Venham comigo para dentro de uma chávena de histórias

Este longo escrito é para ser lido só por heróis. É longo, claro. Não será notado por mais do que três, quem sabe dois, com sorte quatro.

 A rede já foi uma comunidade e por isso foi bela. Comunicávamos, cooperávamos e partilhávamos. As melhores capacidades desta coisa de sermos humanos. 

Ainda somos assim, a rede é que passou a ser um negócio, só pensa em dinheiro e censura. E o que dá dinheiro é a guerra. Entre teclados ou com armas de morte massiva. Porque vivemos a era da obsolescência do homem como ser. 
Somos só produto. Vendável, licitável, convertível em acções e unicórnios digitais, ou assim. 

Deixo a história contada também no podcast. Assunto arrumado.
Por sermos estes seres idênticos por dentro e distintos por fora, continuamos a precisar da rede, da comunidade, da aldeia.  
Para partilharmos os sucessos, os filhos, os amigos, as músicas que gostamos, os filmes que vemos, as lutas que travamos individuais e colectivas, as doenças que nos acometem, o que pensamos, o que odiamos e amamos, as flores que gostamos, a poesia que nos toca, os livros que nos enchem ou esvaziam a alma, enfim, as histórias das quais somos feitos, e mais recentemente os lutos que fazemos. 

Até a forma de encarar a morte mudou. Deixou de ser individual e passou a ser colectiva. Esta última é só por si uma reflexão à parte. Bem, já estou a divagar.

 Permitam-me este pequeno prazer. É que eu tenho medo de morrer de repente e não ter cuspido tudo o que preciso. 
E também porque somos criaturas de precisarmos contínuamente uns dos outros.

 Se chegaram até aqui vamos juntos fazer uma jornada. Sim, escrevo muito. É inevitável, não consigo parar. Sofro de soltura palavrosa.

Há quem me diga que da soltura não se aproveita nada. Como o Lobo Antunes, disseram-me. Não sei que hei-de pensar disto, se é um insulto se um elogio. Acho que é um insulto. Para mim. A mim não derruba e o Lobo Antunes está-se nas tintas. 
O debate fica para outro momento de soltura.

Foram várias as razões de inspiração para este texto. 
Entre elas está um sonho acalentado com carinho, que não se concretizou. Sonho esse que caído me poderia levar a duvidar das minhas capacidades e dons. Pode acontecer a qualquer um. 

Entre elas está também o facto de ter amigos a sofrer com depressão. 

Claro que escrever é uma terapia, faço-o também por mim. Haverá sempre um herói ou outro a quem esta prosa possa interessar. Já estive nesse lugar.

Esta prosa não é prosa motivacional, deixo isso para os gurus da área.

 É só uma divagação sobre uma história, ou melhor, sobre a vida. Ah e claro, sobre as cartas de tarot. 

Assunto sério. Paga-se bem!

 Andamos condicionados, doentes, obrigados a sair das nossas casas para procurar um bisonte, fogo, roda, sobrevivência e ainda nos exigem o nosso melhor, o nosso todo, o nosso sangue, os nossos órgãos. La Palisse não constataria melhor.

Vivemos enterrados em dívidas, em prestações, em programas de entretenimento e desporto, em vídeos tiktok e reels, muita música de má qualidade, tudo isto programado para adormecermos a vida.

Pelo que sei, em breve poderemos estar transformados num chip de DA (Desinteligência Artificial) do Musk, em cima de um psiché numa casa de um trilionário a despejar coordenadas para um jantar de beneficência quando nos perguntarem “bitch, qual é o menu?”

Divago…

O amor pela escrita está para mim como doce de papaia está para queijo de cabra, e há alguns anos interessei-me por aprender Tarot. A relação? Já vão entender.

Intrigava-me aquele jogo. As figuras e as mensagens. Como?

 Tudo o que não compreendo tem de ter uma explicação lógica por isso debruço-me no seu estudo. Mas a vida só por si não tem nenhuma lógica.

Comecei ainda criança a ter esta inclinação para a curiosidade antes mesmo da idade dos porquês.

 Todos já ouviram falar nas cartas de Tarot. Se calhar até já fizeram uma consulta a uma taróloga.

 Não interessa, quero contar-vos a história delas e como se cruzam connosco.

