A celebração do 1º de Maio é, inquestionavelmente, uma celebração das duras e porfiadas lutas dos trabalhadores por direitos, em particular por melhores salários, por uma jornada limitada de trabalho e por adequadas condições de segurança e saúde.
Direitos nunca foram dados. Conquistaram-se!
É uma celebração mais do que justa, mais ainda hoje em dia quando muitos, em particular os mais jovens, com o processo por que passamos de apagamento da memória e de esquecimento da História, não se darão conta de quanto sangue, suor e lágrimas estão por detrás de direitos que se dão hoje como assentes em vez de serem percebidos como o resultado de muita luta e sacrifícios das gerações de trabalhadores que os precederam. Assim foi, efectivamente, com os direitos à jornada máxima diária e semanal, a férias e feriados, a subsídios de férias e de Natal, a um salário mínimo legal ou convencionalmente fixado, a formação, etc., etc., etc.
Mas comemorar uma data como o 1.º de Maio deve incluir não apenas recordar o passado, mas também saber analisar o presente e, mais ainda, preparar devidamente a construção de um futuro melhor e mais justo.
Por isso, importa ver – como já assinalei em artigo recente – que, embora há 50 anos se tivesse derrubado um governo e um regime fascistas, e o Povo tivesse procurado tomar o destino nas próprias mãos e construir uma sociedade nova e mais justa, essa autêntica torrente revolucionária foi afinal desviada para manter intactos o sistema capitalista de produção e o seu aparelho de Estado, com a ilusão reformista de que bastaria mudar as pessoas dos seus titulares (inclusive alguns retintos adeptos do regime derrubado, mas que correram a pôr um cravo ao peito…).
Assim, comemorar o 1.º de Maio tem desde logo de passar por fazer esse balanço e analisar onde nos conduziu essa ilusão. Mas também pela compreensão de que, sob o sistema capitalista, a força essencial dos trabalhadores reside na sua organização e na sua unidade em torno de objectivos justos.
Novas organizações para novas lutas
Se os sindicatos são essenciais neste campo, não são, contudo, a única forma de organização, podendo e devendo existir outras (como as comissões de trabalhadores), mas que têm de se analisar, autocriticar e modificar para serem órgãos, não de “gestão de negócios”, mas de luta, e não apenas económica ou estritamente “laboral”, mas também social e política (no sentido amplo do termo e não partidário). Precisamos de estruturas capazes de desenharem e executarem novas formas de mobilização, de organização e de luta aproveitando as novas tecnologias da época digital, em particular as de comunicação e informação, e com dirigentes estreitamente ligados ao mundo das relações de trabalho e àqueles que representam, perante os quais prestam contas, e que possam ser livremente eleitos e, quando não servirem, serem destituídos, ao contrário de se verem como pertencentes a uma qualquer “casta”, com privilégios e direitos superiores aos dos restantes trabalhadores, mesmo os que, para já, não estão sindicalizados.
É preciso reconhecer – e o mundo sindical deveria ser o primeiro a fazê-lo! – que principalmente a última década veio comprovar que os trabalhadores estão saturados de organizações, dirigentes e formas de luta “fofinhas” e que os governos do sistema capitalista, mesmo os que se dizem de esquerda, não hesitam em atirar contra os trabalhadores em luta um arsenal de pareceres (como os da Procuradoria-Geral da República), leis (como a da requisição civil) e medidas regressivas (como as operações e cargas policiais). Sobretudo, não devemos esquecer nunca duas lições que a História, e em particular a História do 1.º de Maio, já há muito nos ensinou: todos e cada um dos direitos dos trabalhadores foram duramente conquistados e só é vencido quem abdica de lutar por aquilo que é justo.
Razões para a luta dos Trabalhadores não faltam
Num país com mais de 2,2 milhões de pobres (um milhão dos quais empregado, mas com um salário miserável), onde se pagam dos salários mais baixos e se praticam dos horários de trabalho mais longos de toda a Europa, onde mais de 1/3 de todo o Produto Interno Bruto respeita à chamada economia informal ou não declarada (na qual nem a lei nem os direitos entram), onde os Bancos – que pagam menos imposto sobre o rendimento do que grande parte dos cidadãos individuais – têm um lucro líquido diário de 12 milhões de euros, mas 1/3 dos empréstimos à habitação estão em risco grave de incumprimento, onde os preços dos produtos de primeira necessidade tiveram um aumento real muito superior aos números oficiais da inflacção, onde as mulheres continuam a receber muito menos em salários e pensões (16,1% e 27,4% respectivamente) e a trabalhar muito mais (cerca de 2 horas diárias) do que os homens, em que, em 2022, o limiar da pobreza se encontrava fixado em 507€, mas a pensão média das mulheres era de apenas 382€, onde a sinistralidade laboral era, em 2022, a mais alta da Europa, com 2.848 acidentes por cada 100.000 pessoas em idade activa, forçoso se torna concluir que os sindicatos e demais organizações dos trabalhadores têm mesmo muito a fazer, não faltando razões ou objectivos mais que justos para a sua luta!
