Portugal voltou a ser um País muito empenhado na discussão de questões laterais ou secundárias (do Mundial de futebol ao último escândalo duma qualquer estrela de televisão), mas num estranho e verdadeiramente comatoso estado relativamente àquilo que deveria ser essencial para todos nós.
Do ponto de vista das condições de vida, com a inflação dos preços, em particular dos produtos de primeira necessidade, e a diminuição dos (já de si bastante baixos) salários reais[1], a pobreza e exclusão em Portugal atingem já mais de 1/5 da população portuguesa[2]. Com o novo Acordo de Concertação Social, pomposamente denominado “de rendimentos, salários e competitividade”, a política de aumentos salariais muito abaixo da inflação, consagrada no Orçamento de Estado para 2023 para o sector público, é assim estendida, para o mesmo ano e seguintes, também ao sector privado, com consequências sociais absolutamente desastrosas. E, não obstante a enorme gravidade desta situação, quase ninguém diz nada…
Na Habitação, com a violenta elevação das taxas de juros e o consequente aumento das prestações ao banco e com o fim – que o Governo se prepara para fazer aprovar – da suspensão dos despejos por falta ou atraso no pagamento de rendas, são milhares de famílias que estão à beira de serem postas na rua. E, contudo, praticamente nenhuma voz se ergue com firmeza contra esta verdadeira hecatombe social…
Com a restauração, pela Comissão Europeia, dos limites do défice e da dívida já para os orçamentos de cada país da U.E. relativos a 2024 e com a total ausência de qualquer soberania nacional em matéria de política económica, orçamental, fiscal ou monetária (pois tudo é decidido em Bruxelas) são os orçamentos e as políticas da “austeridade” que irão regressar em força, com o consequente agravamento da situação de quem já hoje mal (sobre)vive. Mas ninguém parecer querer discutir estas questões, designadamente a de saber se, com a pertença (leia-se anexão) de Portugal à União Europeia, e em particular à Zona Euro, é possível ter, seja qual for o Governo do momento, políticas diferentes das ditadas pelos eurocratas…
No campo do Trabalho, a situação dos trabalhadores portugueses e das suas famílias não cessa de se agravar devido à lógica e política – reiterada e firmemente asseguradas pelo Governo de António Costa – dos baixos salários e dos poucos direitos e com a manutenção de algumas das mais gravosas medidas das chamadas “reformas laborais” da tróica, como a facilitação da contratação precária, os valores irrisórios das indemnizações por despedimento[3], o corte dos acréscimos remuneratórios do trabalho extraordinário e a caducidade das convenções colectivas.
Enquanto os trabalhadores portugueses (mesmo os que têm um emprego) não têm pão para pôr na mesa, os grandes interesses económico-financeiros (como os Bancos e as multinacionais da energia, dos combustíveis e da distribuição) acumulam lucros gigantescos[4], pagam impostos ridículos, sobretudo se comparados com os que incidem sobre os rendimentos do Trabalho, e impõem despedimentos sob a capa de “reestruturações”. Porém, de novo, quase não se lê uma linha ou se escuta uma palavra de verdadeira denúncia deste escândalo…
Sob a tão pomposa quanto hipócrita capa da “Agenda para o Trabalho digno”, o Governo de Costa, perante a pressão dos patrões e das grandes multinacionais, já aceitou acabar com a indemnização por caducidade na maior parte dos contratos a prazo e não reconhecer o vínculo de trabalho relativamente às plataformas digitais quanto aos trabalhadores que nelas operam sob o disfarce de “empresários em nome individual”, ao mesmo tempo que fecha os olhos às velhas, novas e crescentes áreas de trabalho escravo, dos trabalhadores agrícolas da chamada “agricultura intensiva” do Alentejo (de Odemira a Beja) aos mariscadores ilegais do estuário do Tejo. Tudo isto enquanto os jovens, na sua esmagadora maioria[5], se conseguem um emprego, ele é precário e mal pago, não conseguem aceder ao crédito bancário nem constituir família e a população portuguesa não cessa de envelhecer drasticamente[6]. Entretanto, o direito à greve, já tão violentado com as requisições civis consecutivamente decretadas pelo Governo de Costa (de enfermeiros, professores, estivadores, motoristas de matérias perigosas) foi convertido no alvo principal das investidas patronais e governamentais, como se está agora a ver com as greves da TAP (convocada pelo SNPVAC) e dos professores (convocada pelo STOP). Mas, de novo, nada disto parece constituir, mesmo para as principais organizações sindicais e para as organizações políticas que se dizem defensoras dos trabalhadores, motivo de especial preocupação ou sequer atenção…
