Face à infelizmente já esperada e intensa campanha de contra-informação e de manipulação em curso, visando convencer-nos de que nos devemos preparar para pagar milhões de euros a Christine Ourmières-Widener, e eventualmente a Alexandra Reis, importa esclarecer o seguinte:
1 – Quanto à CEO, não se trata de um qualquer “despedimento” (visto ela não ser trabalhadora por conta de outrem), mas sim de uma demissão (que, aliás, tem de ser formalmente deliberada em Assembleia Geral e de respeitar o chamado princípio do contraditório ou da audiência prévia da visada) e, mais, de uma demissão fundamentada. Tudo isto ao abrigo do Estatuto de Gestor Público (Decreto-lei nº 71/2007, de 27/3), que é indiscutivelmente o aplicável ao caso (nos termos dos art.ºs 1º e 2º daquele diploma e do art.º 2º do Decreto-lei nº 133/2013, o qual aprova o Regime Jurídico do Sector Público Empresarial).
2 – Para tal demissão existe mais do que justa causa, baseada designadamente nos sucessivos e acumulados actos de gestão danosa praticados por Madame Christine (das contratações milionárias à falhada transformação dos aviões de passageiros em cargueiros, passando pela frota de luxo e pelo negócio falhado da mudança das instalações para o Parque das Nações). Contudo, e simplesmente a propósito já do caso de Alexandra Reis, bastaria a mentira que a CEO dolosamente procurou impingir ao regulador (CMVM), ao mercado, ao accionista, aos trabalhadores e ao público em geral sobre a forma e as razões do termo do mandato da referida administradora (apresentando-a como uma simples renúncia e omitindo o astronómico valor pago à “renunciante”, bem como a vinculação da TAP a pagar aos advogados daquela), para lesar, e de forma irremediável, a relação de confiança inerente ao cumprimento do mandato.
3 – Ora, havendo uma demissão com justa causa, não há lugar, nos termos bem explícitos do art.º 25º, n.º 3 do referido Estatuto do Gestor Público, “a qualquer subvenção ou compensação pela cessação de funções” (sic). Mas mesmo que se tratasse de uma “demissão por mera conveniência”, isto é, sem justa causa, a indemnização devida nesse caso nunca poderia ultrapassar o valor “correspondente ao vencimento base que auferiria até ao final do respectivo mandato, com o limite de 12 meses” (art.º 26º, nº 3 do Estatuto), ou seja, cerca de 500 mil euros. Só por ignorância ou má-fé se pode vir falar no montante de 1,5 milhão de euros, correspondente a 3 anos, de (pretensa) indemnização.
4 – Quanto aos prémios ditos de gestão ou de desempenho, embora o contrato de Madame Christine devesse ser público, ele foi e continua a ser ciosamente escondido e por isso não se conhecem os seus exactos termos e condições. Mas se eles forem escandalosamente favoráveis à senhora, poderão implicar também responsabilidade de quem, do lado do Estado, os subscreveu e/ou chancelou. Aquilo que se pode desde já dizer é que, normal e compreensivelmente, tais “prémios” são pagos anualmente e o direito ao seu recebimento apenas se vence se e quando o beneficiário estiver em exercício de funções no termo de cada período anual.
Por outro lado, não bastará o mero atingimento de objectivos numéricos, porquanto se imporá sempre saber também se tal atingimento foi correctamente alcançado ou antes resultou de “batotas”, de contabilidade “criativa” ou até de factos em absoluto estranhos à actuação do gestor. Como é obvio, não haverá “desempenho” nenhum que justifique ser-se premiado por lucros de 140 milhões quando, através do truque da manutenção dos cortes salariais fora dos respectivos pressupostos (inexistência de actividade da aviação civil, paralisia da frota, etc.), se conseguiu “poupar” (ou seja, pagar a menos) 250 milhões!…
5 – Também Alexandra Reis não tem direito a qualquer pagamento a não ser por virtude da cessação do contrato de trabalho que tinha enquanto Directora (e que estava suspenso), já que a lista taxativa do Estatuto do Gestor Público não prevê nem admite a figura jurídica da renúncia com indemnização, e a legalmente prevista renúncia, por disposição imperativa da lei, não admite nem permite pagamento de qualquer compensação ou indemnização (art.º 27º), sendo assim nulo e de nenhum efeito o “acordo” celebrado com a referida administradora.