Reivindicações básicas que unem todos os trabalhadores
Para além da subida dos salários, da redução dos horários e do asseguramento das condições adequadas de segurança e saúde no trabalho – reivindicação com maior razão de ser no Portugal de hoje – creio poderem ser desde logo estabelecidas e defendidas as seguintes reivindicações básicas do ponto de vista das leis laborais, reivindicações estas que não exigem uma Revolução, mas que são simultaneamente de todo justas e em absolutamente susceptíveis de unir todos os trabalhadores no combate por elas:
1 – Revogação da lei da requisição civil (Dec. Lei 637/74, de 20/11) com que, como bem sabemos, todos os Governos têm tentado inutilizar e impedir as greves que lhes desagradem (enfermeiros, professores, motoristas de matérias perigosas, estivadores…).
2 – Revogação das seguintes disposições legais, criadas ou aperfeiçoadas pelo Código do Trabalho (CT) de 2003 e/ou pelas chamadas reformas laborais da tróica:
- Possibilidade de a contratação colectiva ter cláusulas menos favoráveis que a lei (art.º 3.º do CT)
- Caducidade da contratação colectiva se, após denunciada, não for substituída por outra, ficando os trabalhadores ao abrigo da lei geral (art.º 501.º do CT)
- Irrisórios 14 dias de vencimento-base por cada ano para as indemnizações de antiguidade (art.º 66, n.º 1 do CT), devendo passar a ser, pelo menos, de 1 mês de retribuição por cada ano
- Imposição da necessidade de devolução da indeminização de antiguidade (a que o trabalhador tem sempre direito em caso de despedimento colectivo, por exemplo) para que o mesmo trabalhador possa impugnar judicialmente o despedimento (art.º 366.º, n.º 4 e 5 do CT)
3 – Criminalização, pelo menos, das formas mais graves de assédio moral, sobretudo quando este é utilizado como “ferramenta de gestão” das organizações.
Combate às novas reformas laborais
Conhecendo-se o ideário do novo governo PSD/CDS, creio ser também essencial e importante que as organizações dos trabalhadores se preparem e se unam para lutar contra a reforma laboral que aí seguramente virá.
É que o “Programa do XXIV Governo Constitucional”, aprovado em Abril na Assembleia da República, apresenta duas características muito significativas. Por um lado, não contém uma única medida concreta, mas antes meras proclamações vagas e genéricas, tais como, por exemplo: “retomar um diálogo leal e construtivo com a concertação social”, “incentivar ativamente o trabalho e o emprego, em todas as suas formas, e aumentar a produtividade”, “desenvolver programas de formação”. Por outro lado, não se esquece de consagrar o compromisso de “Revisitar a Agenda do Trabalho Digno” (introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3/41), o que, para quem tem um mínimo de experiência, significa revogar os pontos da dita “Agenda” que mais celeuma e oposição suscitaram por parte dos patrões:
– A presunção legal de contrato de trabalho com as plataformas digitais como a Uber ou a Glovo (art.º 12.º A do CT)
– Os procedimentos inspectivos e a Acção Especial de Reconhecimento do Contrato de Trabalho, intentada pelo Ministério Público por impulso da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e na sequência de acções inspectivas (art.º 186.º K e seguintes do Código de Processo do Trabalho e 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14/91)
– O alargamento dos poderes inspectivos da ACT, designadamente em matéria do uso fraudulento de recibos verdes (art.º 10.º da Lei 109/2009)
– A nulidade de cláusulas abdicativas inscritas em rescisões por mútuo acordo nos termos das quais o trabalhador é levado a subscrever declarações de que “nada mais tem a reclamar ou a receber, seja a que título for” (art.º 337.º, n.º 3 do CT)
– O direito de oposição do trabalhador à transmissão da posição do empregador em caso de transmissão de empresa ou estabelecimento (art.º 286.º A do CT) que aquele considere fraudulenta ou, pelo menos, desfavorecedora da sua posição
– A “terciarização”, ou seja, a proibição de contratação de serviços externos para substituir trabalhadores que tenham sido objecto de despedimento colectivo ou por extinção do posto de trabalho (art.º 338.º A do CT)
Ora, todos compreendemos que, com a revogação destes pontos do actual regime da lei, e claro que sempre em nome das sacrossantas liberdade contratual e liberdade de iniciativa económica e sob a invocação dos argumentos da flexibilidade e da produtividade das empresas, aquilo a que realmente se assistiria seria a um desequilíbrio estrutural ainda maior entre as partes da relação de trabalho e a um aumento da exploração, da fraude e da opressão sobre quem trabalha.
Não se invoque, assim, que os trabalhadores não teriam objectivos por que combater e as suas organizações não teriam razões para, e com a firmeza que a justeza de tais razões e as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores mais que justificam e impõem, definirem, decretarem e executarem todas as acções de luta que forem necessárias.
Parar é morrer, desistir é perder, resistir e lutar é vencer – eis aquilo que a história do 1.º de Maio nos mostra e aponta.
António Garcia Pereira
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