Uma crónica em jazz maior

Começava a tarde em Colares, o sol aquecia pendurado no espaço com o tempo nas minhas “highlands” a prometer um escaldão. Se eu fosse à praia. A ansiedade dominava o ar que eu expirava. Não ia à praia.

Hoje podiam chover abelhas asiáticas, eu iria estar no jardim do Palácio Baldaya, no Jazz em Benfica, organização da Junta de Freguesia.

E que têm vocês com isso? Nada! Podem ir fazer a vossa vida, que eu vou continuar a contar as histórias de uma noite de jazz.

Iria bem cedo para o lugar do crime conseguir o primeiro lugar, da primeira fila, decidi. Só para ouvir a música daqueles músicos, nada mais. Raramente saio da minha aldeia para ir à capital.

A menos que…seja para ouvir música e ouvir orações de músicos. Daqueles que eu considero unicórnios vindos de outras galáxias. Pago. Mas, aqui a Junta ofereceu.

Como estou orgulhosa da música que se faz em Portugal! Dos músicos virtuosos que enchem este país acanhado entre o oceano e Espanha. E dos outros. Carai!

Mas estou-me a adiantar.

Nunca vou cedo para um concerto. Compro o meu bilhete e meia-hora antes lá estou na porta. O meu lugar está garantido. O detalhe para este concerto tão ansiado quanto inesperado era o facto de ser gratuito. Há muito que sonho ver estes monstros juntos. Ouço as músicas como quem bebe cerveja no verão. Até cair para o chão.

Jazz gratuito, nos jardins, com eles? Podia ser uma enchente nunca vista porque andamos sedentos de música.

Nada estava garantido, logo marcar território era o objectivo. Ajustei o meu focinho rotweiller e fui a tiracolo da Sofia, que alinha nestas doideiras à última da hora. Convém dizer que só soube há dois dias desta maravilha, informada pela amiga Rita que vota na junta de freguesia de Benfica e conhece a minha compulsão por estes artistas.

Esta compulsão era para ver não um mas dois monstros. Prometi estar presente mesmo que fosse hospitalizada, estivesse entrevadinha, entubada ou até morta. Seria capaz de me arrancar do lugar dos mortos à boleia com o diabo, só para os ouvir ao vivo.

Sou não fanática (de onde vem a palavra fã), mas groupie demente (à distância) desta música e destes músicos.

O meu fanatismo está para eles como a maria leal está para a música fake – um “match in heaven”.

Cheguei seis horas antes. Estão a ver aqueles que vão com tendas acampar para comprar bilhetes para a Madonna ou U2?

Eu para estes? Igual!

Levei capulana e almofada para me sentar no chão se fosse necessário. Só não levei casaco. Se nas highlands de Sintra está calor em Lisboa está um micro ondas.

Errado…

Não tinha nada para fazer em seis horas a não ser esperar. O que faço eu? Meto conversa com a malta da produção que anda por ali a produzir antes de retirar as fitas de “crime scene investigation” que davam acesso às cadeiras.

No chão já não me ia sentar. Precisava descobrir como é que eu estava ali. Como é que funciona? É só sentar-me e assistir às artes e manhas de meninos prodígios da música?

Sentei-me num banco do jardim envolto em fita, já dentro do espaço para o público a aguardar que viessem tirar a dita, infringindo logo as regras da produção.

Mas eles já eram meus bff´s e eu já tinha avisado ser uma groupie.

Armei-me em Sherlock e quis saber como é que acontecia aqueles monstros estarem ali – que bem tinha eu feito para ser o meu karma presenciar o momento?

Sim, era só sentar-me e assistir, acompanhada de rum e batatas fritas de frente para uma nespereira carregada. Se tivesse visões, a responsabilidade não poderia ser imputada a mais ninguém que ao cartaz da tarde e da noite.

E a uma nespereira que servia de fundo de palco.

Pois fiquem sabendo que o Presidente da Junta de Benfica é fã dos mesmos monstros que eu e fez tudo para os contratar assim sem mais nem ontens:

– “olha Richar, eu é que sou o presidente da junta, Benfica conta”.

E o Richar veio.

Há dois anos sem concertos? Então vamos abrir o jazz em Benfica com os melhores. Pim! Vai buscar.

E eu fui. Na primeira fila, primeira cadeira, em frente ao Richar.

A primeira parte contou com o enorme músico Salvador Sobral. Com simplicidade, humildade, terra a terra e a grandiosidade musical que todos lhe reconhecemos, com quatro músicos virtuosos faz um concerto absolutamente incrível cobrindo todos os géneros. Todos!

