TAP: Tão ladrão é o que vai à horta…

O espectáculo a que temos vindo – e vamos seguramente continuar – a assistir com as inquirições e revelações no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão da TAP é, infelizmente, tão deplorável quanto expectável. Mas tal espectáculo é, antes de mais, a consequência da forma como o governo de António Costa tratou a questão da TAP e da sua administração.

Primeiro, propagandeou “aos quatro ventos” as diversas vantagens para o País de voltar a ter uma companhia aérea pública, para assim justificar não só o investimento de 3,2 milhões de euros[1] de dinheiro dos contribuintes, como também a aceitação e imposição de um dito Plano de Reestruturação, imposto por Bruxelas, que serviu para justificar brutais cortes salariais (de entre 25% e 50%) e mandar ilegalmente para a rua cerca de 2500 trabalhadores, mas que ninguém conhece e que foi, pelo mesmo Governo, mantido na maior opacidade.

Depois, contratou, com pompa e circunstância, uma gestora estrangeira, Christine Ourmières-Widener, a quem deu carta branca e completa cobertura política para fazer tudo o que foi fazendo na TAP: instauração de um clima de terror e de opacidade dentro da Companhia, com práticas de puro e duro assédio moral (quer para obter a adesão às rescisões por mútuo acordo, quer para pressionar os trabalhadores, e sobretudo as trabalhadoras, a abdicarem dos seus direitos, em especial os de parentalidade), a instauração a torto e a direito de processos disciplinares, a destruição prática do Gabinete Jurídico-Laboral da Companhia e sua substituição pela “tróica” CEO (Madame Christine) / DRH (Ana Dionísio) / Advogados da SRS[2].

O Governo de António Costa sempre deu completa cobertura a inúmeros outros desmandos cometidos pela Madame Christine, alguns deles actos de verdadeira gestão danosa. Exemplos? A atribuição da transformação de aviões de passageiros em cargueiros a empresa não certificada; a contratação (e a peso de ouro) de quadros, sobretudo franceses, sem currículo, mas da esfera do conhecimento pessoal da CEO, enquanto trabalhadores portugueses com 20 e 30 anos de experiência eram “encostados”; as diversas rescisões milionárias que, contrastando com as condições impostas à generalidade dos trabalhadores, foram pagas a administradores e directores[3]; as tentativas de disfarçar as enormes carências de pessoal, quer de voo, quer da manutenção, através dos expedientes da ultrapassagem (apresentada como normal e até recompensada com “prémios”) dos tempos máximos de trabalho[4] ou da contratação, com custos milionários, a empresas terceiras, de aeronaves e tripulantes e de operações de manutenção; os negócios ou actos ruinosos, só não consumados devido à sua pública denúncia, que, aliás, suscitou raivas épicas por parte da dita CEO, tais como os dos 79 automóveis de luxo para os gestores de topo, da mudança de instalações para o Parque das Nações ou da contratação da empresa do “personal trainer” do marido; etc., etc., etc.

Esta conduta, tão ilegítima quanto arrogante, e assente numa cada vez mais óbvia sensação de “roda livre” e de impunidade, atingiu mesmo foros de absoluto escândalo[5], mas sempre com o Governo de António Costa a ignorar olimpicamente todas as denúncias e todos os protestos dos trabalhadores e a caucionar todo este tipo de práticas, absolutamente indignas e impróprias de um gestor público competente e sério, e a afirmar a confiança na CEO da TAP.

Mesmo na questão da saída de Alexandra Reis, a CEO Christine mentiu descarada e conscientemente ao regulador (CMVM), ao mercado e ao público em geral, bem como aos trabalhadores da Empresa, mas, tal como se foi tornando cada vez mais claro, fê-lo com o consentimento e a concordância do Governo. E ninguém, mas rigorosamente ninguém, pode acreditar que nem a própria Presidente da Comissão Executiva da TAP, nem os restantes membros de tal Comissão, bem como o Chairman e restantes membros do Conselho de Administração, e ainda Secretários de Estado, Ministros e Primeiro-Ministro, não soubessem que o afastamento de um membro do mesmo Conselho de Administração só pode ser aprovado por deliberação da Assembleia Geral, adoptada pelo voto do(s) respectivo(s) accionista(s).

E é de sublinhar também que toda esta cobertura governamental à actuação da Madame Christine e a arrogante postura desta – ao ponto de exigir e conseguir mandar embora uma outra administradora que dela discordava quanto a alguns dos já referidos actos de gestão danosa – se intensificaram ainda mais quando António Costa e os seus ministros se deixaram da mistificação da Companhia “do Povo” e passaram a assumir com clareza que, afinal, o que verdadeiramente pretendiam era vender a TAP a privados e o mais barato (seguramente por muito menos do que os 3,2 mil milhões de euros públicos que lá foram injectados) e rapidamente possível.

