“Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”

Há uma tendência e uma lógica que, embora venham de antes, se foram progressivamente impondo e fortalecendo, ainda mais com as sucessivas e mais recentes crises, em particular a crise financeira do início do século XXI, a pandemia da covid-19 e as guerras na Ucrânia e na Palestina.

Muito por culpa do cultivo do espectacular, do imediato e do aparente, essa tendência e essa lógica conduziram a um entorpecimento da consciência colectiva, à incapacidade de reflexão crítica dos cidadãos, ao abandono dos princípios, à imposição a todo o transe das “verdades” oficiais, ao impedimento do debate sério e aprofundado, ao silenciamento de tudo o que sejam, ou simplesmente pareçam ser, vozes divergentes, à prática de diversos tipos de censura e, na base maniqueísta e salazarenta do “se não és por nós, és contra nós”, da etiquetação primária dos divergentes.

Assim, hoje e cada vez mais, quem tem opiniões que não coincidam com as do pensamento dominante é sumariamente julgado e sentenciado na praça pública. Se, a propósito da pandemia, se criticam as medidas e políticas decretadas e impostas sem qualquer respaldo democrático, é porque se é “negacionista” ou “anti-vacinas”. Se se criticam as medidas ditas de emergência financeira, relativamente às quais logo é dito que “não há alternativa”, é-se um “agitador” ou um “piegas” e que deveria emigrar. Se, a propósito das mais recentes guerras, não se apoiam as posições dos EUA, da UE, de Zelensky ou de Netanyahu, então é-se um “putinista”, um “anti-semita” ou um “amigo dos terroristas”.

Na ausência de qualquer argumentação séria, as posições dominantes convertem-se numa questão de fé e de autoridade: é assim, porque é assim, porque me dizem que é assim ou simplesmente porque eu quero acreditar que assim o é. A lógica do silenciamento do divergente passa, então, para a mera “boca” e o puro ataque pessoal.

Censurando todas as fontes que possam, de alguma forma, pôr em causa o que se apresenta como “facto” – pois fake news são sempre as apresentadas pelos outros e nunca as do próprio… – logo se apelida quem se atreva a divergir com as tais etiquetas, atingindo-o com os insultos mais soezes, sem debater seriamente um único facto ou uma única ideia que se tenha apresentado, tratando assim de criar um clima de medo, tanto mais eficaz quanto maior for a nossa hesitação ou até – e porque não dizê-lo? – a nossa “cobardia de não discutirmos o que se passa”, para usar a recente e feliz expressão de Pacheco Pereira…

E não se julgue que isto se passa apenas nas áreas pessoal, política ou social, onde, aliás, nos tempos actuais, um exército de especializados trolls faz das redes sociais um uso verdadeiramente demolidor e miserável. Esta grosseira e até grotesca perversão da Democracia passou para todos os domínios da vida, incluindo o profissional, o cultural e até o desportivo.

O caso da procuradora Maria José Fernandes

Um exemplo de tudo aquilo que refiro é o processo de inquérito (destinado, como é óbvio, a ser rapidamente transformado em processo disciplinar) meteoricamente instaurado, sob a habitual e frenética pressão do Sindicato, pelo Conselho Superior do Ministério Público à Procuradora-Geral Adjunta Maria José Fernandes. E porquê? Simplesmente por esta ter, num artigo de opinião, evidenciado aquilo que são posturas erradas, para não dizer patológicas, do Ministério Público em matéria de investigação criminal, muito em especial aquela que é levada a cabo pela sua “tropa de elite”, o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).

Repare-se, aliás, que, quando os autores de críticas similares foram outros, porventura mais fáceis de atingir com a etiquetagem, o insulto e os assassinatos de carácter – ao já habitual estilo do “lá estão os amigos dos poderosos e dos políticos corruptos a quererem desacreditar a respectiva investigação criminal e a atacar o Poder Judicial” – já fora essa a técnica seguida. Porém, com a Procuradora Geral-Adjunta Maria José Fernandes tratou-se muito claramente de, após um claro e significativo apelo nesse sentido feito pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a perseguir e a procurar amordaçar com o referido processo disciplinar. E também, claro, criar-se o clima de medo adequado para que mais ninguém ousasse exprimir uma só opinião crítica.

Mas, note-se, tudo isto ocorreu nunca se discutindo uma vírgula do que a Dr.ª Maria José Fernandes escrevera, não se negando a veracidade de um único ponto. 

