TAP – Trabalhador castrado, não!

No passado dia 23 de Abril decidi escrever uma “Carta Aberta”[1] ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao Ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, à Inspectora-Geral do Trabalho, Maria Fernanda Campos, e à Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. Nessa carta dei-lhes conta dos inúmeros e graves abusos de que foram, e continuam sendo, vítimas os trabalhadores da TAP, e que já descrevi num artigo anterior[2]. O objectivo do envio desta “Carta Aberta” era, e é, sobretudo, o de não mais permitir que qualquer dessas entidades, em particular o Ministro e a Inspectora-Geral, pudessem vir invocar que “não sabiam” o que se está ali a passar. 

Acontece que, de todas elas, apenas recebi resposta dos Serviços da Presidência da República, informando que o Presidente estava atento e a acompanhar a situação e que ela iria decerto ser abordada nas suas reuniões semanais com o Primeiro-Ministro. 

O Ministro, nada me dizendo, optou por ir nessa noite à televisão afirmar que a situação de todos os abusos claramente denunciados, afinal, “não é chantagem, é o que é” e referir que “é a empresa que está entre a espada e a parede”, e não os trabalhadores, mostrando assim concordar com tudo o que se está a passar na TAP, apoiando as atitudes assumidas pelos respectivos responsáveis e considerando os dislates cometidos contra os trabalhadores como uma legítima “ferramenta de gestão” utilizada pela Empresa…

Manobras de terrorismo psicológico 

Ora, como já tive oportunidade de salientar, do que ali se trata é de um conjunto de medidas e de atitudes, totalmente não desejadas pelos trabalhadores, e praticadas com o claro objectivo (ou até simplesmente com o evidentíssimo efeito) de os perturbar e constranger, de lhes criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador, afectando a sua dignidade, quebrando-lhes o ânimo e a capacidade de resistência para assim se conseguir obter, finalmente, e pelo desgaste, a sua anuência relativamente a “soluções” ou “medidas” com que à partida não concordavam de todo.

O acenar com o espectro do despedimento, o ocultar dos inconvenientes e desvantagens da medida pretendida pela empresa, a propositadamente reduzida antecedência da convocatória para as reuniões nos Recursos Humanos, a tentativa de fazer passar por aceitáveis e até por objectivos e/ou automáticos supostos “critérios” que de todo não o são, como seja o fazer incluir, na famigerada lista do despedimento, determinado trabalhador só porque, há 10 anos ou 20 anos atrás, foi alvo de um processo disciplinar, ou intentou uma acção judicial contra a TAP, ou teve uma ausência decorrente de uma situação de acidente de trabalho ou de doença devidamente confirmada e comprovada pelos Serviços de Saúde da TAP, ou por ter perdido um filho, ou por haver contraído uma doença oncológica. 

Tudo isto não passa da prática, intencional e reiterada, de puro e duro assédio moral no trabalho, para mais no interior de uma empresa do sector empresarial de um Estado que se diz de direito democrático, baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na dignidade da pessoa humana.

Face ao não atingimento dos objectivos numéricos, assumidos e desejados pelo Governo e pela Administração, para mandar embora de qualquer forma trabalhadores (e substituir uma parte deles por trabalhadores mais baratos e mais precários, seja através da Portugália, sobretudo no tocante a tripulantes, seja através de empresas de trabalho temporário, como a Randstad e a Egor, que continuam a florescer na TAP e representarão, ainda agora, centenas e centenas de trabalhadores precários!), e perante a resistência oposta, apesar de tudo, por muitos dos trabalhadores assediados, eis que os responsáveis da TAP entraram num autêntico desvario, o qual se revestiu até de aspectos que, não fosse a enorme gravidade do caso, seriam mesmo de rir até às lágrimas.

A pesca de “arrasto” e o algoritmo

Assim, na fase ora em curso (a tal em que, nas palavras de um dos “Dobbermans” escolhidos para a executar, teriam “acabado as boas maneiras na TAP”), tratou-se de passar à captura “por arrasto”, ou seja, tentar engrossar, por qualquer meio, os números dos “mútuos acordos”, atingindo mesmo áreas onde já há neste momento falta de pessoal e em que a retoma plena da actividade está a ser, assim, ainda mais comprometida (desde a Manutenção à Qualidade, passando pela área Comercial, por exemplo). Por outro lado, passou-se a abranger trabalhadores que, à luz dos critérios até aqui invocados, nunca estariam abrangidos pelos mesmos.

Agora, o grande “argumento” usado pelos Recursos Humanos da TAP para procurar justificar a convocatória de inúmeros desses trabalhadores para as sessões de coacção e chantagem passou a ser o… algoritmo (!?) cuja responsabilidade de construção e funcionamento seria, não da própria TAP, mas… da consultora Boston Consulting, a quem a Companhia terá, em manifesta violação do Regulamento Geral da Protecção de Dados[3], transmitido os dados pessoais, inclusive os considerados “sensíveis”, dos trabalhadores da Empresa!

