Lugar de fala da série – a minha opinião é só mais uma acha para a fogueira, porque hoje são oito mil milhões de vozes a quererem fazer-se ouvir. Com toda a propriedade, pois se a temos, e temos palco, falemos! Nem todos possuímos as capacidades cognitivas para discorrer sobre tudo, estar visíveis em palco, ou estudos e essas coisas todas necessárias. Alguns são mesmo idiotas como proclamou Umberto Eco. Idiotas com plataformas de expressão. Mas opinar ainda é livre. Andei por aí feita garimpeira de opiniões, da nova altercação, que já ultrapassou a aparição no sapato da nossa senhora de Laboutin e só dura até surgir a próxima.
Fazendo uma declaração de interesse primeiro- adoro Teatro, já escrevi duas peças e sou de uma família com actores. Sei quase nada de Teatro, Encenação, Direcção, etc.
Mas até já escolhi os actores que quero ver representar as minhas peças. Felizmente há um mundo de actores e actrizes de enorme qualidade para representar ambas. Numa deles é imperioso que sejam de cor de pele preta. Porque é a voz delas a falar. Faz todo o sentido que seja um actor ou actriz, trans ou outro, desde que saiba o que faz, que tenha talento, e que me apeteça. Posso obviamente pôr um homem a fazer de mulher e vice versa que tanto se me dá. Este momento está fartinho de acontecer. Desde que o actor saiba o que está a representar.
Quando a produção teatral for ilimitada, o público encher as salas, e as escolas prepararem actores sem ter amanhã, significa que haverá por onde escolher um pouco de tudo. Daí a representatividade ser fundamental.
Esta voz que agora se discute é sobre a falta de representatividade, no palco onde ressoam as pancadas de Molière. As vozes trans.
Invadir o palco é uma violência para quem nele está a representar.
Tal como um dia foi para Rosa Parks sentar-se no banco designado “só para brancos”, e pela desobediência teve de responder. O motorista ficou aborrecido e muito. Complicou-lhe o dia e a vida.
Se Rosa Parks não tivesse desobedecido com um gesto de protesto, nada mudaria nem transtornaria o sistema.
Tal como hoje uma greve de professores transtorna a vida de pais, alunos e professores, mas é sendo transtornado nas nossas vidas que acordamos para a mesma.
Ninguém vai fazer greve de comboios ao domingo. Tem de se protestar quando vai fazer mossa. De preferência na jugular.
Um dia do passado do cinema, actores brancos pintaram a cara de preto para representarem um personagem preto.
Outro dia chegou, e foi a vez de Sidney Poitier finalmente representar um personagem preto, acabando por ser o primeiro vencedor de um Óscar em 1964.
Imaginam se não tivesse havido o protesto/desobediência de Rosa Parks em 1955 contra a segregação racial? Percebem o valor de um protesto? Pergunta retórica.
É a evolução, meus caros Watson´s. A humanidade é representada por uma multiplicidade de fenótipos, desde sempre, precisamos conviver com todas, na vida e imaginem…no palco.
Habituemo-nos pois. Porque não tem sido assim.
Não há transformação se não houver disrupção, desobediências, protestos. E temos de ser como os Mosqueteiros “um por todos e todos por um”. Contra um sistema injusto que não vê toda a gente.
Sejamos então como os poetas – cegos que conseguem abarcar a visão de todos.
Imaginem um escravo a fingir amar ser fustigado. Imaginem uma mulher a fingir um orgasmo.
O escravo vai continuar a ser fustigado e a mulher a não ter orgasmos se não baterem o pé “aqui não se bate” e “aqui fode-se a sério”.
Não há alteração de comportamentos quando pactuamos com situações que nos diminuem e humilham.
Não há evolução nem para quem já beneficia, nem para os que são silenciados. Só falando alto, rompendo a barreira do som.
Por isso, uma plateia inteira dever-se-ia levantar e entender a evolução. Porém nem todos têm as capacidades cognitivas para o fazer. Eu não entendia bem, até ouvir para entender.
É sempre assim. Experimentem.
E já agora, que mal pergunte, eu que só não acharia graça se fosse um bêbado ou um terrorista a interromper uma peça – quem se poderá sentir incomodado com factos profundamente transformadores para as vidas que não são vistas e até são mortas? Tu aí do teu lugar onde nunca te faltou nada, já pensaste no assunto?
Com isto também quero dizer que pessoas trans não apenas têm o mesmo direito à vida que eu, como à mesma profissão, incluindo a de qualquer actor, ou outro. Não apenas por ser trans. Sim porque estudou, tem talento e sabe o que faz. Dêem-lhe a oportunidade.
Eu não posso operar porque não estudei para ser cirurgiã. Mas se tivesse estudado, a minha candidatura, a minha pessoa, devia ser ouvida, vista e apreciada.
ps1- o actor que interpretava o papel, continua na peça a interpretar três personagens, não foi despedido. Na minha opinião deve aplaudir a interrupção da peça, por ser um protesto cheio de valor, ou um gesto mediático para chamar a atenção sobre um assunto que beneficia a espécie a que um dia se convencionou chamar dona humanidade, na qual ninguém é superior a ninguém, já dizia La Palisse.
ps2 -vou torcer para não haver qualquer divisão entre actores e activistas, porque estão no mesmo lado, o da vulnerabilidade. O elo mais fraco, que mal recebe para a sobrevivência – o da cultura. —
Anabela Ferreira
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