Temos de Silenciar este Gajo! (por João de Sousa*)

censura-2Dia 29 de Agosto de 2015: dois dias antes da publicação deste texto, fez 1 ano e 5 meses! Há 519 dias que estou preso preventivamente. Estou a aguardar julgamento há 74 semanas.

Dezassete meses em que estou privado dos meus e de mim próprio.

No mês que vem faço 42 anos, o meu segundo aniversário na prisão; no mês que vem, no dia 29, farei um ano e meio de prisão preventiva!

Estou ainda a aguardar – já passaram 4 meses – uma decisão do tribunal da Relação sobre a alteração da minha medida de coacção. Porquê tanto tempo? Quiçá porque surpresos com um parecer pro bono (sim, porque não tenho disponibilidade económica para tal: a minha associação criminosa pouco rendeu!) do Prof. Dr. Rui Pereira (entre outros, assessor do gabinete dos Juízes do tribunal Constitucional e ex-membro do Governo da República) estão os venerandos Juízes desembargadores a analisar as questões colocadas pelo recurso interposto com muita atenção e cuidado.

Estas pequenas e fugazes luzes, semelhantes ao brilho do fogo-fátuo, alimentam a minha resistência, fortalecem a minha determinação, a minha resiliência, emocionam-me ao ponto de me comover quando o meu advogado disse que não era preciso pagar o parecer.

O Jr. ao fim de 17 meses já anda, corre e dança durante as visitas, a Helena já diz correctamente “autópsias” (já não pronuncia “tópsias”) a mais velha, a Leonor, está uma senhorita e já usa soutien! A esposa já gere as contas da casa, faz acrobacias económicas, tapando ali, destapando acolá, sobrevivendo aos 17 meses do marido privado de ordenado (obrigado a todos que têm ajudado).

Mas a batalha continua, e a vitória final nesta guerra ainda encontra-se muito distante. As provações e privações mantêm-se!

No dia 25 de Agosto, terça-feira, fui a Lisboa conhecer o edifício-sede da minha instituição – P.J.

Fui convocado para prestar declarações, como testemunha, num processo interno, na Unidade Disciplinar e de Inspecção, sala 7.009. Sala 7.009?! Sete andares? O edifício deve ser monumental!!

Ironia das ironias: sempre defendi a modernização da P.J., o encerramento dos departamentos, a centralização num só edifício ou cidade judicial; quando inauguram o edifício sou preso, conhecendo o mesmo enquanto “Inspector-preso-acusado-de-corrupção”!

Confesso ao meu Estimado(a) Leitor(a) que estava apreensivo com a deslocação. Ver colegas, amigos, “ambíguos”, algemado, escoltado … mas depois racionalizava: eu não matei, não pratiquei, se quisermos, para ser mais imparcial: eu sou presumivelmente inocente.

Fui recebido por um colega da segurança que conduziu-nos, a mim e à minha escolta, ao sétimo andar.

Simpático (conhecemo-nos há 15 anos) profissional (equidistante da amizade e do dever do serviço) registei o orgulho com que descrevia e “explicava” o edifício:

– Sabes João, isto é outra coisa, temos carreiras de tiro, em baixo, de 15 metros …

Estes profissionais, aqueles que conhecem bem os defeitos e virtudes da instituição, devem ser mantidos, reconhecidos.

Pergunta o Leitor(a): ao que foi o Inspector João de Sousa?

No âmbito do processo interno, instaurado pelo Director Nacional Adjunto, Dr. Pedro do Carmo, após questionarem, declarei que tinha a perfeita noção que devo observar o dever de zelo e respeito pela imagem da instituição que sirvo desde 1999, assumindo a autoria dos textos publicados neste “blogue”.

O objectivo da minha inquirição era confirmar e apresentar elementos/informação, que permitissem corroborar/sustentar as denúncias que apresentei neste espaço.

Cada vez que, mais uma vez, surgia nova questão melindrosa, a instrutora do inquérito questionava: “Quer falar sobre isto? Não é obrigado!” Claro que sim, respondia eu, e escalpelava mais um incidente.

Testemunha, não arguido. Falar, não calar. Apresentar factos, não efabular. Perspicuidade, não discurso prolixo! Respeito mútuo, ainda que preso, e não desprezo.

O edifício é monumental, espelha respeito, profissionalismo. Conheço as instalações do FBI em Washington (E.U.A) as nossas apresentam maior imponência e monumentalidade.

Espero que agora, também, dotem os profissionais que trabalham em semelhante construção dos conhecimentos técnicos necessários para a proficuidade do seu trabalho; faço votos para que os veículos tenham combustível ou não falhem durante um serviço. Mais importante que o verniz é o estado da unha, ainda que hoje em dia já existam próteses ungueais em gel!

Fui recebido e tratado com respeito, não direi com amizade, emoção e carinho, porque ainda alguém vai afirmar que toda esta gente faz parte da minha “associação criminosa”, mas ninguém discutiu porque me apresentava bem vestido, sem algemas aquando da prestação de declarações, como sucedeu quando, durante três dias, os meus colegas de Lisboa transportavam-me ao tribunal de Almada, e os meus colegas de Setúbal discutiam com os mesmos, porque o “gajo” todos os dias tem outro fato e até cheira a perfume!