6 – Mesmo que, por absurdo, se considerasse ter ocorrido uma “demissão por mera conveniência”, Alexandra Reis não teria nunca direito a receber a indemnização correspondente ao vencimento base que auferiria até final do respectivo mandato, mesmo que com o já citado limite máximo de 12 meses (art.º 26º, n.º3) e com o desconto das remunerações entretanto recebidas como Presidente da NAV e depois como Secretária de Estado do Tesouro (art.º 26º, n.º 4).
É que tal direito só é reconhecido (n.º 3 do mesmo art.º 26º) ao gestor público que, no mandato em causa, conte já com pelo menos 12 meses seguidos de exercício de funções, o que, ao contrário do invocado pela própria, aqui não sucede visto que Alexandra Reis só foi eleita para o mandato em curso em 24/6/2021 e as funções exercidas entre Janeiro e Junho desse mesmo ano foram-no em prorrogação do mandato anterior, e não “retroactivamente” no âmbito do novo mandato.
7 – E, como se afigura igualmente evidente, a nulidade do “acordo” de cessação do mandato de Alexandra Reis também não é de todo susceptível de determinar a sua “reintegração” na TAP, ou sequer o recebimento das remunerações desde Março deste ano, desde logo porquanto somente escassos 4 meses depois após a sua saída ela estava a acordar a constituição de um novo vínculo (como Presidente da NAV), incompatível com a manutenção do seu mandato como administradora da TAP, e logo sempre determinando a irremediável caducidade deste. Mas também porque, não tendo (igualmente por vontade e decisão suas) exercido qualquer actividade, o instituto do “enriquecimento sem causa” sempre impediria o recebimento de prestações remuneratórias referentes a trabalho efectivamente não prestado.
8 – Finalmente, é em absoluto inaceitável pretender-se desvalorizar a gravidade do pagamento dos 500 mil euros a Alexandra Reis com o “argumento” de que se trataria de um valor percentualmente pouco relevante nas contas da TAP. Por um lado, saber se certa prática é lícita ou ilícita não se determina pelos valores envolvidos e, por outro, tratando-se de uma empresa do sector empresarial do Estado, cada um dos cêntimos que nela se gastam está, e bem, sujeito aos princípios das boas práticas de gestão, da transparência e do controlo público.
E muito se estranha ainda que, sobretudo quando a CEO faz constar por todos os meios que irá reclamar milhões do Estado Português, os responsáveis públicos não refiram que, pelos inúmeros danos causados pela gestão de Madame Christine às contas da TAP, é esta Empresa que tem direito a exigir-lhe judicialmente a reparação de tais danos…
António Garcia Pereira
Obrigada por mais este esclarecimento cabal que muito ajuda a compreender por onde andam estes contratos e, consequentemente, as companhias. Que bom que é ouvir uma voz íntegra como a sua no meio da balbúrdia do reino.
Os meus parabéns, Garcia Pereira, por este parecer bem fundamentado em favor dos contribuintes e do povo português!
Abraço de antigo colega da Faculdade de Direito
Carlos Silva
Concordo plenamente e agredeco a este ilustre advogado que nos faça chegar ao conhecimento todas estas aldrabices, para não dizer vigarices, em que o nosso país está diariamente a ser confrontado.
Muito bem dito, parabéns por, finalmente, alguém com ‘dois dedos de testa’ vir dizer, e confirmar, o que os comuns mortais também pensam.
Porque se esconde o contrato?
Como se ‘constroem’ lucros (que conveniente) com tão pouca actividade e com tantos atabalhoados negócios?
Obrigado, António Garcia Pereira!