Ora, o que essencialmente interessaria discutir, entre outros pontos, é se, tal como a Dr.ª Maria José Fernandes escreveu, é verdade ou não que o Sindicato do Ministério Público “desde há décadas, paulatina e persistentemente, lançou e insistiu numa reivindicação de maior autonomia individual dos procuradores”, pretendendo que “cada procurador conduzisse os processos-crime sem interferência, ao seu agrado, exigência que tem camuflada uma desconfiança relativamente às hierarquias intermédias e superiores”? E é ou não verdade que no Ministério Público há “quem entenda a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, sobretudo os de natureza política”? E somos ou não “surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade é nenhuma, pese embora quem as promova sempre se escuda no argumento da opacidade”? E, já agora, é ou não verdade que “até há pouco tempo o DCIAP dispunha de um tribunal de instrução privativo, com um Juiz de instrução igualmente privativo (Carlos Alexandre – nota nossa) por ser o único durante largos anos”? E, enfim, é ou não verdade que “procuradores que não hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários ou não, são o top da competência. Outros magistrados de elevado escalão que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido? Pelo contrário quem se opõe à estridência processual é rotulado protector dos corruptos!”?

Significativamente, ninguém, desde logo no Sindicato, no DCIAP e na hierarquia do Ministério Público, quis debater, com seriedade e com verdade, se estas afirmações eram ou não fundamentadas, e como e porquê. E assim tudo se prepara, sem sequer ser necessária uma qualquer comissão de censura e o seu lápis azul, para nada se discutir e menos ainda alterar e tão somente se amordaçarem e punirem os recalcitrantes que ousem – horror dos horrores! – pensar pela sua própria cabeça e, pior do que isso, fazê-lo publicamente. E se se tratar de um membro da corporação, então essa “maçã podre”, esse “traidor”, tem de ser rapidamente isolado, silenciado e punido.

O perigoso populismo dos justiceiros

Ao longo da História, os justiceiros e o justicialismo (forma mais refinada e mais perigosa dos populismos) nunca trouxeram nada de bom. O exemplo mais expressivo disso mesmo, e que vem de Itália, é, seguramente, o dos Procuradores envolvidos na operação “Mãos Limpas” (“Mani Pulite”), dirigida, nos anos 80 e 90, contra uma classe política em larga medida envolvida em esquemas e processos de corrupção e até mafiosos. Mas a actuação à rédea solta desses “super-procuradores”, que, sem qualquer controlo efectivo, passaram a agir e a considerar-se como uma espécie de entes superiores, colocados acima da lei, levou a que acabassem por transformar-se em infractores iguais ou mesmo piores do que aqueles que diziam combater. A tentativa de fazer política, sem o dizer e sem ser pelas vias normais, em Democracia, levou inclusive a que alguns desses super-procuradores formassem um partido político (o “Itália de Valores”) para, sob a capa da sua pretensa superioridade moral, concorrerem a eleições e obterem votos e ganharem (mais) poder…

É por tudo isto que a estafada afirmação do “à Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política”, sobretudo quando utilizada para deixar criar, numa sociedade que se pretende democrática, poderes incontroláveis e incontrolados e titulares desses mesmos poderes com um estatuto superior ao comum dos mortais, tem de ser, clara e urgentemente, substituída por “ao Povo – em quem reside o Poder soberano – tudo o que respeita à coisa pública, incluindo a Justiça”. Desde logo com a prestação regular de contas pelos responsáveis pela Justiça perante a Assembleia da República e de tudo o que, de bem, e sobretudo de mal, nela se passou.

Questões sobre o Ministério Público a que este não quer responder

E é também como uma modesta contribuição para o debate, que creio ser não só urgente como imprescindível para a Democracia, sobre aquilo que hoje é e sobre o que deve ser a nossa Justiça, em particular a Criminal, que aqui renovo a apresentação de algumas reflexões, que já havia feito num artigo intitulado “Procuradores – magistrados ou polícias sem farda?” e publicado em 22/02/2018, ou seja, há mais de cinco anos (que aqui parcialmente reproduzo com ligeiríssimas modificações), e que visava questionar algumas ideias feitas e alguns factos consumados que, de forma errada e até claramente inconstitucional, foram sendo impostos como “verdades”. Assim:

1.º Antes de mais e ao contrário do que diariamente se ouve e é apregoado pelo próprio Ministério Público, sendo os seus membros agentes integrantes (como o são os Advogados e os funcionários judiciais) do órgão de soberania Tribunais, certo é que os magistrados do Ministério Público não participam do exercício da função jurisdicional (a função de administrar a Justiça em nome do Povo[1]), a qual compete exclusivamente aos Juízes.