Respeito, profissionalismo e espaço para a dignidade do Outro.

Assumi o que escrevi e propalei urbi et orbi, acrescentando, exemplificando, que sempre o fiz (criticar, denunciar construtivamente) no plano interno, não existindo qualquer relação “causa-efeito”, entre a minha prisão, um sentimento de vingança e o que agora denuncio.

Consciente do facto, cientificamente provado, que colhemos o que semeamos, ou que quem semeia ventos, invariavelmente, colhe tempestades, esta quinta-feira passada, dia 27 de Agosto, um jornalista da revista brasileira “Veja” (a mesma que em Dezembro de 1992 publicou as palavras do irmão de Fernando Collor de Mello, denunciando um esquema de corrupção que obrigou o mais jovem Presidente eleito a demitir-se) esteve aqui em “Ébola” a entrevistar o Inspector João de Sousa.

Admirado, o jornalista, confessando que no Brasil nunca tal se verificou, afirmando desconhecer se no resto do mundo alguma vez aconteceu, conversou com o único preso que escreve uma coluna de opinião para um jornal, o preso que denuncia as condições da prisão, as lacunas e defeitos do sistema prisional e de reinserção social, e, claro, que ousa falar do José Sócrates!

Simpático, disponível, como um verdadeiro “irmão brasileiro”, estivemos “à conversa” durante cerca de duas horas, na companhia da minha mulher e da minha filha mais velha, Leonor. O resto da “ninhada” não veio, porque excedem o número de visitantes permitidos – o que vai ser um problema se “apanhar” 20 anos, porque terei de escolher entre os meus três filhos e a esposa – e porque o Jr. quereria dançar com o repórter e a Helena brincar aos restaurantes, servindo imaginárias iguarias, porque sabe que o pai come mal e quer recompensar-me!

Com um registo médio de 1 milhão de cópias, semanalmente, revista de referência, o jornalista da “Veja” depois de falarmos, ouviu a Leonor: “Posso dizer uma coisa? Agora que já falou com o meu pai, não quer perguntar-me como estou a viver isto, como me sinto por causa do meu pai estar preso?” Filha de peixe sabe nadar! Tive que explicar à comunicativa Leonor que ela tinha que privar com o Sócrates ou “levantar ondas” relativamente às prisões, criticar, opinar.

Tinha que o fazer – opinar, denunciar, criticar – e reunir a coragem necessária para tal, a resistência para a tempestade que depois aparece, resistir à tentativa de silenciar, de condicionar.

Dia 28 de Agosto, sexta-feira (que semana esta!) a tempestade surgiu!

Antes de vos relatar a tormenta, permitam-me informar que o recluso que a semana passada se encontrava algaliado, enfermo, sem condições, acamado, ainda nesse estado se encontra, beneficiando da atenção que outros reclusos disponibilizam, e que lhe permite cumprir com as tarefas diárias da prisão – entrega de correio, colocação do tabuleiro das refeições no lugar devido, etc.

No aludido dia 28 (sexta-feira) fui chamado para ser notificado pela simpática e diligente funcionária administrativa: “notificação simples do arguido da instauração do processo e da data para interrogatório. Estabelecimento Prisional de Évora, processo 6/2015. Espécie: disciplinar comum.”

Aí está o castigo, o condicionamento, o cercear da liberdade de expressão, a censura autoritária. Lembram-se quando descrevi a conversa com o Director que opinou, informando-me que não “achava bem” eu escrever sobre o José Sócrates? Lembram-se da ameaça de procedimento disciplinar e sequente castigo? Aí está!

No dia 3 de Setembro de 2015, pelas 10h30, serei constituído arguido por “escrever sobre a vida na prisão”, conforme fui informado pela atenciosa funcionária. Informado pela funcionária, porque o Director está de férias – o recluso continua algaliado – e o Subdirector não apareceu quando recusei assinar a notificação. Porquê recusar? Porque num dos campos a preencher com “cruzinha”, lia-se: “Informado do direito de apresentar provas para sua defesa, declarou.” Opções para a “cruzinha”: “Nada” ou “Indicar as seguintes provas”; e duas linhas para expor as provas!

Mas se eu não sei do que me acusam, se ninguém informa sobre os factos que me imputam, se o Subdirector (presente no estabelecimento prisional) não explicou o que se passava, escudando-se na diligente mas visivelmente consternada funcionária, que por duas vezes fez a “ponte”, (qual arauto medievo das determinações do soberano distante como o Sol) entre o recluso que questionava (que ousadia!) e o inacessível decisor, como poderia eu assinar o documento? Perante o incómodo a que estava a sujeitar o Subdirector a senhora, e como a solução avançada era uma testemunha – um guarda prisional – assinar uma cota testemunhando a minha recusa, propus e fez-se o seguinte: “O recluso, acima indicado, declarou que não pode ratificar a notificação apresentada, em virtude de desconhecer o conteúdo dos factos que lhe são imputados. Esta situação decorre do próprio formulário que solicita provas antes da confrontação com os factos. Foi testemunha o guarda … que comigo vai assinar.”

