Violência doméstica: o toque a finados da Justiça Portuguesa?

Assistimos, nas últimas semanas, a um aceso (e saudável) debate acerca dos acórdãos do juiz desembargador Neto de Moura e, mais do que isso, acerca dos preconceitos ideológicos mais boçais e inconstitucionais que não raras vezes aparecem nas sentenças e acórdãos travestidos de “fundamentação” e de “exercício da função jurisdicional”.

Nesta fase, até pudemos assistir a que o mesmo juiz Neto de Moura fosse convenientemente “recuado” da secção criminal para uma secção cível do Tribunal da Relação do Porto. Mas, não nos deixemos enganar! Esta “transferência” ocorreu apenas porque os processos de natureza cível não têm tanto mediatismo como os criminais. Ora, não tendo Neto de Moura corrigido o seu comportamento, os seus preconceitos ideológicos – como, aliás, a sua entrevista ao Expressodo passado Sábado só serviu para evidenciar ainda mais – vão fazer estrago noutros processos e noutros cidadãos. Porventura menos visíveis, mas nem por isso merecedores de menos atenção e consideração: divórcios litigiosos, regulações do poder paternal, processos relativos a menores, indemnizações cíveis pedidas por vítimas de violência doméstica, etc.

Durante esta fase, o CSM – Conselho Superior da Magistratura (o órgão de gestão de disciplina e de classificação de juízes), o CEJ – Centro de Estudos Judiciários (a escola de formação dos juízes) e o Ministério Público, trataram autenticamente de passar entre os pingos da chuva como se nenhuma responsabilidade tivessem no verdadeiro flagelo cívico que é hoje a violência doméstica. 

Assistimos também a uma performance televisiva do incontornável Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Dr. Manuel Soares, a manifestar, com o ar mais afável e democrático do mundo, a plena disponibilidade dos juízes para verem as suas decisões criticadas pelos seus concidadãos…

Porém, assim que a onda de indignação e de protesto pareceu ter abrandado, logo tudo voltou ao mesmo. Como, aliás, era, infelizmente, de esperar e já alguns factos indiciavam isso mesmo:

Desde logo, a circunstância de o CSM ter decretado, sob o tal argumento da “independência dos juízes”, que não instauraria nenhum outro processo disciplinar contra Neto de Moura, por mais bárbaras, inconstitucionais e ofensivas das próprias vítimas que fossem as barbaridades anti-civilizacionais que ele fizesse verter para outras das suas decisões.

Depois, a notícia de que, afinal, o chamado “Observatório Judicial da Violência Doméstica”, tão pomposamente anunciado pelo CSM em 6/2/2018 e que teria por missão examinar as decisões judiciais em casos de violência doméstica e de género, não tinha passado do papel. Tratando o mesmo CSM – que esteve sempre calado sobre esta matéria – de atirar, apenas agora, as responsabilidades para a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade de Género.

De seguida, o teor do ofício, datado de 28 de Fevereiro de 2019 e subscrito pelo mesmíssimo Dr. Manuel Soares, que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses enviou nessa data ao Conselho Superior da Magistratura, tendo por significativo assunto “linchamento público do juiz desembargador Neto de Moura” e no qual a dita Associação “exige uma intervenção rápida e enérgica do CSM, com vista a repor a necessária tranquilidade e confiança no sistema da Justiça”.

Ou seja, está praticamente tudo dito quando o Sindicato dos Juízes e o seu Presidente aquilo que a este propósito consideram é que criticar, com a veemência e até com a dureza que a gravidade do caso exige e impõe, decisões judiciais como as de Neto de Moura constituiria um “linchamento público” e que, por isso, o CSM deveria tratar de pôr cobro a tal. Tudo isto numa evidente manifestação de qual é afinal a sua concepção de fundo sobre o papel e a função dos juízes e o seu completo saudosismo dos tempos – que verdadeiramente nunca foram ultrapassados na Justiça portuguesa – em que, há 45 anos atrás, o cidadão tinha de ficar de pé, cabeça baixa e cerviz dobrada perante Suas Excelências.

Mas eis que – julgando que, mantendo tudo no essencial na mesma, o “pior” já teria passado – alguns destes responsáveis voltam a evidenciar aquilo que são verdadeiramente as suas ideias de sempre, que eles nunca por nunca abandonaram e que voltarão em força se não forem denunciadas e desmascaradas a tempo.

