Os tempos mais recentes tornaram ainda mais claros uma característica de comportamento e um traço de carácter da grande maioria dos nossos governantes, que se vem acentuando com a prestimosa ajuda da comunicação social amiga e colaborante e que consiste em procurar fazer de nós, cidadãos, uns tolos.
Não se trata de um exagero já que se mostra, na verdade, inesgotável a capacidade destes governantes, todos “bons rapazes”, é claro, para manipularem e falsearem deliberadamente a verdade dos factos e de, inclusive com um sorriso nos lábios, nos enfiarem as mentiras pela garganta abaixo.
Mário Centeno como Governador do Banco de Portugal
Esta lastimável historieta da ida de Mário Centeno para o cargo de governador do Banco de Portugal (porventura até já a pensar em voos mais altos, como o de governador do Banco Central Europeu…) é um exemplo acabado disso mesmo. Durante semanas a fio, todos percebemos que o próprio Centeno, Costa e Marcelo já se tinham entendido quanto a essa nomeação e, todavia, todos se foram empenhando em negá-la. Até, a escassos dias do anúncio oficial, começarem a levantar ligeiramente a ponta do véu para assim prepararem a opinião pública para aquilo que há muito tinham combinado.
A lastimável verdade, porém, é que há muitos mais exemplos desta despudorada e reacionária desfaçatez que, aliás, revela bem como estes personagens (des)consideram os seus concidadãos, ou seja, como se fossemos uns seres inferiores a quem se pode vender todo o tipo de patranhas, que eles nem dão por isso. O seu critério ético de actuação não é o de saber se o que fazem está certo ou errado, mas antes de o conseguirem, ou não, fazer passar por certo e verdadeiro aquilo que bem sabem que não o é. Então somos todos parvos e acreditamos que ele ia sair do Governo e da Presidência do Eurogrupo, ficando “desempregado”?!
E depois da tragédia de Pedrógão Grande?
Deste modo, o próprio Presidente do Observatório Técnico Independente sobre os fogos florestais, Francisco Castro Rego, avisa e denuncia que, quase três anos depois da terrível tragédia de Pedrogão Grande, ainda está mesmo muito que fazer, faltando um Plano Nacional de Gestão Integrada para os Fogos Rurais, o que significa que, com um novo grande incêndio, pode voltar a repetir-se uma calamidade como aquela.
E, todavia, governo e deputados do PS desvalorizam por completo esse alerta, chegando-se ao ponto miserável de um desses deputados ter procurado apresentar como “normal” que morram pessoas em incêndios florestais!
Aumento de casos da Covid-19
Agora, face à gravidade do recrudescimento de casos da Covid-19 na zona de Lisboa e Vale do Tejo, o governo, com Costa à cabeça, irrita-se com os especialistas que ele próprio convidou para analisarem a situação quando eles desmentem as teorias governamentais, que vão desde a explicação, “à Trump”, do maior número de testes até à tentativa de encontrar bodes expiatórios fáceis, tais como os jovens ou os moradores dos bairros pobres.
Tudo isto ao mesmo tempo que, recorrendo à habilidade das médias estatísticas, procuram desmentir aquilo que todos nós diariamente vemos, sobretudo nas redes sociais (já que a imprensa amiga sempre trata de contemporizar e equilibrar a narrativa, para não ofender Suas Excelências), ou seja, nas horas de ponta e em especial nas linhas ferroviárias de Sintra e também da Azambuja, bem como no Metro, comboios completamente superlotados, sem qualquer possibilidade física de se respeitarem as regras do distanciamento social.
E quando se levanta a questão de, após o desconfinamento e com o regresso ao trabalho de milhares e milhares de pessoas, continuarem a não existir comboios em número suficiente (como consequência de décadas de política de destruição do parque ferroviário do país, de encerramento de linhas e de desmantelamento das oficinas próprias de manutenção e reparação), qual é a resposta que se ouve, inclusive por parte do próprio ministro das Infra-estruturas e dos Transportes? É a de que “para já, o reforço de composições na Área Metropolitana de Lisboa é impossível” e que “só em Setembro é que se saberá” de algum eventual reforço, mas que “será sempre marginal”!
Assim, e não se sabe até quando, para estes governantes, todos aqueles que têm de ir trabalhar para se sustentarem a si e às suas famílias e que, para se deslocarem, o têm de fazer pelos transportes públicos (em particular o comboio e o Metro) terão de o fazer em condições que sabemos ser propícias à propagação do vírus, aumentando assim exponencialmente o número de infectados. Ao mesmo tempo que, por esse aumento dos números, se culpam os jovens que (erradamente, é certo) se juntam em festas ou convívios ou os moradores de bairros, como os da Jamaica ou do Prior Velho.
É claro que festas e convívio de dezenas, ou até de mais de uma centena de pessoas (como aqueles que vimos ocorrerem em Lisboa, Carcavelos ou Lagos, por exemplo) constituem uma prática incorrecta. Mas tendo também ocorrido noutros locais, como Braga ou Porto, onde não se verificaram aumentos significativos, a causa essencial do aumento das infecções não pode estar aí.