Deste modo, a expressão, tantas vezes ouvida, de que o Ministério Público faz parte do Poder Judicial só é constitucionalmente admissível no estrito sentido de que, à semelhança dos advogados, ele integra, com um estatuto de autonomia, a estrutura orgânico-administrativo dos Tribunais, mas já não de todo no sentido de com ela se pretender estabelecer um paralelo, senão mesmo uma identificação, com a função jurisdicional e o seu exercício pelo Juízes.

2.º A hierarquia do Ministério Público – tal como muito justamente escreveu, em texto recente, o Advogado Rui Patrício – não é uma questão de gosto, ou sequer, acrescentamos nós, de opção ou decisão organizativa do próprio Ministério Público. É, sim, uma imposição constitucional, constante do art.º 219.º, o qual estipula que “os agentes do Ministério Público são responsáveis, hierarquicamente subordinados (…)”. E tal estrutura hierárquica, tal como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[2], “(…) aponta para a não polaridade individual do exercício de funções (como acontece com os juízes) em nome da unidade e indivisibilidade que deve mostrar o exercício de competências do Ministério Público”.

Em suma, a velha pretensão do Sindicato do Ministério Público de uma autonomia (quase) total de cada Procurador individual constitui uma marcada e perigosa perversão constitucional.

3.º A actividade material do Ministério Público é, ainda que inegavelmente importante, de natureza administrativa e não jurisdicional e a chamada e tão invocada “equiparação de magistraturas” não é um princípio constitucional, muito menos da versão original da Constituição, que fala apenas (art.º 219.º, n.º 2) em que ele “goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.”.

4.º Tal “equiparação” constitui antes a consequência prática de todo um processo laboriosamente levado a cabo por meio de sucessivas leis infra-constitucionais, a começar pela 1.ª Lei Orgânica do Ministério Público[3] e o resultado de arranjos e “casamentos” vários entre a cúpula do mesmo Ministério Público, em especial com Cunha Rodrigues, e sucessivos governos, com particular destaque para os do PS e os seus Ministros da Justiça (primeiro, Almeida Santos e José Santos Pais, e posteriormente Vera Jardim e António Costa).

Este processo foi mesmo ao ponto de a atrás citada Lei Orgânica de 1978, claramente fora dos conceitos e dos quadros constitucionais, ter ainda atribuído ao Ministério Público não só poderes próprios do Poder Judicial e da função jurisdicional, como os de “fiscalizar a constitucionalidade das leis e regulamentos”, “promover a execução das decisões dos Tribunais” mesmo até – pasme-se! – “velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis”, mas também funções policiais como as de “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e de “fiscalizar a Polícia Judiciária”.

5.º Rigorosamente o mesmo se diga da criação dos DIAP, isto é, os Departamentos de Investigação e Acção Penal, os quais, acentuando por um lado a natureza policial do Ministério Público (transformando, como é hoje público e notório, alguns dos seus membros numa espécie de inspectores policiescos mas com vestes de magistrados), serviram, por outro lado, para que, por regra, quem dirigiu o inquérito e proferiu a respectiva decisão final (sobretudo se ela for de acusação, mas também se tiver sido de arquivamento e depois o juiz de instrução tiver pronunciado – acusado, em linguagem mais simples – o arguido) não tenha que ir à audiência pública de julgamento “dar a cara” por essa sua decisão.

6.º Se se quiser ir mais longe e mais fundo – e ter também a coragem de afrontar a habitual e conhecida gritaria do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público no sentido de que, ao discutir tais questões, se estará a querer retirar-lhe a sacrossanta “autonomia”, ainda por cima precisamente agora que eles estariam a combater os poderosos e os corruptos… –, tal como resulta, e muito correctamente, do artigo 32º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, toda a actividade material de instrução criminal (mesmo que eufemisticamente denominada de “inquérito”) é da competência de um juiz, pelo que a tal fase de inquérito e os poderes de que nela dispõe o Ministério Público se afiguram manifestamente inconstitucionais[4].