Assim, o já citado Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, o desembargador Manuel Soares – que tem regularmente à sua disposição uma página inteira do jornal Público – volta ao ataque e escreve ontem, quarta-feira 13/3/19, um novo artigo com o furibundo e significativo título: “Onde estão agora? Não se escondam!”. Artigo este acompanhado de uma gigantesca fotografia, crê-se que de uma manifestação de mulheres e em que uma delas exibe um cartaz com os dizeres: “Machismo mata”.

Ora, Manuel Soares é juiz de segunda instância, Presidente da Direcção do Sindicato dos Juízes e também – recorde-se – autor de verdadeiras barbaridades cavernícolas, como a do acórdão referente ao caso da jovem violada, porque e quando estava inconsciente, num bar/discoteca de Gaia e que aqui denunciei na altura (https://www.noticiasonline.eu/quando-os-lobos-julgam/). E no qual a benevolência com que os agressores são tratados é justificada, entre outros “mimos”, com esta extraordinária argumentação: “a culpa dos arguidos (embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso) situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica e ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação) na prática dos factos. A ilicitude não é elevada. Não há danos físicos (ou são diminutos) nem violência (o abuso da inconsciência faz parte do tipo)” (sic!).

Neste seu artigo, Manuel Soares identifica bem o alvo: as mulheres que publicamente se manifestaram contra barbaridades judiciais como as de Sua Excelência e as do seu protegido Neto de Moura, bem como todos aqueles que as apoiam.

Mas esquecendo-se desde logo do essencial – isto é, do aumento, em autêntica espiral, do número de vítimas mortais de violência doméstica – ele procura justificar o elevado número de penas suspensas com a alteração legislativa de 2007 (de há 12 anos atrás!?), nos termos da qual foi alargada a possibilidade da suspensão da pena de prisão de 3 para 5 anos.

Porém, “esquece-se”, também aqui, de 3 pontos essenciais:

1º A suspensão da pena, nos termos do artº 50º, nº 1º do Código de Processo Penal, só pode ser aplicada se o Tribunal, tendo em consideração toda uma série de factores, puder concluir, de forma inequívoca, “que a simples censura e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Ou seja, e ao contrário do que Manuel Soares quer fazer crer, a suspensão não éuma medida automática em todos os casos de condenação em pena não superior a cinco anos, mas antes uma medida que o Tribunal só pode decretar se, atendendo “à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste”, puder fundamentadamente chegar à conclusão acima referida.

É claro que se Sua Excelência o juiz entender que a vítima é uma adúltera e que a sociedade até compreende e aceita que se a possa encher de pancada, ou que se uma jovem ficar alcoolizada e perder a consciência e dois energúmenos se aproveitarem dessa circunstância para a penetrarem e nela ejacularem a culpa dos agressores não é muito elevada e a ilicitude da sua conduta não é muito acentuada, assim facilmente justificarão – contra a lei! – a suspensão da execução da pena. Para mais, bem sabendo que ninguém lhes vai à mão, porquanto, dada precisamente a dimensão da pena, não há recurso dessa sua decisão para o Supremo Tribunal de Justiça tanto mais que, nos termos do artº 432º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal, só há recurso dos acórdãos que apliquem pena de prisão superior a 5 anos.

2º Mesmo quando decreta a suspensão da pena aplicada a um agressor autor de um crime de violência doméstica, o Tribunal, nos termos do nº 2 do mesmo artº 50º do Código de Processo Penal, pode e deve, “se o julgar adequado e conveniente à realização das finalidades da punição” (entre elas, precisamente as de garantir a segurança da vítima e evitar o cometimento de novos actos criminosos), condicionar a suspensão da execução da pena ao cumprimento de alguns deveres ou à observância de certas regras de conduta (como, por exemplo, a de não se aproximar da vítima, a de não a poder contactar seja de que forma for, ou até a de sair de casa para que não seja – como habitualmente sucede – a vítima a ficar sem tecto), ou ainda ao chamado “regime de prova” (com o estabelecimento de um plano de readaptação social e a submissão do arguido a vigilância e controlo de assistência social especializada).

Em suma, e também ao contrário do que o juiz Manuel Soares, de forma reprovável, pretende fazer crer, a suspensão da execução da pena não apenas depende de igual modo da ponderação das circunstâncias do crime e da conduta do arguido anterior e posterior a ele, como também não é de todo, nos termos do artº 50º, nº 2 do mesmo Código de Processo Penal, uma total, incondicional e incondicionada concessão de liberdade ao arguido condenado, podendo e devendo o juiz, quando decide tal concessão, definir as condições que, face nomeadamente à gravidade dos factos e à dimensão dos riscos, entender necessárias e adequadas.