A universalidade na música não tem fronteiras.

Do flamenco, ao rap, ao blues, ao rock, à bossa nova, nada falhou e tudo ele entregou. E o vento quase o levava. Foi fiel ao palco e ao público Português que literalmente o adora. Brincou, entreteve, actuou, pulou, cantou das entranhas, amou pelos dois – ele e a música.

Duas meninas do público juntaram-se a ele no palco a cantar uma canção que falava de beijos. Foi um momento divino que merecia um beijo. Fomos embalados e abanados.

A simbiose foi como claras envolvidas em chocolate derretido com manteiga. Mousse dos anjos.

Tempo de jantar e beber mais um rum, sem sair do lugar. Era o que faltava, perder o meu lugar na primeira fila, separada dos bancos colocados no palco onde os dois monstros se iriam sentar, por apenas quatro metros, para um concerto verdadeiramente intimista.

São apenas sete as notas as criadas pelo homem (quem sabe foi a Eva que as inventou quando aborrecida no paraíso, e, para se distrair do Adão e da parra, da cobra e da maçã, “ai que bom seria fazer uma clave de sol e um compasso”. Fez!).

Sete notas, sustenidas, colcheias, bemol, maiores e menores fazem cair barreiras entre as línguas faladas pelo mundo, junto dos povos que habitam o planeta e tornam a vida respirável, igualando-se ao oxigénio.

“Sem música a vida seria um erro”. Não tenho dúvida.

Além do mais é a ligação universal entre a humanidade.

Como sabem, os primeiros músicos americanos pretos que inventaram os blues, o rock e o jazz, não sabiam ler nem escrever, contudo aprenderam o alfabeto.

Com as letras escreviam as notas e assim as tocavam – “Dó (C), Ré (D), Mi (E), Fá(F), Sol (G), Lá (A), Si (B)”. O código Morse dos músicos.

– “Give me an F” assim diz o músico monstro Richard Bona, que eu tenho como guru do baixo e dos que mais prazer me dá ouvir tocar e cantar, dizendo ao músico monstro Cubano Alfredo Rodriguez, ao piano.

O pianista ataca as notas da canção “ Ai mama Inêz” ainda mal se tinham sentado, nem nós estávamos ainda psicologicamente refeitos das suas aparições.

Entrei em choque “já? Assim sem avisar e já entra a minha favorita? Aguenta coração!

Como um concerto começa e como acaba é absolutamente fulcral para que este resida indelével na memória do público.

Abriam as hostilidades tendo a nespereira carregada da doce e suave fruta amarela da época como pano de fundo.

A partir desse momento, todos nos enchemos de nêsperas nos ritmos cubanos, africanos, numa mistura jazzística, unidos nos dois dos melhores músicos que habitam este ponto azul, numa galáxia perdida em buracos negros.

Sen Sen Sen, Mandinga, Karaka, Raíces, e tantas outras pérolas eram as mandingas poderosas para os corações que ali tinham convergido.

Ou um vudu como lhe chamou Bona pedindo para parar de chover.

Excepto o frio, tudo perfeito. A começar no som. Kudos para os técnicos.

Foi um misto de oração e de ritmo de belzebu. Foi como ir a uma Igreja e assistir a uma missa. As únicas missas que frequento – concertos.

Michael Oliveira, o baterista cubano no seu canto, quase “low key”, mostrou como se faz ritmo, andamento e se dá alma à música, tornando-os visíveis aos ouvidos e outros sentidos.

Eu tenho um sentido no rabo. Também ouço música com este órgão. E se houve ritmo!

Alfredo Rodriguez um prodígio musical, estudou piano clássico no Conservatório de dia enquanto de noite tocava na orquestra de música cubana do pai, esteve por diversas vezes possuído – por nêsperas psicadélicas, certamente. Foi sempre um com o piano.

As mãos nem se viam de tanto saltarem, atirava as pernas e os pés para todos os lados, tocava sentado em apenas dois pés do banco, levantava-se, e com ele vinham as teclas. Dos seus dedos saía música e virtuosismo.

Da sua entrega à música vinha o seu poder.

Descoberto por Quincy Jones, é a coqueluche do piano, o instrumento soberano a seguir à voz.

Não temos um pianista, temos um unicórnio. Nunca vi nada assim. Estava em casa. Um monstro de outra galáxia. Como a vaca na Índia – sagrado!

O baixista? O tal outro monstro? Que hei-de dizer?

