Ao longo dos dois últimos séculos, a pequena burguesia e os diversos partidos políticos que a representam foram sempre desempenhando (muito em particular em períodos de aproximação duma grave crise política, económica ou social) o papel de abrirem o caminho para que, uma vez chegado o momento considerado mais adequado, o grande capital e os seus representantes pudessem impor toda a sorte de medidas convenientes à defesa dos seus interesses, por mais anti-populares e violentas que elas se mostrassem.
Como classe intermédia e hesitante que é, essa pequena burguesia, especialmente sob as capas da “democracia”, do “socialismo” e até do “comunismo”, encosta-se às forças do campo da Revolução nos momentos históricos de ascenso desta, mas logo à primeira curva ou contra-curva corre a lançar-se nos braços da grande burguesia, não hesitando em “mostrar serviço”, tratando de seguir as políticas e aprovar as medidas de que os grandes interesses económicos e financeiros irão necessitar no futuro mais ou menos próximo, mas que agora ainda não têm força suficiente para defender e aplicar abertamente.
Portugal, país pobre, endividado e envelhecido
Portugal é hoje, mercê da “divisão de funções” imposta pelos grandes interesses imperialistas europeus, um país de serviços, quase todos de baixa incorporação tecnológica e de limitada qualidade[1], e que, com a entrada na C.E.E. e o chamado processo de integração europeia, alienou a tais interesses imperialistas os seus principais recursos e sectores[2]. É, por isso, um país condenado a importar a maior parte daquilo de que necessita para funcionar e, logo, um país permanentemente endividado.
Um país em que tudo, mas mesmo tudo, o que é fundamental, desde a política económica à agrícola, passando pela de transportes, pela orçamental, pela fiscal, pela aduaneira ou pelas de Defesa ou de política externa, é decidido em Bruxelas, onde é a palavra dos eurocratas que manda e impera sobre todas as matérias, desde o “nosso” orçamento de Estado até, por exemplo, à simples nomeação dos administradores de um banco como a Caixa Geral de Depósitos.
Portugal é, também e por isso mesmo, um país cujo modelo de relações de trabalho assenta na lógica da exploração, extensiva e intensiva, de trabalho pouco qualificado, frequentemente precário, com jornadas longas, muito mal pago e com poucos ou nenhuns direitos, até porque a esses direitos que ainda restam formalmente consagrados são depois retiradas as condições mínimas da sua exequibilidade. Isto com a real inacção das entidades inspectivas, como a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), e um sistema de elevadíssimas custas judiciais, efectivamente inibidor do acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho, com uma crescente predominância de toda a sorte de concepções e preconceitos pró-patronais.
Assim, pelas mãos dos sucessivos governos, quer os do PSD/CDS, quer os do PS, inclusive os mantidos no poder pelo apoio do BE e do PCP, o nosso país é hoje um verdadeiro paraíso para a exploração e mesmo para a fraude laboral,em que o sector da chamada economia informal (ou do trabalho não declarado) representa 25% do PIB, em que existem mais de 730 mil trabalhadores disfarçados de “empregados autónomos” ou de “empresários em nome individual”, em que 25,6% dos trabalhadores por conta de outrem ganham apenas o salário mínimo nacional e em que 11% dos trabalhadores com contratos efectivos vivem abaixo do limiar mínimo de pobreza.
Em 2019[3], os trabalhadores com contratos a prazo representavam 20,8% do total dos assalariados e, mesmo com a pandemia (em que os trabalhadores contratados a prazo foram os primeiros a ser lançados, e em massa, no desemprego, como sucedeu na TAP), em 2020, o nosso país tinha uma das maiores percentagens (17,8%) de trabalhadores a prazo de toda a União Europeia (cuja média era então de 13,4%). Mais! A remuneração-base/hora média dos contratados a prazo é inferior em 28% à (já de si bastante baixa) dos trabalhadores permanentes[4], significando assim esta sobre-utilização dos contratos a prazo um ganho para os patrões de mais de 3.300 milhões de euros anuais.
Não admira, deste modo, que Portugal seja também um país absolutamente madrasto para os velhos, atirados para um canto, ou para um dos inúmeros lares ilegais, como se de trapos se tratassem, “explicando-se” a escolha dos mais idosos para serem abrangidos por despedimentos colectivos, com o “argumento”, por exemplo, de que, por mais capazes e activos que se mantenham, têm de compreender que “o seu ciclo de vida profissional acabou” e que há que “refrescar os quadros”.