3º A teoria de que, como a lei não proíbe expressamente que se decrete a suspensão da execução da pena a um arguido condenado a pena até 5 anos de prisão ou que tal suspensão seja aplicada mais que uma vez, então o juiz estaria “condenado” a assim decidir, é absolutamente falsa e mistificatória e visa atirar para cima do legislador as responsabilidades que são também, para não dizer neste caso que são sobretudo, dos juízes.

O ar, entre o provocatório e o brigão, com que o juiz e o sindicalista Manuel Soares clama contra os legisladores de 2007, gritando “onde estão agora? não se escondam!” (sic), não anda afinal longe da figura daquele valente que, em briga de rua, se agarra ao adversário gritando freneticamente: “tirem-me este tipo da frente!”.

E temos ainda o igualmente incontornável Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Dr. António Ventinhas, que também tem regularmente à sua disposição uma página da Revista Sábadoe que, de repente, em artigo publicado em 13/3, parece ter descoberto as virtudes da prevenção e da Justiça preventiva, exclamando mesmo que “se não houver uma forte aposta na prevenção da violência doméstica continuaremos a assistir todos os anos à tragédia que nós conhecemos” (sic).

Isto, já depois de, noutro artigo publicado em 13/2, ter feito uma longa explanação do regime jurídico dos crimes de violência doméstica, assinalando designadamente que não só os mesmos são urgentes como também que “para protecção à vítima foram estabelecidas medidas de protecção e coação urgentes”.

Para logo de seguida ir ao ponto central da sua questão e que é a também já célebre teoria da “falta de meios”, decretando mesmo que “como é fácil de ver, não existem magistrados, funcionários judicias e polícias que permitam cumprir estes prazos apertados em todos os processos, atento o facto de existirem milhares de processos destinados a investigar a violência doméstica”.

E vai daí, sem uma só palavrinha que seja de auto-crítica relativamente à postura, várias, demasiadas, vezes conhecida, e inacção do Ministério Público, o Dr. Ventinhas “descobre” as habituais (e convenientes…) razões do crescendo deste tipo de criminalidade. É o Poder Político que não dá os meios e as pessoas necessárias. É o legislador que faz leis que não prestam, permitindo em certos casos a suspensão provisória de processos a requerimento, desde que livre e esclarecido, da vítima e noutros casos – e aqui, de forma assaz significativa, reproduzindo os mesmos argumentos de Manuel Soares – “fomentando” (a expressão é do próprio Dr. Ventinhas) a aplicação da pena de prisão suspensa na sua execução. E, enfim, é claro, são as vítimas, pois que se calam e se recusam a testemunhar contra o agressor.

Em suma, para o Dr. Ventinhas e o “seu” sindicato do Ministério Público, a responsabilidade pela profusão e crescendo de crimes de violência doméstica, designadamente de homicídios, é de todos, excepto, obviamente, do próprio Ministério Público!

A hipocrisia do grande e eloquente discurso sobre a prevenção torna-se evidente quando o Dr. Ventinhas não diz uma única palavra, por exemplo, sobre a absolutamente criminosa falta de actuação do próprio Ministério Público em vários dos mais graves casos de violência doméstica verificados entre nós, como aliás tem sido analisado nos relatórios da chamada EARHVD – Equipe de Análise Retrospectiva de Homicídios em Violência Doméstica.

No relatório nº 1/2018-AC desta Equipe é mesmo analisado o caso de uma mulher que, na sequência de inúmeras perseguições, insultos, ameaças e agressões do seu ex-companheiro, acabou por ser, em 20/9/17, selvaticamente atacada, esmurrada, pontapeada e finalmente queimada, acabando por falecer em 27 de Janeiro de 2018.

Apesar de já ter antes apresentado 2 queixas (em 13/6 e 22/8), de ter prestado depois e por 2 vezes (a 5 e a 15/7) declarações, de ter feito transcrever na PSP as mensagens ameaçadoras que foram recebidas por sms, o Ministério Público de Peniche não lhe atribuiu o estatuto de vítima, não promoveu a adopção de quaisquer medidas urgentes e – conforme é assinalado no próprio relatório da EARHVD – ignorou e desperdiçou 3 (três!) “oportunidades para actuar no sentido de que fosse garantida a protecção da vítima”, isto em “momentos em que já detinha informação suficiente” (23/6, 8/8 e 24/8). 