Foi o Martim Luther King do baixo. E do palco. Da entrega genuína, do humor, da simbiose com o público. Dos solos de fala ímpares.

“Nós estamos em tour, vamos tocar no Rio de Janeiro, Tóquio, Paris, Londres e… Benfica…

Até a mim ainda custava acreditar. O Camaronês cidadão do mundo, Bona, em tournée por esse mundo fora, foi parar a Benfica.

Deixou que os seus músicos brilhassem, chamou ao palco dois miúdos do bairro da Boavista para um show repentino de dj´s com ritmos afro-beat maravilhosos, conversou, brincou, falou em Português, disse palavrões, rezou os seus cantos belíssimos que contam lendas e vidas africanas, fiel a si próprio e às suas raízes, na sua língua materna, o Douala, esteve no jardim da sua casa a receber um montão de amigos que o tratam com amor, ou deverei dizer louvam, como ele merece, porque a qualidade musical, a autenticidade e a fidelização à música que vem de África e da América Latina são de conhecer, ouvir e admirar.

Ainda bem que estes dois monstros a trazem para nós.

Bona, saiu por uns minutos para ir buscar um casaco e aquecer os dedos. Era a desculpa para nos deixar a sós com a nespereira iluminada onde recebemos a aparição do senhor Alfredo Rodriguez a solo, com os dedinhos aquecidos de tanto saltarem nas teclas fazendo as escalas todas, só para nós, os pastorinhos deleitados com visões de unicórnios. Que carai!

Naturalmente dancei, cantei e estive abraçada ao momento elevado quase místico, como quem vai a Fátima de joelhos – agradecida pelo milagre de estar ali, cheia de frio, embrulhada na minha sagrada capulana.

Um peregrino não se importa de sofrer.

Nos olhos do público de todas as idades, maioritariamente africanos, estrangeiros e muitos jovens, claramente idolatrando a música e os seus intérpretes (facto que me apraz perceber), havia um estado elevado de enlevo.

Um pequeno detalhe que fez também uma pequena diferença. Por norma, os lugares da primeira fila são reservados aos icc´s – os importantes como o caraças. De salientar que estes ficaram reservados na última fila. Se não aparecessem…estudassem!

Já aconteceu muitas vezes em eventos da literatura e de música, os icc´s terem coisas mais importantes para fazer como assinar a paz no mundo, ter bexigas doidas ou doar um rim e desdenharem os convites. O público fica a arder sem o privilégio de assistir a um momento de arte.

Sim, ao público, a primazia. Os verdadeiros amantes da música e dos músicos. Os que pagam para ir ver, os que compram discos e livros, ou recebem oferendas destas.

É claro, que na próxima irei votar a Benfica! Este é que é o verdadeiro presidente da junta, com bom gosto.

Bona Pinder Yayumayalolo, aka Richard Bona, nunca mais na vida se vai esquecer desta noite (digo em em D). Nunca tocou num espaço tão simples, bonito, pequeno, cheio de gente vibrante, em adoração, debaixo de chuva miudinha, vento e frio, vento esse que parou uns momentos, quando no final já com o público de pé nos poucos metros que nos separavam do palco pouco elevado do chão, cantou magistralmente acompanhado por Alfredo Rodriguez, a oração “Alfonsina y el mar” escrita pelo Argentino Aríel Ramirez, canção dedicada à grande autora Argentina Alfonsina Storni que jovem se atirou de um penhasco.

Ainda brincou subindo e descendo a voz e todos nós ríamos, depois da oração musical, já chorando por ser o final de um momento inesquecível com início, durante e fim, memoráveis.

Sentei-me enlevada. Ouvia pessoas do público em pé atrás de mim, sem parar: “wow, wow, wow” que eu traduzi “amém, amém,amém” (hoje estou muito religiosa…).

Virei-me dizendo-lhes – “vou ficar aqui sentada à espera do concerto do Bona e do Rodriguez, daqui a pouco vai começar”. Era o que todos queríamos.

O sincretismo da música cubana e africana (onde todas bebem) esteve reunida num jardim de um palácio em Benfica.

No rescaldo de tarde e noite tamanhas venho agradecer a quem me proporcionou estes momentos musicais, incluindo a Junta de Freguesia de Benfica, ao jazz e sobretudo aos meus unicórnios músicos, de outra galáxia.

A humanidade cura-se e une-se através das artes, em particular a música, que fala a mesma língua em apenas sete notas.

O resto são psicoses e neuroses. Curemo-nos com música. —
Anabela Ferreira

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *