“806 400 são o número de segundos que o dia tem, e numa fracção de segundo tudo pode acontecer”.
Quem o afirmou, Caro(a) Leitor(a), foi o narrador da série ”O nosso mundo”, documentário sobre a vida selvagem, que foi transmitido na SIC, no dia 28 de Fevereiro de 2015.
No “mundo selvagem”, que também é o nosso mundo, numa fracção de segundo, a “Mantis religiosa”, vulgo louva-a-deus, devora a sua presa, o leão caça, a serpente envenena, a minhoca finalmente se metamorfoseou!
Amanhã, 29 de Março de 2015, um dia após a publicação deste texto, o vigésimo sétimo, fará um ano que estou preso preventivamente!
Um ano! 12 meses, 52 semanas, 365 dias, 8 760 horas, 525 600 minutos, 3 153 6000 segundos!
E louvemos a Deus pelo facto de anos bissextos somente ocorrerem de quatro em quatro anos, 2014 não ter sido bissexto, sendo o próximo em 2016!
3 153 6000 segundos! Numa fracção de segundo tudo pode acontecer! E assim foi:
No segundo seguinte, a 14 de Maio de 2014, nasceu o João de Sousa, jr. escrevi no meu moleskine o seguinte: “Nasceu, 3,715, nasceu o meu João Pedro Moreira Pereira Sebastião de Sousa! Eram 11h40 quando o chefe, o mesmo que me recebeu no primeiro dia, veio dar-me a notícia. Nasceu o meu filho homem. O meu júnior. “Annuntio vobis, gaudium magnum: temos herdeiro! E no mais inóspito dos lugares fez-se luz! Ao quadragésimo sétimo dia. Évora, 14 de Maio de 2014.
Lamentavelmente muito contra sua vontade. O recluso: João de Sousa.”
Curioso. Em 3 153 6000 segundos escolher o mais agradável, o mais belo, com tantos “segundos maus”!
Daniel Kahneman alertou para o facto das nossas vidas serem representadas, por nós, por fatias de tempo prototípicas e não por uma sequência de fatias de tempo. Negligenciamos a duração do tempo, da experiência, e relevamos, recordando, somente o pico emocional e a experiência presente, final.
Existe claramente um “eu da experiência” que sofre desmesuradamente, que de acordo com a personalidade do indivíduo vê tudo negro, ou pelo contrário, durante o episódio penoso sorri e consegue ver tudo em perspectiva. Depois existe o “eu da memória”, aquele que neste momento encarno, e que somente recupera o muito bom ou o muito mau! Aquilo que sentimos, vestindo a pele do “eu da experiência”, nunca é invocado como de facto vivemos, é o resultado do que ficou, mais o momento presente e as suas circunstâncias. Mas eu tomei notas!
A prisão.
Comida, cama e roupa lavada, tudo de graça. Esqueçam! É mito.
Está a decorrer uma greve dos guardas prisionais, logo não se lava a roupa – durante uma, duas ou três semanas, a cama e o seu colchão é um “resort” de luxo para os ácaros e as pulgas do José, a humidade escorre como mel das paredes, o frio é cortante, e quanto à comida, fornecida pela empresa Itau – corre o rumor que são 2,15 € por recluso que gastam diariamente – imaginem por este valor há quanto tempo a “posta de pescada” já passou de prazo para se apresentar castanha! Depois os artigos do bar são mais caros que lá fora, só podemos comprar o que disponibilizam nesse espaço, e as compras que fazemos no exterior estão condicionadas, pela greve, sendo que nos próximos dias vamos passar fome porque não realizam as compras!
“As autoridades gostavam de dizer que nos serviam uma dieta equilibrada; de facto equilibrada – entre o intragável e o impossível de comer”. Nelson Mandela. Será que a Itau também prestava serviço em Robben Island, será que o director desta prisão fazia as “provas” da comida também no tempo em que o “Madiba” estava preso?
Verificando-se, na mesma equação, a inflexibilidade proverbial da burocracia combinada com a estreiteza de espírito, encontramos resultados surpreendentes: o sistema dos 5 minutos para chamadas telefónicas falha, o recluso necessita de contactar o seu advogado, é solicitada autorização para estabelecer contacto com o mesmo, facilidade concedida pelo director. Não pode ser! Cerceia-se um direito constitucional! Siga!