Esta é uma tentativa, de todo insubsistente e até mesmo ridícula, de conferir um verniz de objectividade e de abstracção à ameaça de despedimento, mas que é totalmente ilegítima e ilegal porque a responsabilidade de decisão tem de ser da TAP e porque os critérios têm de ser não apenas os legalmente admissíveis, como os adequados a conseguir justificar, à luz de motivos de ordem estrutural, conjuntural ou tecnológica, a necessidade de extinção do posto de trabalho daquele trabalho em concreto e a inexistência de qualquer alternativa válida.

E como já inúmeros trabalhadores que compareceram a tais reuniões de emboscada puderam constatar, os critérios ali referidos nem sempre são os mesmos, nem há nunca uma afirmação formal e escrita da TAP que a vincule e comprometa, de quais são exactamente tais pseudo-critérios e em que medida é que eles são supostamente ponderados. Sucessivamente? Em conjunto? Em percentagens de ponderação, iguais ou diferentes?

E invoca-se “produtividade”, mas acaba-se a falar em pretenso “absentismo”. Ora, este absentismo “parece” que agora já não abrange as ausências por exercício dos direitos de parentalidade e por acidentes de trabalho – e “parece” porque noutras reuniões já foi referido o oposto… –, mas abrangerá faltas de assistência à família e por doença devidamente justificada pela própria Unidade de Cuidados de Saúde (UCS). 

Mas mais ainda! A (deliberada) confusão é tal que se refere que o que relevará é o número de “ocorrências”, pelo que se, em 20 anos, um trabalhador tiver dado duas faltas de um dia cada, ele é desprivilegiado relativamente àquele que tenha tido uma única ausência de 90 dias de duração!

As parecenças com a France Telecom

A brutalidade desta forma de actuar, disfarçada cobardemente de objectividade de um qualquer algoritmo, já foi ao ponto de se relatar que os Recursos Humanos da TAP se terão atrevido a incluir na lista do despedimento dois tripulantes que perderam os filhos no grande e dramático incêndio de Pedrogão Grande e a quem, na altura, a Companhia incentivou a se deslocarem ao local da tragédia, fornecendo até transporte automóvel, para depois os vir apontar como tendo esse mesmo absentismo, o qual, caso não se dispusessem a assinar o mútuo acordo, justificaria o seu despedimento, e só os tendo finalmente retirado da lista após o clamor de indignação que esta atitude provocou.

Toda esta forma de actuar faz lembrar os métodos de gestão usados há uns anos na empresa de telecomunicações France Telecom. Sendo inicialmente uma empresa do sector público, os seus trabalhadores tinham (à semelhança do que em Portugal se passou, em tempos idos, com os CTT e a CGD) um vínculo de natureza pública. Após a privatização da empresa, essa natureza pública impedia os novos senhores e gestores privados de usarem os mecanismos da lei laboral privada, em particular o despedimento colectivo, para se desfazerem de milhares e milhares desses mesmos profissionais, e assim trataram de recorrer à pressão, à coacção e à ameaça mais brutais.

Os métodos dessa gestão empresarial terrorista ultrapassaram então todos os limites. Sempre em nome da “necessidade financeira” e da “necessidade de cortes”, os trabalhadores foram então tratados como lixo, desprezados, criticados, atacados, ameaçados e chantageados por todas as formas. Sob o lema “se não saem pela porta, saem pela janela” (frase esta explicitamente proferida, numa reunião de gestores, pelo CEO da empresa, Didier Lombard, e secundada pelo seu Vice-Presidente, Luis-Pierre Wenàs, e pelo Director de Recursos Humanos, Olivier Barberot), a nova Administração decidiu tornar absolutamente insuportável a vida dos trabalhadores, tendo cortado 22 mil postos de trabalho (20% do total). 

Mas fez também com que, entre 2006 e 2009, 60 funcionários se suicidassem, 35 dos quais nos últimos dois desses anos! Uma trabalhadora de apenas 32 anos de idade não aguentou mais a pressão e suicidou-se, atirando-se de uma das janelas do 5.º andar do prédio da empresa, perante os seus colegas de trabalho. As impressionantes cartas de despedida dessa mesma trabalhadora e de um outro trabalhador de 51 anos, da delegação de Marselha, apontaram claramente a gestão pelo terror como a responsável pelo seu acto desesperado.

Em França, porém, e ao contrário do que infelizmente sucede em Portugal, o assédio moral constitui também crime e, assim, ao fim de 6 anos de investigações, aqueles três dirigentes de topo da France Telecom – que, entretanto, se rebatizou de “Orange” numa tentativa de fazer esquecer o passado… – foram levados a julgamento e condenados a penas de prisão e de multa. O Tribunal desconsiderou por completo a tese, sustentada pela defesa, de que as saídas da empresa tinham sido (notem as semelhanças!) “decisões voluntárias tomadas pelos próprios” e antes entendeu que se provara ter existido “um esquema consciente de deterioração das condições de trabalho de forma a acelerar essas saídas”, verificando-se assim um “assédio moral institucional”.