Portugal é também cada vez mais hostil para os jovens, cujos novos contratos são em mais de 80% contratos precários e que estão a ser de novo empurrados para a situação de não poderem constituir família e de terem de emigrar. E por tudo isto também não espanta que sejamos um país drasticamente envelhecido, sendo mesmo o terceiro país mais velho do mundo[5], com 23,4% da população com mais de 65 anos, e existindo hoje, por cada 100 jovens, 182 idosos (e não 167, como inicialmente se pensava).
Há fome em Portugal!
Por outro lado, a pandemia da covid-19 e, ainda mais do que ela, as medidas adoptadas como sendo de combate à mesma, significaram que um em cada quatro portugueses vai fechar este ano com mais dívidas do que as que já tinha no muito difícil ano de 2020[6]. E a 15/12, o próprio Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou que, com a covid-19, o rendimento de 50% das famílias trabalhadoras mais pobres e menos qualificadas baixou, e de forma significativa.
Mas os nossos governantes, que invocam com estardalhaço a alegada diminuição do endividamento público, logo se esquecem de referir o marcado aumento do endividamento do sector não financeiro[7].
Somos, assim, um país pobre, endividado, dependente, submetido, envelhecido, sem perspectivas de futuro, apesar de, com a nossa localização geo-estratégica, os nossos mares, a nossa extensíssima Zona Económica Exclusiva, o nosso clima, os nossos recursos naturais e a nossa capacidade de trabalho, termos todas as condições de partida – não fora a sua apropriação por uma pequena minoria, que não tem cessado de engordar, apesar da pandemia, e mesmo na pandemia – para sermos um país livre, progressivo, desenvolvido e auto-suficiente.
Ora, certo é que se aproxima uma gigantesca tempestade económica, social e política. Há cerca de 230 mil famílias em risco de perderem a sua casa por não conseguirem pagar as respectivas rendas, desde logo à banca. As mais diversas instituições de solidariedade social[8], bem como linhas de apoio[9], alertam para o alarmante crescimento do número de pessoas desesperadas e com fome. Em contrapartida, as grandes Sociedades de Advogados especializadas nessas matérias têm já “encomendas” de tratamento jurídico de milhares e milhares de despedimentos colectivos mal cessem as medidas provisórias, estimando-se que o número real de desempregados rapidamente possa ultrapassar o milhão.
Segundo o próprio Eurostat, 21,9% das crianças portuguesas estão em risco de pobreza ou de exclusão social e Portugal é um dos países onde há maior relação entre pobreza infantil e escassez de investimentos em prestações familiares.
E, já agora, também não nos iludamos com a propaganda oficial acerca dos 15 mil milhões de euros do pomposamente chamado PRR – Plano de Recuperação e Resiliência. É que já se sabe que tais milhões não só não terão impacto algum em 66,6% das empresas, mas sobretudo já foram abocanhados pelos maiores grupos empresariais do país[10].
As medidas do grande capital para a crise
Torna-se assim cada vez mais claro, com todas estas condições, que uma tal crise está cada vez mais próxima de eclodir. E a “solução” do grande capital para a mesma, antes que ela ameace e ponha em causa a própria subsistência do sistema capitalista, é a de sempre: abafar pela força todo e qualquer movimento de revolta e fazer pagar os respectivos efeitos económicos e sociais precisamente por quem vive do trabalho e que, de seu, tem apenas a sua própria força de trabalho. E para isso se revela então de uma enorme importância que todos os principais instrumentos de repressão e de exploração hajam já sido não só criados como experimentados e até aperfeiçoados, precisamente pelos tais “amigos” dos trabalhadores…
Assim, será necessário, antes de mais, um fundamento teórico, um “cimento ideológico” para toda essa acção, no sentido de que os fins justificam todos os meios, de que “em tempo de incêndios (leia-se: de crise) não se pode permitir que se critiquem e ataquem os bombeiros” (leia-se: os governantes), de que o actual estado de coisas é o “novo normal” relativamente ao qual “não há alternativa” e por isso nos temos de habituar, conformar e simplesmente obedecer – mas precisamente essa é já hoje a ideologia com que, como todos sentimos, a sociedade portuguesa é diariamente submergida, sufocada e narcotizada!