Por outro lado, os números cada vez maiores de profissionais de Saúde infectados, inclusive em hospitais não-Covid-19, mostram que há um problema, e um problema grave, e que reside na ausência de estratégia e de medidas sérias das autoridades de Saúde, designadamente ao nível da efectiva protecção desses mesmos profissionais, do investimento nas instalações hospitalares, em particular nos cuidados intensivos[1], e da imposição às empresas transportadoras do seu funcionamento com respeito pelas regras de segurança sanitária.
E se, em nome da crise pandémica, se pode dizer a um trabalhador que ele tem de ficar em lay off e, logo, a receber apenas 2/3 do seu já miserável salário, mas pagar à mesma a renda de casa, a alimentação e a educação dos filhos, porque é que não se pode dizer às transportadoras que, se não têm meios suficientes, os vão arranjar, comprando-os, ou alugando-os, ou até arranjando meios alternativos?
O “respeitinho” continua a ser muito “bonito”…
No Brasil e nos Estados Unidos da América, por exemplo, jornalistas há que confrontam os respectivos presidentes com as falsidades que estejam a proferir, e são por isso insultados, ameaçados e até agredidos, mas nem por isso deixam de questionar. Entre nós, porém, nem uma só pergunta verdadeiramente incómoda (e também verdadeiramente não preparada nem revelada previamente) é feita aos responsáveis políticos e aos dirigentes de topo da Administração Pública… O “respeitinho”, tão ensinado nos tempos da Ditadura, é afinal tão importante nos tempos de hoje!…
Os profissionais de Saúde, as respectivas Ordens e associações sindicais, em particular as dos médicos e dos enfermeiros, as associações de utentes, e agora também os administradores hospitalares, todos denunciam a evidência, com que diariamente se confrontam, da grave falta de preparação e planeamento, designadamente ao nível das instalações e equipamentos hospitalares, para uma situação, já em curso, de aumento do número de infectados (mesmo que a sua gravidade seja, para já, atenuada pela menor idade média dos novos infectados).
Mas, com a maior desfaçatez, os responsáveis governamentais, as autoridades de Saúde e os seus apoiantes desvalorizam por completo tais denúncias, classificando-as de “propaganda” ou de “empolamento” e, assim, os lancinantes apelos lançados por quem lá trabalha e conhece bem a realidade quotidiana, por exemplo, do Hospital Amadora/Sintra e do Hospital Beatriz Ângelo, de Loures, vão sendo ignorados…
Dedicação e empenho não se pagam (apenas) com “Obrigado”!
Ao mesmo tempo que se mantém o acentuado défice de atendimento e tratamento dos doentes não-Covid-19 – o que é absolutamente dramático para os doentes crónicos e para aqueles que sofrem de patologias mais graves –, vão sendo cada vez mais visíveis as marcadas fragilidades do SNS causadas por décadas de políticas que conduziram à sua desarticulação e prático aniquilamento. E vai-se tornando mais evidente que essas mesmas fragilidades só puderam ser atenuadas e até disfarçadas por força do enorme, dedicado e até heroico esforço dos profissionais de Saúde.
Mas o verdadeiro e sincero reconhecimento desse esforço tem, necessariamente, de passar pela valorização das suas carreiras e pela actualização do seu miserável estatuto remuneratório. E, todavia, para eles, aquilo que Primeiro-Ministro, Ministros e Presidente da República tiveram para oferecer foi – como vimos numa patética cerimónia pública – o “prémio”, ou seja, o presente envenenado da realização em Portugal da Champions League… cujos intervenientes o Governo achou por bem isentar do pagamento de impostos!!
A gritante falta de planeamento
A situação na Grande Lisboa é de tal modo preocupante que o próprio Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e da Área Metropolitana de Lisboa, Fernando Medina, apercebendo-se do risco do naufrágio, logo tratou de saltar fora do barco, proclamando, no seu habitual comentário televisivo da segunda-feira passada, que “as chefias (das autoridades de Saúde) falharam” no combate à pandemia, sem explicar o que fez ele então perante a inépcia de tais chefias e como se o chefe máximo da maior autarquia do país não fosse ele próprio!
Então e só agora é que Medina e Companhia descobriram as persistentes trapalhadas da Directora-Geral da Saúde que, no espaço de horas, diz uma coisa e logo depois o seu contrário e, ridículo dos ridículos, nem sequer sabe quando é a noite de São João…? E, também por isso, esta atitude de Medina não tresanda afinal a rato fugindo desesperadamente do barco que se afunda?
Situação similar é denunciada no sector da Educação, salientando professores e seus sindicatos, pais e respectivas associações e já também directores, que nada está a ser preparado a tempo e em termos adequados para o início do próximo ano lectivo, já em Setembro, nomeadamente no que respeita à definição e organização dos espaços, como as salas de aulas, e dos professores necessários para assegurarem o funcionamento das respectivas escolas em condições de segurança sanitária.