Em matéria de corrupção, temos situações – sempre muito ocultadas, mas a virem cada vez mais à superfície – de absoluta promiscuidade entre os interesses das grandes multinacionais farmacêuticas e “líderes de opinião” na Saúde Pública e na definição das medidas a adoptar. Temos ainda sucessivos casos de governantes envolvidos nas negociatas mais escabrosas e nos tachos mais escandalosos (do braço-direito do Primeiro-ministro envolvido no caso do inexistente Pavilhão de 300.000€, em Caminha, ao jovem recém-licenciado e logo contratado como assessor a ganhar 4.000€ mensais). Temos ainda a situação dos aviões Falcon, com um custo de 70.000€ por viagem, requisitados para levarem os três principais representantes do Estado português a verem a bola no Quatar. Tudo isto repugnando à mais elementar Ética, mas com a gente do Poder, e o Chefe do Executivo à cabeça, a defender e a aguentar até ao limite o indefensável, e sem que tal postura, de novo, suscite grande repulsa…
No tocante às Polícias, o Ministério da Administração Interna e a respectiva Inspecção-Geral nunca conseguiram ver – apesar de todas as denúncias e chamadas de atenção, inclusive de organizações internacionais e até de elementos da própria PSP, como o agente Manuel Morais[7] – as centenas de elementos da mesma PSP e da GNR com posições e condutas retintamente xenófobas e racistas. E quando tal realidade foi finalmente revelada por uma investigação, não do Ministério Público, mas de uma equipe de jornalistas, pelos vistos ninguém quis apurar responsabilidades por esta longa, cúmplice e criminosa inacção…
Na Saúde, um idoso morre ao fim de duas horas de espera pela ambulância do INEM, Hospitais fecham serviços, inclusive de urgência e, mesmo com eles abertos, recusam-se doentes, pacientes esperam 12, 14, 16 e mais horas por serem atendidos e ao fim e ao cabo ninguém é responsável por esta permanente e escandalosa denegação dum direito fundamental como é o direito à saúde. E, à parte algumas posições de natureza essencialmente corporativa e uma ou outra reacção de grupos de cidadãos, é quase como se nada se passasse e assim Primeiro-ministro e ministro da Saúde podem fazer belas promessas e tranquilamente passar entre os pingos da chuva…
A Justiça continua escandalosamente cara para o comum dos cidadãos e permanece um burocrático e kafkiano labirinto, não prestando contas a ninguém do que faz ou deixa de fazer, mas sempre pronta a auto-justificar-se, confundindo independência com roda livre. E onde, e por isso mesmo, sempre em nome do combate a um pretenso (e realmente inexistente) “excesso de garantismo”, todas as reformas se reconduzem à limitação dos direitos dos cidadãos e ao consequente aumento das margens de arbítrio. E onde mais depressa se retiram os filhos aos progenitores com base em relatórios sociais falsos ou se manda para a prisão um sem-abrigo que furtou uma embalagem de comida num hipermercado do que um abusador sexual[8] ou um autor de violência doméstica[9]. Sempre sem que se consiga debater até ao fim as reais razões para semelhantes injustiças (desde logo as relativas à selecção, formação, avaliação, promoção e disciplina dos magistrados), ou as medidas necessárias para as combater e evitar e também para responsabilizar efectivamente os seus autores…