 As cartas contam a jornada de um herói desde que nasce, todas as fases por que passa, aventuras e desventuras, obstáculos, aprendizagens, valores que carrega, emoções e sentimentos que sente e transmuta, a evolução que acontece de dentro de si para as ruas do mundo, até chegar o momento de epifanias, do envelhecimento, da graduação da aprendizagem aquando da chegada ao valor do auto-conhecimento. Quando as pernas, os sentidos, a cabeça e o coração se tornam um só. Em coerência. 
Notam alguma semelhança com as fases da vossa vida? 
Não é pura coincidência. Os nossos antepassados sabiam o que estavam a fazer.

Como forma de fazer passar uma mensagem sobre a jornada do ser humano através de desenhos simbólicos, esconderam nos mesmos o chamado conhecimento esotérico.Interessante? 
Para mim é conhecimento valioso. Não tem validade científica, tem validade humanista. Parecem banalidades? Se calhar estou a debitar palavras não dizendo nada. Seja! 

Já sabem que tenho medo de morrer com uma apendicite aguda, vulgo peritonite, sem partilhar o que me engasga. 
E se cada um anda aqui nas redes a vender a sua cachupa, eu vendo a minha. Sem cobrar nada. 

É ela a jornada que a criança começa, largando a mão dos pais, vivendo-a intensamente,tropeçando, recomeçando, crescendo. Confronta-se com obstáculos e conflitos que resolve, ultrapassa, pára, escuta, olha, espera, compreende e finalmente num suspiro adormece. 

Não sabemos ainda o mistério que está para além da vida. Por isso gosto da expressão dos cuidados paliativos serem para além da vida, não para o final da vida.

 Este é o herói no seu caminho. Tu. Eu. 

Tem muitas versões diferentes. A literatura em qualquer lugar do mundo vive destes retratos contados. Simbólicos, ficcionados, reais, arquetípicos, sempre cumprindo a jornada. Somos todos diferentes em forma, contudo vivemos vidas nas quais os conteúdos são iguais. 

Sofremos e rimos da mesma maneira, pelas mesmas razões. 

Voltando ao Tarot que nesta minha jornada me trouxe tantas histórias, mal eu sabia, quando a curiosidade me invadiu rumo ao conhecimento das imagens, que estas são arquetípicas e simbólicas e o quanto esse conhecimento me serviria para a escrita. 
Qualquer boa história conta a viagem de um herói, com uma determinada estrutura e os elementos (conflitos) cruciais da sua jornada.

 Pode começar pelo fim, pelo meio, ou no início. Perguntem a qualquer escritor.

 Hoje irritantemente vejo um filme a considerar todos estes elementos baseados na estrutura dos conflitos da jornada do herói. Por essas razões nos apegamos a filmes, séries e livros.  

Estudar o tarot veio revelar-se fundamental para entender a escrita, os escritores e a literatura. E os conflitos com os quais nos confrontamos. Muitos deles (conflitos) levam a doenças graves, degenerativas, auto-imunes, depressões, suicídios, uma pletora de encargos a acrescentar aos da sobrevivência, em tempos de obsolescência humana. Porque a psique humana inclina-se para o mergulho de cabeça nos lagos da escuridão. 
Deixo a António Damásio e a Gabor Maté a palavra sobre estes assuntos e continuo a minha divagação.

 Se já observaram atentamente, é quando a vida tem abundância de crises que as pessoas procuram refúgio nas pitonisas de serviço. E aqui entra o dom comum dos humanos – o aproveitamento das fragilidades e a ganância. Estamos vulneráveis, caímos no conto do vígaro – do príncipe da Nigéria, do tinder swindler, da cartomante esperta. Este é assunto para outra divagação.

 O aspecto divinatório deixo-o a Delfos e às suas Pitonisas, apesar de ter a sua graça.

 Porém, nada está escrito nas cartas nem a vida escrita na pedra.

Então como é que a linguagem simbólica nos fala?

É a linguagem do inconsciente, como ensinou Carl Jung que sabia de tarot e sabia interpretar essa linguagem como um psicólogo interpreta arquétipos.

 Assim acontece a quem conhece a simbologia. Ela conta uma história. Juntas fazem um filme. Ou um livro. 
Às vezes os mistérios que guardamos são-nos revelados pelo nosso terapeuta na cadeira ou no divã, outros na interpretação desta linguagem no templo de Delfos, ou numa sub-cave de um qualquer bom tarólogo.