Desta forma, a destituição da CEO, surrealmente comunicada (!?) por conferência de imprensa dos Ministros das Finanças (Fernando Medina) e das Infraestruturas e Transportes (João Galamba) é, além de juridicamente disparatada[6], um exercício da mais absoluta hipocrisia política, que encobre as responsabilidades próprias e que permite a quem já deveria ter sido destituído há muito tempo, e por muitas e variadas razões (sendo a primeira e principal perseguidora de pessoas no interior da TAP), apresentar-se como uma pobre vítima, infeliz e perseguida. E esta forma de destituição até fornece à CEO  argumentos (embora bem menos do que alguns pretendem fazer crer) para questionar a legalidade do seu afastamento.

Ora, foram aqueles que (só) agora a despedem que, afinal, a apoiaram em todas as suas decisões e pretensões, ao ponto de Galamba, sob o extraordinário argumento de que “o Estado é uma pessoa de bem”, até ter começado por apoiar e caucionar o pagamento a Madame Christine do prémio de “desempenho” pelo pretenso atingimento dos objectivos de 2022, atingimento esse que, sabe-se agora, só foi possível pela poupança de cerca de 250 milhões de euros, resultantes da manutenção, não obstante a retoma da actividade a quase 100%, dos brutais cortes salariais (só muito recentemente diminuídos para “apenas” 20%) e também pela operação contabilística do chamado reporte ou bónus dos prejuízos fiscais[7], que representou 33,9 dos 65,6 milhões de lucros apresentados. Em suma, com uma poupança de 250 milhões, apresentar um lucro real de 31,7 milhões não demonstra qualquer tipo de competência ou desempenho relevante.

Tudo isto mostra bem que Madame Christine deveria ter sido demitida, e há muito tempo, mas também que aqueles que agora a despedem são os mesmos que a sustentaram e apoiaram até há muito pouco tempo atrás e que só agora se lembraram de construir uma justificação para o afastamento, entretanto tornado inevitável, desde logo pela própria e pelas suas atitudes e decisões.

Mas ficámos ainda a saber muito mais coisas, deveras reveladoras da podridão a que chegou a Política em Portugal!

A Inspecção-Geral de Finanças examinou, de uma forma em geral correcta, as questões jurídicas relacionadas com a saída de Alexandra Reis, mas “esqueceu-se” da responsabilidade dos restantes membros da Administração da TAP, e em particular, e numa omissão inexplicável, visto que lhe competia fazer a ligação entre a TAP e Ministério das Finanças, do administrador financeiro Gonçalo Pires. Este, como no passado dia 30/03 se viu, não só manteve a Direcção-Geral do Tesouro na ignorância do que se passava, como mentiu descaradamente na Comissão Parlamentar de Inquérito ao fingir desconhecer o acordo celebrado com Alexandra Reis. Já antes Pedro Nuno Santos, anterior Ministro, e Hugo Mendes, ex-Secretário de Estado, tinham também faltado grosseiramente à verdade ao invocarem um desconhecimento do acordo que se revelou absolutamente falso[8].

Mesmo quanto ao famigerado “acordo”, permanece ainda por explicar quanto é que a sua negociação e execução (designadamente com contribuições para a Segurança Social e Tributação autónoma) custou efectivamente, quanto é que custaram à TAP os honorários dos mandatários (quer da própria TAP, quer da Dra. Alexandra Reis) e por que motivo e com que fundamento aceitou a Administração presidida por Madame Christine custear estes últimos. Por fim, por que razão duas das mais afamadas Sociedade de Advogados, especializadas no aconselhamento de empresas, designadamente em casos de despedimentos, não lograram vislumbrar que a lei aplicável ao caso era – como claramente é – o Estatuto do Gestor Público.

Pelo meio, ficámos também a saber que a forma de resolver eventuais divergências entre uma Presidente e um membro da Comissão Executiva de uma empresa do sector empresarial do Estado é de a primeira “correr” com a segunda, a troco de uma choruda indemnização e disfarçando a ordem de demissão com a aparência (ilegal) de uma renúncia negociada para abraçar novos projectos profissionais. Ficámos também a saber que assuntos desta natureza e gravidade, e envolvendo valores da ordem, pelo menos, do meio milhão de euros, são tratados, no Governo do Sr. Costa, por mensagens de WhatsApp. Ficámos também a saber que, nas vésperas da primeira audição parlamentar da Madame Christine (em 18/01/2023), esta foi preparada numa reunião, mantida secreta até agora, com membros dos gabinetes ministeriais da tutela e deputados do PS, entre os quais o deputado Carlos Pereira. E ainda que, na véspera do inusitado anúncio público da demissão, Fernando Medina tentou que a CEO da TAP apresentasse, ela própria, a renúncia ao cargo! 

Christine Ourmières-Widener não é de todo a pobre vítima por que agora se pretende fazer passar. Mais! Por estranho que possa parecer, a verdade é que a sua destituição ocorre no momento mais conveniente para ela, já que se verifica logo após o, ainda artificioso, anúncio dos lucros e antes do cada vez mais iminente desmoronar da operação do verão devido à gritante falta de capacidade operacional da Companhia (desde logo pela dramática carência de pilotos, de tripulantes de cabine e de técnicos de manutenção despedidos em excesso[9]), assim se conseguindo eximir às respectivas consequências.