7.º Como o é também a posição de supremacia, inclusive no próprio lugar, na própria cadeira que o acusador público ocupa na sala de audiências, ao lado do juiz (daquela entrando e saindo com este) e ostensivamente acima dos advogados da defesa ou de acusação, do arguido e do queixoso que eles defendem, bem como dos demais cidadãos intervenientes, sejam eles, por exemplo, testemunhas ou assistentes.

8.º De tudo isto resulta, como bem afirmou o Prof. Diogo Freitas do Amaral num texto – que aqui se cita com a devida vénia – intitulado “O excesso de poderes do Ministério Público em Portugal”, “uma inaceitável hiper-valorização do Ministério Público – onde os “advogados do Estado” (que deviam especializar-se em actuar nos Tribunais face ao advogados dos cidadãos) conquistam sucessivamente, numa lógica imparável de expansão corporativa, um regime de autonomia face ao Governo, uma condição de magistrados equiparados a juízes, um feixe de funções privativas dos Tribunais, um punhado de funções próprias da Polícia Judiciária e, por último, o controlo desta e a sua subtracção aos poderes directivos do Governo”.[5]

9.º A completa impunidade das sucessivas violações do segredo de Justiça investigadas pelo mesmo Ministério Público é uma amarga anedota, a qual, se não fosse a enorme gravidade do assunto, constituiria motivo para rir até às lágrimas. E só demonstra duas coisas: por um lado, tais violações representam uma totalmente inaceitável batota para procurar impor o facto consumado das condenações antes de se realizarem os julgamentos e se conhecerem os respectivos resultados e, por outro lado, nenhuma investigação conduzida pelo Ministério Público alguma vez desmascarará e acusará uma violação do segredo de Justiça cometida pelo próprio Ministério Público. E, entretanto, o julgamento da 1ª instância foi assim abusivamente transformado numa espécie de instância de apelo onde um cidadão já julgado, condenado e executado na praça pública das barras mediáticas, procura agora persuadir o Tribunal do erro dessa primeira decisão já plenamente executada.

Não podemos ignorar!

Ora, e tal como já em Fevereiro de 2018 escrevera também, é afinal sobre todas estas questões – e não sobre o circo mediático e fútil que todos os dias nos querem enfiar pelos olhos e ouvidos adentro – que, em nome da Liberdade, da Democracia e da própria Justiça, e para mais à luz dos acontecimentos mais recentes, deveremos, todos, ousar, reflectir, debater e decidir, sob pena de um dia acordarmos, tarde demais, sentados em cima de baionetas.

É que, lembrando as palavras da “Cantata da Paz”, de Sophia de Mello Breyner, “Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”.

António Garcia Pereira


[1] Como refere o art.º 202.º, n.º 1 da Constituição.

[2] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (2010), Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, p. 607.

[3] Aprovada pela Lei n.º 38/78, de 05/07.

[4] A constitucionalidade de uma fase inicial do processo-crime (o inquérito), cujo titular – leia-se “dono” – é o Ministério Público, só poderia ser afirmada se a tal fase se seguisse sempre uma verdadeira fase de instrução presidida por um Juiz e com natureza contraditória, onde tudo o que o dito Ministério Público fizera ou deixara de fazer no inquérito estivesse sujeito ao controlo jurisdicional do juiz de instrução. Mas, lastimavelmente, não é nada disso que se passa e a referida instrução tem vindo a ser reduzida a uma praticamente inútil formalidade, onde, por exemplo, o juiz de instrução pode, por despacho irrecorrível, indeferir todas as diligências de prova requeridas, havendo mesmo quem já proponha a eliminação formal da Instrução. Com o que, claramente contra a Constituição, em vez de uma Instrução presidida por Juiz teremos apenas e em definitivo um inquérito dirigido pelo Ministério Público.

[5] Freitas do Amaral, Diogo (2000), “O excesso de poderes do Ministério Público em Portugal”, in António Barreto, Justiça em Crise? Crises da Justiça, Lisboa: Dom Quixote. 

2 comentários a ““Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar””

  1. Maria Santos diz:

    Grande artigo. Leitura obrigatória. Muito obrigada.

  2. Herminia Antunes diz:

    Artigo lúcido. De interesse para todos os portugueses. Obrigatório divulgar para não colaborar!

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