Um recluso sente-se mal, suores frios, arritmia, desfalecimento. Nenhum guarda se aproxima pois não têm formação para prestar primeiros-socorros, e o problema de alguém “falecer nas suas mãos”, é enorme. Solução: Não se pode ter hipoglicémias ou afins, porque senão morres mesmo!
A família e os amigos.
Numa das paredes da minha casa, ou melhor, do “castelo”, estão colocadas quatro pedras, com quatro palavras pintadas por mim, obra do meu sogro, onde se pode ler: Tradição, Honra, Sabedoria, Força. São os quatro pilares da Família.
A Tradição no ano transacto foi ferida, pois o Natal, expressão máxima na minha Casa, dessa mesma Tradição, estava “coxo”, faltava o pai e a cadeira esteve vazia, a Honra, “A Honra é como uma ilha escarpada e sem praias: não se pode voltar a ela depois de se ter de lá saído.” Nicolas Boileau.
Conquanto “tudo isto” eu ainda não abandonei a ilha!
A Sabedoria. Foi muito, mas mesmo muito importante durante este ano, deste lado das grades: “Já eu perdido na obscura multidão, precisei usar mais Sabedoria, mais raciocínio e astúcia para sobreviver do que é necessário para governar durante um século todas as províncias de Espanha”. Pierre Beaumarchais. “As Bodas de Fígaro”
Quanto à Força. O nome dela é Carla Maria De Sousa. Diz-se que por detrás de um grande homem existe sempre uma grande mulher. Existe sempre uma excepção que confirma a regra, essa excepção sou eu: apenas existe uma mulher enorme (não estou a dizer que estás gorda, meu amor!)
Quanto à Força, também os verdadeiros amigos e todos aqueles (um abraço especial para a Lassa!) que assinam a petição insuflam no meu espirito a Força necessária para suportar “tudo isto”. Não se pode nunca duvidar que um pequeno número de cidadãos conscientes e empenhados podem mudar o estado das coisas, o mundo. Sabem porquê? Porque sempre foi a única coisa que o conseguiu.
Durante estes 3 153 6000 segundos do ano de reclusão, as missivas que enviaram-me – amigos, colegas, familiares de vítimas, pessoas que nunca conheci – alimentaram a minha vontade, a minha resistência, a minha Força!
A justiça ou a dialéctica do retardamento.
A 10 de Março de 2015, tenho a seguinte entrada no meu caderno: “Será que a minha acusação vai ser como um “soufflé” que se abateu, após se retirar o mesmo do forno?”
Assim foi. Albert Einstein postulou que “É a teoria que decide aquilo que podemos observar”.
A “teoria” da investigação e consequentemente do Ministério Público era que eu tinha colaborado numa fraude fiscal e realizado branqueamento de capitais, passados 350 dias verificaram que assim não era!
A certeza está em nós, a verdade nos factos! Questiono: que certeza(s) tem ainda o Ministério Público para se opor à decisão de atribuição de pulseira electrónica ao arguido João de Sousa?
A mesma que tinha quando afirmava que o arguido “estava fortemente indiciado da prática de fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais”, não acusando, posteriormente, o mesmo da prática dos mencionados ilícitos? Não o vou fazer, como o outro que aqui está, não vou dizer que tudo isto é uma cabala, uma canzoada de invejosos que não tiveram nunca uma maioria absoluta tão expressiva, vou apenas colocar a hipótese da investigação ter caído num vício lógico-dedutivo que condicionou essa mesma investigação! Que tal? (Basta ler o texto “A minha acusação”, que vão perceber a que me refiro!)
Mas os 3 153 6000 segundos permitiram experimentar outras manifestações da nossa Justiça, a saber:
– “Jornal da Noite”, SIC, 20h35, 25 de Novembro de 2014. A Procuradoria-Geral da República, vai instaurar processo-crime para determinar se foi violado o segredo de justiça no “caso Marquês”.
