Terna é a noite (por Estátua de Sal*)

exitResolvi dar a este texto o título de um conhecido romance de F. Scott Fitzgerald apesar de não ir tratar problemas de conjugalidade doentia, alcoolismo ou esquizofrenia. Contudo, depois de refletir um pouco mais, cheguei à conclusão que os temas estão mais próximos do que se poderia julgar.

 Estive pela noite dentro a seguir os desenvolvimentos do resultado da votação do referendo na Inglaterra. Brexit or not Brexit that was the question. Não me custou nada, pois, e faço já a minha declaração de interesses, sou um inveterado noctívago.

Foi curioso observar como à medida que o tempo passava e os votos iam sendo contados, a nuvem diáfana de fantasia com que a comunicação social embala as almas para que sorvam as narrativas mais convenientes, se foi esboroando. Com base numa sondagem, feita pela internet, divulgada 10 minutos após o fecho das urnas e que dava 52% aos defensores do remaincontra 48% dos defensores do leave, os comentadores e políticos de serviço deram o facto por adquirido e foram descansar tranquilos.

As televisões deixaram de seguir os resultados. Nem o Rogeiro, nem o Rodrigues dos Santos em directo de Londres, nada. Achei estranho e fiz o chamado raciocínio abdutivo, na senda do frade Guilherme de Baskerville, essa sedutora personagem de O Nome da Rosa: se o Brexit não é notícia para os canais que incensam o status quo, só pode ser porque os resultados do referendo não lhes devem ser favoráveis. E assim era.

A partir da 1h da manhã mudei de armas e bagagens para a CNN e para a SKY NEWS, canais para os quais o referendo só saía da grelha para cumprir breves compromissos publicitários. E a partir dessa hora o leave tomou a dianteira sendo apenas ligeiramente ultrapassado aquando da saída dos resultados da Escócia que, como se sabe, é declaradamente europeísta.

Pelas quatro da manhã, o leave liderava com 52%, uma empresa de sondagens colocava em 80% a probabilidade de vencer, os mercados agitavam-se e a libra ia caindo ao segundo na cotação contra o dólar, sendo a queda, a essa hora de 10,47%. De vez em quando dava um pulo à SIC Notícias e à TVI 24 e foi delicioso rever partes da Quadratura do Círculo e da Prova dos Nove, analisando o que os comentadores da direita (Paulo Rangel e Lobo Xavier) tinham dito horas antes, dando como certo que a Inglaterra se iria manter na União Europeia e aduzindo grandes argumentos de autoridade opinativa sobre a racionalidade pragmática do povo inglês! Deu-me vontade de rir.

Às cinco da manhã, a CNN dava já a probabilidade de 85% para a vitória do leave. A libra já caía 11,7% contra o dólar, e a CNN começou a ouvir analistas que pudessem explicar o fenómeno da vitória do leave, tendo em conta que, perante tantos inconvenientes que foram apontados ao Brexit, ameaças dos políticos, das grandes empresas, da Comissão Europeia, do Obama, como é que mesmo assim o povo inglês tinha escolhido dessa forma.

Nenhum conseguiu dar uma explicação convincente. Todos continuaram a considerar o resultado como uma espécie de zombie tsunami político. Interessará perceber porquê. É essa parte que passarei a abordar.

As razões que levaram os ingleses a querer sair da União Europeia só podem ser entendidas à luz da perceção de que o projeto da Europa comum está morto e, portanto, abandonar um defunto à sua sorte não é um ato de desumanidade, nem de falta de solidariedade, mas sim uma decisão racional de luta pela sobrevivência.

 O projeto europeu, tal como existe hoje, não é mais que uma espécie de ressurreição do pangermanismo dos finais do século XIX, alargado a todos os povos da Europa, desta vez os povos germânicos e não germânicos. Ora, a Inglaterra, que travou e liderou duas Guerras Mundiais contra a Alemanha, não poderia continuar dentro de uma nau cujo porto de destino, é seguramente, a conquista pela via económica de todos os países da Europa pelos desígnios expansionistas da Alemanha. Primeiro serão os da zona Euro, os restantes, seguir-se-ão pela lógica normal das leis da economia. Não é preciso balas e muito menos tanques.

A vantagem da Inglaterra é ser uma Nação antiga, de ancestrais e entranhadas práticas democráticas e parlamentares, um povo antigo possuidor de um espírito de insularidade orgulhoso, senhorial porque imperial durante séculos. Só à luz dessa matriz de leitura se pode compreender a escolha do povo inglês.

Mas a União Europeia, e os fazedores de opinião mainstream, teimaram em menosprezar e ignorar essa grelha de leitura, provavelmente por incapacidade de perceber a História e de saírem do quadro mental restrito em que navegam o qual reduz todas as explicações para as decisões humanas a meros exercícios contabilísticos de deve e haver. Uma espécie de reducionismo da racionalidade humana a um mosaico a ser modelado por um qualquer sistema de equações, lineares ou não, pouco importa. É por isso que toda a problemática europeia do momento se limita a saber quem paga o quê, quem recebe o quê, quanto custa o quê: o economicismo no seu pior. As questões sociais, mais que esquecidas, são hoje atacadas em nome dos deficitsde décimas. As gerações novas são sacrificadas e deixaram de ter futuro à vista e sem projeto ficam reféns de perigosas e fanáticas narrativas. E quando os jovens deixam de ter futuro são as Nações que deixam de ter devir e desígnio e acabam por morrer.

Claro que a economia é importante. Mas quando os fins da economia deixam de ser os seus agentes (sejam trabalhadores ou não), e passam a ser um obscuro projeto de dominação a prazo de um país sobre outros, sacrificando a forma como a humanidade e a liberdade dos cidadãos é ou não respeitada, seja no quadro alargado da vida, seja apenas no quadro da produção económica, claro que a própria produção económica entra em declínio, os extremismos ressurgem, as tensões de todo o tipo emergem, e as surpresas aparecem.

A saída da Inglaterra da União Europeia pode ser o choque com a realidade necessário para poder servir de detonador à reflexão dos restantes povos da Europa, quanto à necessidade questionar profundamente o que é hoje a União Europeia e o que tem para oferecer aos cidadãos. Pelos vistos, pouco ou nada tem para oferecer, já que nada conseguiu oferecer ao povo inglês que o levasse a permanecer, a não ser ameaças, medos e chantagens.

Voltando ao princípio e ao tema do romance de F. Scott Fitzgerald e explicando as similitudes metafóricas com o que ocorreu hoje. De facto, a vitória do Brexit, veio pôr a nu a conjugalidade doentia, que está a afetar o relacionamento dos países dentro da União Europeia, tal como algumas declarações de responsáveis europeus (nomeadamente do inefável Juncker) só podem ser explicadas como lapsos derivados de alcoolismo latente, sendo a obstinação dos responsáveis políticos da Europa em prosseguir o projeto europeu nos moldes atuais um ato de pura esquizofrenia.

Só espero que os políticos, as manobras de bastidores, as forças da City de Londres, não venham agora tentar nos detalhes das negociações, que irão ser complexas, demoradas e sobretudo inéditas porque se trata de um território jurídico nunca antes desbravado, tentar subverter a decisão que o povo inglês, soberanamente tomou.

Porque não é a Inglaterra e o seu povo que deve ser censurada pela sua opção.

Parafraseando Shakespeare, esse inglês de exceção, poder-se-á dizer, não que algo está mal no reino da Dinamarca, mas sim que algo está mal no reino da União Europeia.

(*) Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online

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