Assim chegam as tempestades. Assim opera o sistema, atropelando a lei, as regras.

Querem castigar, silenciar o “gajo”, e caem no ridículo de fazer as coisas de forma amadora, sem conhecimento da lei!

A solução para o autêntico “nó górdio” que é um formulário mal elaborado, mas que é utilizado porque nunca ousaram, num exercício de espírito crítico, contestar o mesmo, não é fazer um texto de notificação numa folha de 25 linhas, nada disso.

Vamos continuar a trabalhar sobre o erro, porque é assim o papel! Qual papel? O papel! Que papel? Vivam os “Gato fedorento”!

Depois de 25 minutos disto, desejei um bom resto de dia à simpática (e nervosa) senhora, acrescentando: “um melhor fim-de-semana!”

E quem disser que a justiça não é célere, desengane-se! Notificado na sexta, arguido na quinta seguinte e condenado em breve. Temos de silenciar este gajo!

“A vida dentro da prisão caracteriza-se pela rotina: cada dia é igual ao anterior, cada semana é igual à precedente, de modo que os meses e os anos se confundem. Qualquer coisa que quebre esta monotonia irrita as autoridades, pois a rotina é a essência de uma penitenciária bem gerida […] A prisão foi feita para nos quebrar o ânimo e a determinação” (Nélson Mandela, “Um longo caminho para a liberdade”)

Estarei eu a incomodar a rotina cómoda da gestão tirânica do Sr. Director?

Será que o ânimo e determinação que me ajudam a exercer o meu direito a opinar, denunciar, alertar, irrita o Sr. Director ou outras pessoas? A quem lucra o meu silêncio?

Ainda o “Madiba”: “A prisão não nos tira só a liberdade, procura também roubar-nos a noção de quem somos. Todos envergam o mesmo uniforme, comem a mesma comida, cumprem os mesmos horários. Por definição é um Estado puramente autoritário, que não tolera a independência e a individualidade.”

Aqui em “Ébola” não somos obrigados a vestir o mesmo uniforme, mas creio que a mim querem colocar um “colete de forças” para me obrigarem à resignação, à conformidade, ao silêncio.

Como declarei na minha instituição na 3ª feira, reitero hoje, segunda-feira, e nos outros dias: “escrevo o “blogue” com o objectivo de melhorar a P.J., melhorar o sistema prisional. Escrevo, denuncio, ajo, porque considero que um homem que passe “por cá”, no curto espaço de tempo disponível, ainda que condicionado pelo circunstancialismo da sua vida, se nada fizer para melhorar, mais vale dormir! É mais um “cadáver” adiado que procria! É uma questão de cidadania.

Podia aguardar e escrever um livro como o Isaltino Morais, em Liberdade. Explorar tudo o que, de um lugar próximo e privilegiado, tenho observado do José Sócrates; mas isso não tem valor, agora, neste momento em que a injustiça e a indignidade existem.

É um dever de cidadania, honestidade intelectual, nada mais do que isso, mas tudo por isso!

Medo? Já reconheci antes: tenho muito!

Experimentando, talvez, um décimo daquilo a que foi sujeito , volto a Mandela: “Aprendi que a coragem não é a ausência de medo, é o triunfo sobre o mesmo. Também o senti muitas vezes, mais do que me consigo recordar, mas ocultei-o por detrás de uma máscara de audácia. O homem corajoso não é o que não sente medo, é aquele que o domina.”

Tenho muito medo. Peço desculpa à minha mulher, aos meus pais, sogros, amigos, à “ninhada”! Mais uma vez sujeito todos vós à preocupação. Sei que se eu nada dissesse ou fizesse, era mais fácil… mas não era a mesma coisa!

Que valor tem a nossa acção, quando sabemos e podemos interpelar, interferir, mesmo que seja um pequeno gesto, e nada fazemos? Dar, quando muito se possui, é fácil. Partilhar o pouco que se tem: eis o mérito.

O meu barquinho é modesto, está na eminência de naufragar atendendo ao tamanho da tormenta, mas não fomos nós que ao “Cabo das Tormentas” mudámos o nome e chamámos de “Boa Esperança”?

Espero continuar a dar voz à minha consciência, aos meus valores. Espero não ver a minha liberdade de expressão coarctada. Na quinta-feira, tentando dominar o medo, vou responder aos meus “interrogadores”, lembrando-me, tentando emular, as palavras que Tennyson nos deixou (tradução minha):

“Embora muito esteja tomado, muito resta, e conquanto

Já não sejamos aquela força que nos velhos tempos

Moveu a terra e os céus. Somos aquilo que somos.

Uma disposição firme de corações heroicos,

Enfraquecidos pelo tempo e pelo destino, mas fortes na vontade

De tentar, de procurar, encontrar e não desistir”

(*) João de Sousa é ex-inspector da policia judiciária em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora

Publicado originalmente no blog Dos dois lados das grades da autoria de João de Sousa

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