Ora, embora – e infelizmente – entre nós o assédio moral não tenha sido ainda criminalizado, e a cultura judiciária dominante continue sendo a da fixação, como regra geral, de montantes indemnizatórios por danos morais inaceitavelmente baixos, certo é que comportamentos como os que têm sido adoptados na TAP – para levar os trabalhadores a aceitarem rescisões cujos termos e condições foram, todos eles, unilateralmente definidos pela Empresa, e que os mesmos trabalhadores verdadeiramente não desejam aceitar – são absolutamente ilícitos e conferem às respectivas vítimas o direito de accionarem judicialmente a Empresa e até – tal como os nossos Tribunais começaram finalmente a consagrar – os próprios assediadores directos.

Os riscos para a segurança de voo

Mas esta gestão empresarial da TAP encerra ainda outros riscos, e particularmente graves, e de que praticamente ninguém fala. Para além de se pôr em causa uma adequada retoma da actividade (cuja possibilidade se vai aproximando cada vez mais e que, aliás, deveria estar a ser activamente preparada), os tripulantes, em particular os pilotos, têm, até pelos próprios regulamentos internos da Empresa, não o direito, mas o dever de não voarem se não se sentirem em condições, físicas e psicológicas, de executarem o serviço de voo. 

Ora, o critério de absentismo que a TAP está agora a invocar e a pretender usar é mais do que apto a empurrar o piloto que não se sente bem a, todavia, ir voar à mesma, em vez de faltar (para não correr o risco de amanhã lhe ser atribuído “absentismo” e logo se invocar o mesmo como razão para o seu despedimento), com os gravíssimos problemas de segurança daí decorrentes, e em que só os arrogantes e os irresponsáveis não querem atentar.

Porém, certo é que enfraquecer a capacidade de resposta da Manutenção, sujeitar os trabalhadores a um clima de pressão e até de terror e empurrar objectivamente os tripulantes para o afrouxamento dos padrões de segurança são outras tantas responsabilidades que não podem deixar de ser denunciadas, apuradas e assacadas antes que algo de irremediavelmente grave possa ocorrer.

E, entretanto, ficou a saber-se que um jovem trabalhador da TAP, com cerca de 10 anos de trabalho em terra, e Comissário de Bordo contratado há 3 anos, a prazo, mesmo à beira de passar a efectivo, viu o seu contrato ser denunciado pela TAP e viu-se atirado para o desemprego, não aguentando mais a forma como foi assim tratado, tendo posto termo à sua própria vida. Mas… a Administração da TAP prossegue a sua própria “restruturação”. 

Morrem os enteados e engordam os filhos

A título de exemplo, depois de personagens como Abílio Martins e João Falcato terem saído da Empresa com valores indemnizatórios astronómicos – cujo exacto valor, para já, a “lei da rolha” imposta pela TAP em nome da “confidencialidade” impede que seja publicamente conhecido – e de o segundo deles ter assegurado a sucessão dinástica para o filho, Miguel Falcato, colocado na nova estrutura como Coordenador de Planeamento e Controlo da Despesa, a Dra. Stéphanie da Silva (esposa do Presidente da Comarca Municipal de Lisboa, e que também recebeu prémios em anos de prejuízo da TAP) aparece como “Senior Dir. Legal” dos Serviços Jurídicos da Empresa.

Enquanto uns – os trabalhadores, que fizeram e fazem a empresa – são empurrados para a rua, outros recebem milhões em troca de se irem embora ou trepam na estrutura da Empresa. E é, pois, para encobrir tudo isto que o Ministro Pedro Nuno Santos tanto se afadiga em apoiar a política de chantagem e da coacção em curso na TAP.

E é também por isto que a Administração, enquanto procura despedir, ainda por cima sob a provocatória capa das “medidas voluntárias”, quem mais serviu a Empresa, trata de encobrir onde estão, e com quem estão, afinal, os grandes gastos da Empresa.

Trabalhador castrado, não!

É certo que vivemos uma época de pandemia em que, de forma porventura ainda mais alargada do que nos tempos da Tróica, nos procuram convencer de que o estado de emergência (financeira ou sanitária) tudo justifica, nomeadamente em termos de despedimentos em massa e de cortes drásticos de salários e outros direitos. Mas, para mais quando se aproxima o 1 de Maio, Dia Internacional do Trabalhador, é mais importante do que nunca relembrar que foi sempre, não pelo conformismo e pelo derrotismo, mas sim pela luta contra a injustiça, a exploração e a prepotência que os trabalhadores lograram alcançar e impor as suas conquistas mais básicas.

Os profissionais do assédio e do terror julgam sempre que a todos conseguem quebrar a resistência e dobrar a espinha, mas enganam-se redondamente. É que, mesmo com o ensurdecedor silêncio de muitos dos sindicatos, há cada vez mais trabalhadores dispostos a gritarem, parafraseando o grande poeta José Carlos Ary dos Santos, “Trabalhador castrado, não!

António Garcia Pereira


[1] A qual pode ser lida aqui: https://www.facebook.com/garciapereira2/posts/5291379760932658

[2] E que pode ser lido aqui: https://www.noticiasonline.eu/tap-a-insustentavel-vileza-em-marcha/

[3] Cf. art.º 20.º do Regulamento Geral da Protecção de Dados (aprovado pela Lei n.º 58/2019, de 08/08).

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