Uma lista interminável…
E esta deplorável lista podia continuar, nomeadamente referindo-se o escândalo da (continuação da) gestão do Novo Banco, com os pornográficos salários e prémios (premiando o quê, afinal?) dos seus administradores, os sucessivos prejuízos acumulados, os mais que suspeitos negócios de venda a preço de saldo de imóveis que supostamente garantiam créditos e o contínuo e até arrogante sugar de dinheiros públicos. Com os nossos governantes a sustentarem que tudo isto é normal e não passa do “cumprimento das obrigações da República”.
E poderá também passar pela mal contada história da pretensa “reversão da privatização” da TAP, em 2017, cozinhada por António Costa e o seu dilecto amigo, Diogo Lacerda Machado (já responsável pelo buraco financeiro de 500 milhões de euros para a TAP que foi a compra por esta da VEM, a empresa de manutenção da Varig) e que, como agora bem se vê, se traduziu em o Estado, embora tendo passado a deter 50% do capital da empresa, nela não mandar rigorosamente nada, já que a gestão pertence exclusivamente aos privados (a Gateway, de Neeleman e do seu testa-de-ferro português Pedrosa, com apenas 45%), cabendo ainda por cima ao mesmo Estado a responsabilidade por elevadíssimos encargos financeiros.
E a vergonha desta “solução” é tal que, com “ajuda” ou empréstimo de 1,2 milhões de euros (que os privados já disseram que não irão reembolsar no fixado prazo de 6 meses), ou com nacionalização, ou com outro desfecho qualquer, que, aliás, será sempre ditado pela Comissão Europeia, os responsáveis do principal accionista (precisamente, o Estado) bem podem fingir “falar grosso”, mas a verdade é que ainda agora não têm acesso à informação financeira da empresa! E como é que se há-de então chamar a governantes que actuam desta forma?
Por último, uma questão tão relevante quanto igualmente esquecida e enterrada. Nos termos da Lei Fundamental do nosso país, a Constituição da República Portuguesa[2], fora do estado de sítio ou do estado de emergência – onde, convém recordar, já não nos encontramos – não pode haver suspensão de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E as meras (estritamente consideradas necessárias e adequadas) compressões ou restrições, muito em particular as de caracter mais amplo e de maior extensão e duração, constituem matéria que é da reserva relativa de competência da Assembleia da República[3]. Ou seja, só podem ser estabelecidas por lei, e lei da própria Assembleia da República, ou então por decreto-lei do governo, mas desde que este esteja munido de uma autorização legislativa daquela.
Significa tudo isto que todas as restrições de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que o governo do Sr. Costa tem andado a decretar desde o fim do estado de emergência através de simples decretos-leis ou até de meras Resoluções do Conselho de Ministros são, e de forma irremediável, organicamente inconstitucionais, e os Tribunais, tal como a própria Administração Pública, têm, não o direito, mas sim o estrito dever, de as desaplicar.
Todavia, ninguém, e antes de mais do próprio sistema de Justiça, suscita esta questão, relevantíssima, e que não é só jurídico-constitucional, mas também, para já não dizer sobretudo, política e democrática. Onde pára, por exemplo, o Ministério Público, que, para outros efeitos e quando pensa que lhe convém, sempre gosta de invocar que tem como sua competência “defender a legalidade democrática, nos termos da Constituição”[4]? E onde está também a Ordem dos Advogados, a quem, nos termos dos seus próprios Estatutos, incumbe “defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”[5]? Emudeceram de vez?…
Será que ninguém descortina a patente inconstitucionalidade desta actuação do governo? Claro que os próprios governantes a veem, mas preferem fazer de nós tolos e levar-nos a aceitar o abuso como o “novo normal”. A questão é que esse abuso serve sobretudo de “balão de ensaio” e, logo, para – quando a verdadeira pandemia económica e social explodir em toda a sua dimensão – justificar as maiores atrocidades, invocando-se precisamente que “isto é normal” e que “já antes se fizera e ninguém levantara qualquer questão”…
Lembremo-nos, por isso, de que, tal como tenho já dito por diversas vezes, os lobos podem vestir peles de cordeiro, podem até perder os dentes, mas nunca por nunca perdem os intentos!…
António Garcia Pereira
[1] Philip Fortuna, médico intensivista do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central que desde Março trata doentes com Covid-19 afirmou claramente, em entrevista recente ao Diário de Notícias: “Investimento nos cuidados intensivos tem de avançar já, senão hospitais voltam a parar”.
[2] Artº 19º, nº 1.
[3] Artºs 18º, nº 2 e nº 3 e 165º, nº 1, al. b), ambos da Constituição da República Portuguesa.
[4] Artº 1º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 47/86, de 15/10.
[5] Artº 3º, al. a), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9/9.
Brilhante, como sempre. Obrigada pela voz dissonante e crítica.