Apesar de já há muito não estarmos em estado de emergência ou sequer de calamidade, e apesar de toda a legislação covid-19 estar já formalmente revogada desde Setembro último[10], inúmeros serviços públicos, da Segurança Social às Finanças, continuam a não estar abertos ao público e a recusar o atendimento presencial a que todo o cidadão tem constitucional direito. Por outro lado, o Tribunal Constitucional já proferiu pelo menos 23 acórdãos declarando a inconstitucionalidade de várias das restrições de direitos decretadas pelo Governo durante a pandemia, claramente contra a Lei Fundamental do País, mas sob o pretexto proto-fascista de que os fins justificariam os meios. E nem uma palavra de auto-crítica se ouviu do Governo e do seu Grande Chefe, nem se ergueu qualquer clamor, ou sequer um simples murmúrio, para os confrontar e responsabilizar por estes desmandos anti-cívicos e anti-constitucionais, salvo raríssimas e honrosíssimas excepções como as do Jornal online “Página Um”[11], a Plataforma Cívica “Cidadania XXI” e a Associação “ProPública”, logo acusados, em particular o primeiro, de objectivos inconfessáveis…
Tudo isto mostra para que serviram afinal as medidas tomadas sob os subterfúgios do combate à pandemia da covid-19 (ao abrigo de cujas políticas se discriminaram, perseguiram, silenciaram, difamaram e até se prenderam pessoas, simplesmente por terem ideias diferentes das maioritárias) e da guerra na Ucrânia (a pretexto da qual até já se defende e pratica a proibição das obras de músicos, escritores, bailarinos, artistas e desportistas russos, pela simples e extraordinária “razão” da sua nacionalidade[12]…): tratou-se de impor a todo o transe, e de a ela habituar (de novo) as pessoas, a velha política do “comer, calar e obedecer!”. Em nome do “novo (a)normal”, procura-se, com muito circo e pouco pão, anestesiar e manietar um Povo inteiro e convencê-lo de que “isto é assim porque tem de ser assim” e de que “não há alternativa”…
Mas a verdade é que, para sermos donos dos nossos próprios destinos, e não escravos de vontades e interesses alheios, há que despertar deste autêntico estado de coma, o qual nos foi, e é, induzido por essas mesmas vontades e interesses e que nos procura impedir de sermos cidadãos de corpo inteiro e de coluna vertebral direita! E o primeiro passo desse caminho é precisamente o de não nos calarmos nunca, mas antes reclamarmos, contestarmos, protestarmos e lutarmos contra tudo o que é injusto e incorrecto, venha de quem vier e com que roupagem ou “justificação” vier!
Desde há muito tempo que a luta pelas liberdades cívicas mais elementares, como a liberdade de expressão, não assumia um relevo tão importante nas nossas vidas.
Assumamos, pois, e desde já, a elevada postura cívica de quem sabe pensar e decidir pela própria cabeça, não aceitando esta repugnante tentativa de banalizar o mal, o errado e o injusto e lembrando-nos, de novo, de que “não há machado que corte a raiz ao pensamento!”.
António Garcia Pereira
[1] Diminuição que, em 2022, terá sido da ordem dos 10%.
[2] Mais exactamente 21,7%, sendo de 5,7% o rácio entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos.
[3] 12 dias de vencimento-base por cada ano de antiguidade.
[4] Os lucros dos quatro maiores bancos privados (BPI, BCP, Santander e Novo Banco) atingiram, até Setembro deste ano, 1.1996,6 milhões de euros. A EDP teve 518 milhões, a GALP 608 milhões, o Pingo Doce 419 milhões e a Sonae 158 milhões!
[5] Pelo menos 73% dos jovens só consegue contratos precários (a termo).
[6] O índice de envelhecimento – número de idosos por cada 100 jovens – aumentou em Portugal de 128 em 2011 para 182 em 2021!
[7] Manuel Morais foi punido com 10 dias de suspensão por ter feito tais denúncias.
[8] Entre 22/01/2022 e 15/11/22 foram assassinadas em Portugal 28 mulheres, 55% das quais eram vítimas de violência doméstica e uma parte significativa tinha, em vão, apresentado queixa-crime contra o agressor.
[9] O Ministério Público arquivou o processo de um homem que manteve relações sexuais com uma mulher com debilidades cognitivas, por alegadamente não ter conseguido averiguar se a mulher era ou não capaz de se auto-determinar!?
[10] Dec-Lei nº 66-A/2022, de 30/9.
[11] Dirigido pelo Jornalista Pedro Almeida Vieira, que tem sido objecto de uma violenta e caluniosa campanha de cerco e aniquilamento, com a prestimosa colaboração de diversos órgãos de comunicação social, ditos de referência.
[12] Não só na Ucrânia, onde se fizeram queimas públicas de livros de autores russos numa cena sinistramente semelhante à de outros tempos! Em Itália, por exemplo, a famosa Universidade Milano-Bicocca proibiu um curso sobre Dostoievski e no País de Gales a Orquestra Sinfónica de Cardiff excluiu do seu programa obras de Tchaikovsky.
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