A 30 de Abril de 2014, um mês depois de ser preso, com provas materiais para apresentar, foi denunciado ao procurador responsável pela investigação do meu processo, Dr. João Davin, a violação do segredo de justiça no inquérito. Faltam 37 dias para fazer um ano que foi denunciado o crime: nada foi feito!
– A 10 de Outubro de 2014, entrepus providência cautelar de suspensão da decisão de “não pagarem o meu ordenado”; a 24 de Fevereiro de 2015 o meu advogado solicitou uma “aceleração de processo”, passados 5 meses e 28 dias: nada foi decidido!
– Aquando da acusação – 13 de Março de 2015 – o Ministério Público afirma: “[…] a gravidade dos factos imputados aos arguidos assim como a moldura penal abstractamente aplicável leva-nos a promover […] prisão preventiva”. O Ministério Público já acusou e decidiu pela manutenção da prisão preventiva, e eu ainda aguardo o recurso da decisão deste mesmo Ministério Público, entregue na Relação, relativamente à manutenção da prisão preventiva decretada em 9 de Janeiro de 2015!
“Vivemos tempos ameaçadores para a liberdade […] pode manter-se suspeitos em prisão preventiva sem culpa formada, até um ano (ou mais quatro meses, havendo instrução) […]”. As palavras são do Miguel Sousa Tavares, “A caminho da sociedade policial”. Primeiro Caderno do Expresso, 21 de Março de 2015. É verdade, sou a “prova viva” disso mesmo!
Creio que tudo se resume a uma falta de “educação científica” que produz uma gritante ausência de cientificidade. Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, em 1887, afirmava que “É um erro capital teorizar antes de se possuir todas as provas. Cria enviesamentos no julgamento.” Se, pelo menos, eles lessem mais e sentissem menos …
O José.
Não vou falar das pulgas, dos ácaros ou mesmo dos carrapatos. Não vou descrever como de manhã os “cristais do sono” (sim, porque um ex-primeiro ministro não tem ramelas!) abundam, apenas quero lamentar o facto de, conquanto experimente os mesmos 9 metros quadrados que a restante população recluída, apesar de agora, já desperto para esta realidade – prisão preventiva – experimentando as mesmas condições (um pouco melhores para ele de facto, mas todos iguais todos diferentes) não se manifestar, não usar da sua influência (palavras do próprio) para expor esta “narrativa”, que de certa forma iria corrigir a autistica legislação que aprovou relativamente à prisão preventiva, aos prazos de investigação, ao normativo das prisões.
– Vamos ser fechados! Maldita greve!
– Isto é a comida!
– Há quanto tempo aguarda a sua acusação?
Mas será que o homem andava distraído enquanto legislava?
Não se faça aproveitamento do título da obra, apenas foquem-se no conteúdo do excerto.
Na obra de Robert Musil, “O homem sem qualidades”, o autor apresenta esta imagem:
“[…] Quatro paredes e uma porta de ferro não são nada de especial quando se pode entrar e sair. Também não há nada de especial numa grade diante de uma janela estranha, e se um catre ou uma mesa de madeira têm o seu lugar fixo, nada a opor. Mas no momento em que não podemos usar tudo isso como queremos, acontece algo de completamente absurdo […]”. E este é o “absurdo socrático”!
Todas as prisões são políticas, todos os processos são políticos, o “homem é um animal político”, já dizia Aristóteles. O que podemos fazer para mudar o que está errado é a questão.
Fazer algo de facto para corrigir, eis o valor!
Todos os reclusos (aqui) em Évora são ignorantes, não são elementos da sociedade diferenciada, conhecedores das leis, executantes das mesmas: já chega de campanha! Ninguém quer ser convencido de nada. Aqui não existem inocentes!
Jack Lang. Francês. Deve conhecer este. No seu livro “Lourenço de Médicis, O Magnífico”, e Lourenço provou com a sua vida ter sido de facto magnífico, escreveu: “[…] Veremos em Maquiavel, o efeito conjugado da prudência natural do político e da rigidez dos temperamentos: «Um homem cuja conduta foi sempre bem sucedida não admitirá, nunca, que deverá agir de outro modo. É daí que vem todas as desigualdades da fortuna: os tempos mudam e nós não queremos mudar» […].
