machado, nas contas do Grupo), a extinção em 1993 da Air Atlantis (a quem a TAP foi buscar tudo o que lá colocara desde os aviões e licenças de voo às instalações e equipamentos, excepto os trabalhadores, que lançou no desemprego com um despedimento colectivo declarado ilícito na 1.ª instância e chancelado, de forma singular, pelo Supremo Tribunal de Justiça, o que valeu anos mais tarde a uma humilhante condenação do Estado português no Tribunal de Justiça da União Europeia), o estranho financiamento obtido  pelo Sr. Neelman para concorrer e ganhar a privatização da TAP sem gastar um euro do seu bolso (já que terá sido financiado pela Airbus a troco da desenfreada e totalmente desproporcionada aquisição de aeronaves daquela empresa) e cuja aquisição acarretou um encargo financeiro para a TAP que chegou a representar mais de 2 mil milhões de euros, a sistemática utilização dos contratos a prazo para suprir necessidades que se revelavam permanentes para a empresa (sendo o caso mais evidente o dos tripulantes de cabine), a utilização do regime de lay off para a empresa pagar aos trabalhadores apenas 30% de 2/3 dos respectivos salários brutos e pô-los a trabalhar a 120% ou 150%, a permissão e utilização de tácticas e técnicas terroristas de assédio moral para levar os trabalhadores a assinarem as famigeradas rescisões por mútuo acordo, e ainda a estranha (ou talvez não…) e absoluta inacção por parte das entidades oficiais, com a ACT à cabeça, face a esta última situação, bem como as duas anteriores.

Toda esta arrogante postura, de quem se sente acima da lei (e que leva a Administração e a DRH da TAP a acintosa e ostensivamente não colocar no serviço activo trabalhadores, designadamente pilotos, cujo despedimento foi entretanto judicialmente suspenso) sofreu recentemente um sobressalto quando – após curiosamente todas, sem excepção, as acções de suspensão do despedimento colectivo terem sido julgadas improcedentes na 1.ª instância (o juízo do Trabalho de Lisboa) – seis recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa foram julgados procedentes e assim foi ordenada a suspensão do despedimento dos trabalhadores recorrentes. Também no Supremo Tribunal de Justiça – onde a TAP se ufanava de quase sempre obter decisões favoráveis (desde, pelo menos, o famigerado e já citado caso da Air Atlantis) – se passou, correctamente, a adoptar uma postura de muito maior exigência na apreciação da licitude dos despedimentos colectivos, bem como dos respectivos fundamentos e procedimentos (de que a declaração de ilicitude do despedimento no Casino da Póvoa constitui um elucidativo e importante marco).

Ora, é preciso compreender que é esta mesma postura de arrogância e de desprezo pelos direitos e legítimos interesses dos outros que explica condutas completamente inaceitáveis por parte da TAP relativamente aos seus clientes e passageiros, algumas delas de longa data, como a prática de preços de viagens de verdadeiro assalto à mão armada, em particular para e da Região Autónoma da Madeira, a tentativa de irresponsabilização pela perda de voos de ligação decorrentes de atrasos de voos TAP, a arrastadíssima resistência a informar os passageiros dos seus direitos indemnizatórios em caso de cancelamentos ou adiamentos prolongados, a anulação de voos sob pretextos falsos (como o da famigerada expressão “por motivos de ordem técnica”) e a propositada dificultação da apresentação de reclamações por irregularidades verificadas.

Porém, e pelos vistos – e daquilo que parece resultar do súbito e estranho aquietamento dos Pilotos, cujo sindicato ou chegou, mal, a algum acordo secreto com a CEO e/ou com o ministro ou então entendeu, mal também, que o melhor é calar-se – a Administração e a Tutela vão tentar continuar a aterrorizar a generalidade dos trabalhadores da TAP, procurando impor-lhes a lógica perversa de que não ceder à chantagem e ao terror e falar sobre todos estes problemas e debater, aberta, franca e responsavelmente quais as soluções a adoptar é que poderia fechar a empresa, quando é exactamente o oposto! Porque, como se vê, quem está, e de forma grave, a sabotar a recuperação e a enterrar a empresa é a Administração, com a chancela do governo. E porque, por outro lado, nunca por nunca compensou pôr o joelho em terra perante a injustiça, a prepotência e a incompetência.

Se todos queremos que o País não fique privado de um importante instrumento estratégico como é a TAP, se não estamos dispostos a que, um dia destes, nos vejamos confrontados – esperemos bem que não! – com algum trágico facto consumado, se não aceitarmos que os trabalhadores sejam tratados como escravos (mas logo dura e violentamente responsabilizados quando algo corre mal), se não queremos aceitar mais este indigno espectáculo de manipulação, demagogia, incompetência e arbítrio que tem sido toda esta gestão, então temos, todos, de nos erguer, denunciar tudo aquilo que está hoje em curso e impor um novo rumo aos acontecimentos, baseado no respeito pelos direitos de quem trabalha, numa correcta visão estratégica para a empresa e para o País e numa gestão ousada, séria e competente!

António Garcia Pereira

Um comentário a “TAP: crónica de uma morte (cada vez mais) anunciada?”

  1. Antonio diz:

    Não diria melhor, mas lamento que não tenha sido mencionada a situação da Groundforce e que à semelhança da TAP vive, ainda hoje um clima de horror e assédio laborar também ele já implementado no passado pelo Dr Pedro Ramos, quando o mesmo era o DRH na GF

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