E, tão grave quanto tudo isto, o mesmo Ministério Público, que nada fez para salvar a vítima, do que tratou foi de tentar impor – o Ministério Público, Dr. Ventinhas, não a vítima! – a suspensão provisória do processo! Refere mesmo o citado relatório: 

Do despacho resulta clara a intenção de procurar aplicar esta forma de resolução do processo penal ao caso concreto, não tendo sido tomada qualquer iniciativa para protecção da vítima e contenção do agressor. (…) Nem a vítima tinha formulado tal requerimento, nem as posições assumidas por ambas no decurso do inquérito, a conduta e o agravamento da acção do agressor aconselhariam tal caminho. A marcação daquela diligência constituiu mais um momento de inacção do sistema judiciário no caso concreto.

Demonstração mais evidente da gritante e irresponsável inépcia do Ministério Público era difícil!…

E quanto à menor filha do casal, refere também o mesmo relatório:

No caso concreto, a criança permaneceu desprotegida e nunca foi ouvida. A criança não foi apoiada, não foi incluída num plano de segurança e foi negligenciado o seu sofrimento. A criança foi um dos meios para B controlar A e lhe causar medo. A criança acompanhou o conflito que envolveu a mãe. Do que se apurou, a criança nunca teve apoio das entidades que contactaram com o conflito entre A e B. Na verdade, o seu sofrimento foi ignorado.

Só faltaram mesmo, para agravar ainda mais a dimensão desta tragédia, os defensores das teorias da alienação parental a clamar que, claro, “o agressor também é pai e deveria ter contacto com a criança” e a Segurança Social a sinalizar a menor como “criança em risco” e a tirá-la, entretanto, da mãe, como tem sucedido noutros casos. E, já agora, só faltaram também os eternos pregadores da “calma”, da “serenidade” e da “contenção” – sempre recomendadas às vítimas e não aos agressores – assim como os permanentes desvalorizadores da situação pregando que “não se deve generalizar”, senão mesmo que “o respeitinho é muito bonito”.

A verdade é que nenhum dos responsáveis pelo estado de calamidade a que se chegou em matéria de violência doméstica em Portugal, a começar pelos próprios juízes e procuradores do Ministério Público, se mostra, do alto do seu orgulho e preconceito, capaz de verdadeiramente examinar e reconhecer os próprios erros, e muito menos de aprender com eles e de os corrigir.

E, assim, todas as questões relativas à selecção, formação, avaliação e classificação dos juízes e procuradores, bem como as referentes ao conhecimento, discussão e responsabilidade cívica e democrática pelas respectivas decisões, permanecem afinal inteiramente de pé.

E, ainda e uma vez mais, temos de ser nós, cidadãos, a impor que em Democracia não haja nenhum Poder que seja incontrolável e incontrolado. É que, se assim não for, tendo em conta os resultados que estão já hoje e tragicamente à vista, bem poderão tocar a finados os sinos da Justiça Portuguesa…

António Garcia Pereira

2 comentários a “Violência doméstica: o toque a finados da Justiça Portuguesa?”

  1. […] [4] Ver, a este respeito, a indispensável obra de Isabel Ventura, Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violência sexual (2018) e os meus artigos “Quando os lobos julgam, a justiça uiva”, “Os Outubros Negros da Justiça Portuguesa”, “Como defender um agressor – os acórdãos do juiz Neto de Moura” e “Violência doméstica: o toque a finados da Justiça Portuguesa”. […]

  2. Rui Agonia Pereira diz:

    É evidente que se tivesse de me preparar para a magistratura não deveria esquecer esta li ção de Garcia Pereira – aliás, há anos, fiquei impressionado quando conversámos, não o tempo, pouco, acordado, nas uma tatde – para mim memorávem pela sua argumentação sempre comprovada por legislação que a cada passo mandava fotocopiar e eu guardara. Notável o que escreve. Sempre com a acostumada clarividência comprovada. Uma delícia.Eu que sou por profissão e devoção matemático e que tenho Amigos e Amigas juristas- até uma Prima que aprecio e estimo – vejo-me necessáriamente reportado a uma entrevista de há dias do meu Amigo Diretor do CEJ onde prevalece o conselho de se poder recorrer à Bíblia em considerações julgadas importantes para quem as defender( será mesmo isto em apreço ou em causa?). O Doutor Garcia Pereira certamente que leu essa importante entrevista. Trata-se de uma personalidade de indiscutīvel competência e respeitável nas altas funções que exerce. Eis o que trago à consideração do Prof. Garcia Pereira- certo de que analisará o que está em causa ou em apreço.

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