As circunstâncias mudaram. Não se pode cair no ridículo. Estou sempre à espera, que um dia no pátio, parando, olhando os muros altos, profira: “Caro João, quatro meses nos olham do cimo destes muros!”, qual Bonaparte, em 1798, antes da batalha das Pirâmides, no Egipto!
Curiosidades científicas.
Como a imprensa me epitetou, eu sou de facto o “Inspector CSI”, e como tal, não deixei de observar, analisar, registar e pensar vários fenómenos que a prisão ofertou.
1º Qual hospedeira, recebi nos meus 9 metros quadrados, ao longo de um ano, no beliche montado para o efeito, vários indivíduos.
Fiquei sempre na cama de cima porque não são permitidos candeeiros e eu leio muito. Consequência deste facto apurei:
- O gás dos flatos humanos é mais leve que o ar da atmosfera;
- O ser humano é incapaz de ressonar e dar flatos, todos os indivíduos estudados a meio do sono, paravam de ressonar e emitiam o flato. Alguns acordavam devido à violência do flato;
- É um mito pensar que todos os ruídos, expressões, assobios que possamos emitir consigam despertar um indivíduo. O sujeito não acorda! Apenas violentos socos na estrutura metálica do beliche, enquanto se grita, “Vira-te!”, resolve o problema;
- Tanto o director de polícia como o agressor doméstico ressona e apresenta as especificidades anteriormente descritas.
2º Os comprimidos que o estabelecimento prisional prescreve para dormir são alucinogénios.
Certa ocasião, com novo inquilino, que atingia “três dós tenores” a ressonar, debrucei-me sobre a cama deste, pendurado no beliche, e, após acordar o mesmo, pedi:
– Vire-se, se faz favor!
O sujeito, abrindo os olhos, disse:
– Sr. João você tem duas cabeças, e está ao contrário! Estes comprimidos são fortes! – adormecendo de seguida!
3º É impossível organizar “levantamento de rancho” quando a refeição é bacalhau cozido.
Os reclusos mantêm-se controlados através da comida!
Certo dia, consequência das precárias condições de reclusão – comida, água fria, ausência de telefonemas, roupa sem lavagem, etc. – um sentimento de revolta e indignação é transversal a todos. Um dos reclusos é sondado:
– Vamos fazer “levantamento de rancho”, fazes?
– Claro! Isto não são condições, não somos animais! – mais indignado que a própria indignação. Passados minutos, após ter sido visto a observar a ementa semanal do refeitório, dirigindo-se a um grupo de conspiradores, profere o seguinte:
– Não podíamos fazer o “levantamento de rancho” noutro dia? É que hoje é bacalhau cozido!
Conclusão científica: o que são valores como a Honra, Idoneidade, Firmeza, quando comparados com uma barriga vazia?
4º Última conclusão científica da área escatológica: quem defeca num espaço fechado, com 9 metros quadrados, na presença de outrem, não detecta o mau-cheiro das suas fezes!
Um dos sujeitos que partilhou o “aconchego” do meu jazigo, quando chegou, à semelhança dos outros, foram-lhe comunicadas as “regras da casa”, nomeadamente o “drop and flush”, na versão portuguesa, “assim que libertar o prisioneiro, accione o autoclismo”, e sempre com a janela aberta independentemente da temperatura no exterior!
Por três vezes o sujeito não cumpriu a regra capital!
À quarta disse-lhe:
– Oiça lá então o “drop and flush”, e a janela? – perguntei visivelmente incomodado.
– Sr. João, não cheira a nada e está muito frio. Quanto a isso do “dópe” não sei o que é? – enquanto sentado na sanita.
– O autoclismo, homem! Liberte a água, assim que cair! – disse irritado.
– Ah, isso! Desculpe, sr. João, mas o senhor interrompeu-me a meio: ainda está pendurado!
E assim se passaram 365 dias, 3 153 6000 segundos!
Como disse Steve McQueen, no filme “Papillon”, em pleno alto mar, em cima da frágil jangada que o levava, arrastado pela sétima onda, para a liberdade: “Hey, you bastards I’m still here,!”
(*) João de Sousa é ex-inspector da policia judiciária em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora
Publicado originalmente no blog Dos dois lados das grades da autoria de João de Sousa
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