 É esta jornada que qualquer herói, desde que sangra rasgando a placenta, e se junta ao suor da saída da pêra uterina, às lágrimas e gritos da entrada no mundo, à vontade de cair, levantar, reconhecer a vida, sacudir a poeira e de dar a volta por cima, junto das capacidades inatas e adquiridas até ao suspiro final, uma jornada igual para todos. Com nuances. 
Só precisamos estar atentos. Ou seja, já que estás aqui nesta história, cumpre as palavras de Pessoa – “sê inteiro”. Por favor. 
Para que a história seja a tua, consciente, verdadeira, genuína. 
Como qualquer herói, nesta jornada, conforme se torna mais crescido, também se torna mais solitário, com menos amigos, tem menos amores, menos aventuras e com a bagagem que acumulou ao longo da mesma sente mais as perdas, sente também mais profundamente o amor que o une ao todo que o rodeia. 

Ou entra em depressão querendo sair da história como um cancro em remissão.

 Se estiver determinado em prosseguir, com ou sem ajuda, se de um lado sente a perda, do outro, o imposto de valor acrescentado à vida, aumenta.

 A sabedoria da jornada chega quando deixa de ser importante ser aceite ou ser validado.

 O herói na sua jornada compreende e aceita, que falhou, que não aproveitou oportunidades, que foi esmagado pelo tempo e as circunstâncias, que foi incompreendido, que não cumpriu objectivos, que nem atingiu metas que para outros são vitais (ou que a elas se obrigou), e por fim que foi ultrapassado por respostas que não obteve da vida.

 Falhas, obstáculos, sofrimentos, lutas, lutos, vulnerabilidades e fraquezas, revezes e quedas, acontecem fora dos planos que o herói imagina para si e não é culpa sua se acontecem, ou sequer se o herói não os consegue vencer. 

Que não venha nenhum sábio ou monge da tanga dizer-me, ou a qualquer heróis, que a culpa é pessoal. A vida nem sempre tem lógica.

Meditar é para uns, outros vivem comendo pedaços inteiros de vida.

A jornada é passar pelo Diabo que nos oferece o inferno, caindo com a Torre, despedaçando o ego, esmagando a Força, ressurgindo renascida das cinzas, como Fénix, para de novo se deixar Fluir entre terra e água, o líquido da esperança Equilibrista, até brilhar como Estrela, num misto de escuro com Desconhecido, clareza com visão transparente, até ao dia que reaparece o Sol que nos estende um tapete de brilho para recebermos Recompensas, e de repente, fechar um Ciclo e Começar um novo com o Conhecimento e a experiência adquirida. 

Esta é a história do tarot. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência.

 A vida tem mistérios e planos de contingência preparados para rasgar os planos do herói e com eles o abraçar. 
Nem sempre generosamente, porém cumprindo ciclos, mostrando outros caminhos, pedindo ao herói que reconheça a vida e nela seja equilibrista, como uma cana de bamboo, usando os dons do herói, cantando a canção de Aldir Blanc “ a esperança é equilibrista, sabe que o show de todo o artista tem de continuar”. 

Nascemos com o Mago nas mãos. Todos os dons e capacidades infinitas por detrás do que vemos. Aprendemos de Dentro para o Mundo até conseguirmos chão Firme, fazendo Escolhas em permanência, dominando ou perdendo as Rédeas da condução, buscando Equilíbrio.

 Fazendo um percurso como Eremitas quando a idade avança, buscando a Luz de dentro, depois de Percorrer um caminho no Mundo, em busca de amigos, aliados, seguidores, procurando influenciar, por vezes invadindo e colonizando terras e gente que não nos pertencem sendo essas terras e gentes nós mesmos.

A minha jornada como a de tantos heróis tem sido um conjunto de planos de contingência feitos pela vida, sentados na Roda do Destino, para se confrontarem com os meus planos criativos. 

Por contraponto apresento-lhe reviravoltas inesperadas, escolho continuar com as rédeas do carro nas mãos, quando posso, e se não posso, solto a vara do equilibrista e digo: agora descanso, por um momento, que a vida, daqui a pouco continua. 

O show tem de continuar. As histórias têm de continuar a ser escritas.

É que o tal sonho que veio por aí abaixo pela ladeira, vai arranjar maneira de compôr os cacos e voltar a ser cântaro. Ou noutro sonho. Ou perder-se no esquecimento. Ou transformada noutra coisa qualquer.

 Continuando a jornada do herói que somos todos. 

Anabela Ferreira

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