Mas, obviamente, a CEO da TAP não é a única dos responsáveis, os quais deveriam ser igualmente chamados à pedra, demitidos, se ainda estão em funções, e objecto dos competentes procedimentos legais, sejam eles disciplinares, civis e/ou criminais. A começar pelos restantes administradores, muito em particular pelo CFO Gonçalo Pires, e a acabar nos membros do Governo e nos deputados envolvidos, de uma forma ou de outra, nas manobras acima descritas, pois tão ladrão é aquele que vai à horta roubar fruta como aquele que fica à porta a guardar-lhe as costas!

De outra forma, o que teremos é a TAP vendida à pressa e ao desbarato, precisamente por aqueles que pregavam a sua necessidade como empresa pública, a um dos grandes grupos da aviação civil, a sua transformação numa companhia meramente regional, a transferência do “hub” de Lisboa para Madrid, a privação do País de um dos seus relevantes instrumentos económicos e estratégicos e a condenação de quem sempre a tem aguentado (ou seja, os seus trabalhadores) a um futuro ainda mais sombrio, feito de baixos salários e até de novos despedimentos.

António Garcia Pereira


[1] Relativamente ao qual primeiro foi dito que a TAP, depois de “rentabilizada”, iria restituir ao Estado (e até dar a este muito mais…) para, no final de 2022, se deixar enfim claro que nada iria devolver (declarações do CFO Gonçalo Pires aquando da apresentação, em 02/11/22, dos resultados trimestrais, confirmadas pelo então Ministro Pedro Nuno Santos num debate sobre a privatização).

[2] Alguns dos e-mails trocados entre o Advogado responsável máximo da SRS e a CEO – e divulgados sabe-se lá como e por quem, visto se tratar de correspondência abrangida pelo sigilo profissional – mostram bem o tipo e a proximidade, inclusive pessoal, das relações estabelecidas.

[3] Sempre com a decisão da Administração e sempre com o beneplácito do Governo: Teresa Lopes com 1,2 milhões; Maximilian Otto Urbahn com 1,35 milhões de euros; Abílio Martins, Pedro Ramos e João Falcato, segundo consta, com valores igualmente escandalosos, mas ciosamente escondidos por blindadas “cláusulas de confidencialidade”, como se não se tratasse de dinheiros públicos, sujeitos (teoricamente) a rigoroso controlo e fiscalização.

[4] O respeito pelos tempos máximos de trabalho e pelos períodos de repouso prende-se directamente com as exigências da segurança de voo, pelo que permitir, como fez a ANAC, o recurso sistemático e “normal” aos voos em férias e em folgas roça o criminoso. Aliás, um estudo científico sobre o desgaste profissional dos Técnicos de Manutenção de Aeronaves da TAP – e estranhamente mantido em silêncio, até da própria entidade que o encomendou – mostra bem o estado de cansaço extremo, de desalento e de desmotivação a que tais profissionais foram levados pela gestão da Companhia.

[5] Para além da estranhíssima (ou talvez não…) inacção das autoridades reguladoras e fiscalizadoras, como a ACT e a ANAC (que nunca viram nenhuma razão para intervir, não obstante os protestos dos trabalhadores e das suas organizações), chegou-se ao ponto de a Administração da Companhia se arrogar definir como confidenciais quer a irrisória e mesmo provocatória proposta de revisão do Acordo de Empresa, quer – pasme-se! – a própria contraproposta sindical!?

[6] A destituição de um gestor público tem de ser deliberada em Assembleia-Geral (regra que, aliás, também se aplicaria a Alexandra Reis) e, sendo por justa causa, tem de ser possibilitado ao visado o exercício do contraditório relativamente aos factos que lhe são imputados (art.º 25.º, n.º 2 do referido Estatuto, aprovado pelo Dec. Lei n.º 71/2007, de 17/03). E, obviamente, não se anuncia primeiro a demissão e depois é que se vai à procura de encontrar e elencar os factos que a fundamentam e cumprir as formalidades procedimentais obrigatórias!

[7] Um “bónus fiscal” convenientemente possibilitado por uma norma da Lei do Orçamento de Estado para 2023, que pôs fim à limitação temporal para o reporte ou dedução de prejuízos fiscais ao lucro tributável.

[8] Pedro Nuno Santos teve uma melhoria súbita de memória que o levou a recordar-se de que, afinal, conhecia o acordo e até tinha dado a sua concordância, o mesmo se tendo passado com Artur Mendes, que foi a correr fazer um segundo depoimento na IGF, a qual o aceitou sem problemas!?…

[9] Apesar de o estar a procurar fazer, e, aliás, de forma cada vez mais ostensiva, a TAP, dado o péssimo ambiente que nela se vive e as muito baixas remunerações que são pagas, não consegue contratar ou sequer recontratar aquelas categorias de trabalhadores.

Um comentário a “TAP: Tão ladrão é o que vai à horta…”

  1. Conceição Amaro diz:

    Muito bom. Aliás, gostava que se aproveitasse esta CPI para, finalmente, o Governo dar a conhecer o tão citado Plano de Reestruturação que tudo (not !) explica ou… acoberta e tanto custa ao erário público. Cumprimentos

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