Será preciso também um governo que possa actuar sem “empecilhos” ou “forças de bloqueio” (tais como o Parlamento e as suas atribuições e competências, ou mesmo os preceitos e os princípios da Constituição), mas essa é a “normalidade” já hoje imposta, com o governo a limitar, restringir e a inutilizar impunemente direitos e liberdades fundamentais por meio de diplomas governamentais ou até de meros actos administrativos, como Resoluções do Conselho de Ministros, sem que ninguém, a começar pelo Tribunal Constitucional, levante qualquer obstáculo ou suscite qualquer questão acerca dessa forma de actuar…
Irão decerto ser também necessárias forças policiais devidamente treinadas em operações musculadas sobre os alvos mais frágeis e com o cultivo do sentimento de impunidade pelos maiores abusos, sempre cometidos em nome (como se viu recentemente em Odemira) da “necessidade” de “meter na ordem” os prevaricadores e os desordeiros, acompanhadas de serviços de informações que, em autêntica roda livre, recolham, tratem e usem dados e informações pessoais, profissionais, cívicos ou políticos de cidadãos tidos por “perigosos” – mas isso é, afinal, aquilo que, em nome da segurança, da modernidade e até do pragmatismo, já hoje se passa.
Perante mais do que prováveis greves e lutas sociais, nomeadamente em protesto contra a privação de direitos e liberdades, os baixos salários ou os despedimentos, importa lançar mão – como o Executivo de Costa já por diversas vezes lançou – de mecanismos repressivos como o da requisição civil para com eles eficazmente acabar com o direito à greve e perseguir os grevistas[11]!
E (claro!) para manter os trabalhadores permanentemente ajoelhados e agrilhoados ao medo de perderem o emprego, a sua fonte de subsistência, o que importará então é manter e continuar – como os governos de Costa sempre fizeram questão, para não perturbarem os patrões – as regras legais do tempo da Troica, como as da facilitação e embaratecimento dos contratos precários e dos despedimentos!
Mas para conseguir manter a generalidade do povo entre o aterrorizado, o manipulado e o enganado, é também imprescindível uma Comunicação Social suficientemente “cooperante”, que privilegie as chamadas “fontes institucionais” (ou seja, os gabinetes ministeriais), que silencie tudo quanto seja voz dissonante ou discordante e, apresentando-as como dogmas indiscutíveis, apenas passe as posições e as “informações” do pensamento dominante. Mas tal é precisamente aquilo que já actualmente se passa com grande parte da imprensa portuguesa.
É, assim, fácil de ver que todos esses instrumentos de dominação e de poder já foram criados e até largamente experimentados precisamente por aqueles que se dizem de “esquerda” e “amigos dos trabalhadores” e que, por isso mesmo, maior facilidade tiveram em fazê-los passar por coisas boas e positivas. E tudo isto de tal modo que um governo aberta e claramente reaccionário, inclusive da direita mais ultra-montana e caceteira, que chegue, entretanto, ao poder, terá já à sua disposição todo o arsenal de medidas repressivas de que precisa para cair a pés juntos em cima do movimento operário e popular, bem como de todos os verdadeiros democratas, de nada valendo então os gritos ululantes daqueles que escancaram aos algozes esse mesmo caminho.
Não precisamos de “salvadores da Pátria”!
Faltava apenas um ponto de todo este processo: um líder messiânico, ou seja, um arrivista suficientemente promovido junto da opinião pública, o qual, proclamando-se “acima” das classes e dos políticos, portador de uma alegada honradez moral a toda a prova e de uma firme postura anti-corrupção e anti-anarquia, capaz de tudo sacrificar pela “pátria” e pelo “bem comum”, possa então assumir esse papel.
Mas até esse requisito está já a ser preenchido por António Costa e o seu governo e pela Comunicação Social sua aliada, ao conseguirem impor, à segunda tentativa, a designação do Vice-Almirante Gouveia e Melo para Chefe do Estado Maior da Armada – CEMA (mesmo atropelando, de forma mais que juridicamente discutível e eticamente reprovável, até por não haver qualquer reparo à sua acção, o anterior titular do cargo, o Almirante Mendes Calado) e ao promoverem, de forma cada vez mais descarada, a imagem de Gouveia e Melo perante uma opinião pública mantida propositadamente na ignorância e tendente a acreditar em salvadores da Pátria.
Depois de há apenas três meses atrás ter jurado não querer meter-se na Política e proclamar que os militares não o deveriam fazer, Gouveia e Melo apareceu agora a manifestar descaradamente a sua disponibilidade para essa mesma Política, para uma eventual candidatura presidencial e até para fomentar a criação de um “movimento cívico”!?
Sem ir, ao menos por ora, a outros momentos da sua carreira – mas já então significativamente relacionados com a anterior eliminação, por métodos ínvios, quer de outros potenciais concorrentes ao cargo de CEMA, quer de militares com vozes e opiniões incómodas –, convirá recordar que Gouveia e Melo foi, sobretudo enquanto Chefe de Gabinete de um antigo CEMA, Macieira Fragoso, um dos principais defensores quer da “doutrina” do “duplo uso” (com base na qual, e embora claramente contra a Constituição, as forças militares, e em particular a Marinha, poderiam assumir funções e competências próprias das autoridades policiais), quer da legitimidade de todas as manobras destinadas a “eliminar a genética” dos militares, que correctamente defendiam, e defendem, o respeito pela Lei Fundamental do país, bem como do estabelecimento de relações convenientemente muito “próximas” com certos jornalistas e com certos órgãos de imprensa, sempre “patrioticamente” disponíveis a participar em tal tipo de manejos.
O abandono da pele de cordeiro do modesto, competente e nada egocêntrico militar, tranquilamente colocado às ordens da sociedade e do poder civil, e a ostensiva assunção do papel e da imagem do enérgico e devotado “salvador da pátria”, pronto, tal como o marechal Gomes da Costa em 28 de Maio de 1926, a comandar as tropas para marcharem sobre o “inimigo” e “imporem a ordem” no país, só pode surpreender os incautos, antes representando a “cereja no topo do bolo” que os “democratas” que nos têm desgovernado também têm vindo laboriosamente a confecionar!…
Ora, o Povo português não precisa nem de paternalistas e salazarentos “salvadores da Pátria”, ou seja, de ditadores, nem de “amigos” daqueles. Necessita, isso sim, de se libertar a si próprio, de quebrar as mil grilhetas que o aprisionam e de construir, com a sua vontade e com as suas mãos, o seu próprio futuro! Melhor é possível!
António Garcia Pereira
[1] Como o turismo, a hotelaria, a restauração e as plataformas digitais, como a Uber e a Glovo.
[2] Da agricultura, sobretudo a destinada à alimentação básica das populações, às pescas e à marinha mercante, passando pela indústria, designadamente a siderúrgica, a metalúrgica e metalo-mecânica e construção e reparação naval.
[3] Segundo os dados do Eurostat.
[4] Segundo os dados dos quadros de pessoal de 2019, divulgados pelo Ministério do Trabalho, e conforme demonstrou recentemente o economista Eugénio Rosa.
[5] Só atrás do Japão e de Itália.
[6] Segundo o “European Consumer Payment Report – 2021”, da insuspeita cobradora de créditos Intrum.
[7] Segundo recente informação estatística do Banco de Portugal, o endividamento público atingiu em Outubro último a soma astronómica de 765,6 mil milhões de euros, tendo, relativamente a Outubro de 2020, a dívida global das empresas crescido 2,4% e a das famílias 3,2%!
[8] Da Caritas à Comunidade Vida e Paz e aos Médicos do Mundo, passando pela Rede Alimentar ou a Re-food, e inúmeras Misericórdias.
[9] SOS Voz Amiga, Conversa Amiga, Centro de Apoio do INEM, etc.
[10] Só a “desgraçada” Petrogal levará qualquer coisa como 1.700 milhões, a NOS 274 milhões, a Autoeuropa 183 milhões, a Peugeot 145 milhões, a Bosch 143 milhões e a Sonae Serviços Partilhados 136 milhões!…
[11] Que é precisamente aquilo que nos tempos mais recentes se passou já com os enfermeiros, professores, estivadores e motoristas.
Texto que nada surpreende! Trata-se da coerência e lucidez habitual! Que a voz não lhe falte e a mão não lhe doa! O País precisa, cada vez mais, de muitos Garcias!
Até quando o nosso povo continuará a permitir ser usado por uma propaganda e a deixar-se levar pela ilusão de que a UE ou alguém por nós encontrará a solução para os problemas, políticos, sociais, economia, trabalho, justiça, segurança, será difícil perceber que estamos acorrentados a poderes exteriores que até a nossa soberania condionam?
Doendo a quem doer, um magnífico artigo de Garcia Pereira.