A data do 8 de Março tornou-se nos dias de hoje quase uma vulgaridade, reduzindo-se em larga medida a uma mera formalidade, com pouco ou nenhum sentido político e social. E, todavia, ela foi instituída para simbolizar a heróica luta das mulheres por melhores condições de vida e de trabalho e por direitos cívicos básicos, como os do voto e da igualdade de tratamento.
Importa, assim, recordar que o início do século passado se caracterizou por importantes e heróicas lutas de mulheres trabalhadoras, muitas delas ferozmente perseguidas e reprimidas. Ficou célebre em particular uma manifestação de mais de 15.000 mulheres que, em 28 de Fevereiro de 1909, percorreram as ruas de Nova Iorque reclamando pela igualdade das mulheres e pelo voto feminino. Correspondendo a esse amplo movimento de luta, que sacudia não só a Europa como os Estados Unidos da América, na Internacional Comunista realizada em Copenhaga em 1910, a militante comunista Clara Zetkin apresentou a proposta, logo ali aprovada, de que a defesa dos direitos das mulheres passasse também pela instituição de um dia de celebração anual. E logo em 19 de Março de 1911 se realizaram acções de luta e de celebração do dia da mulher trabalhadora em diversos países da Europa.
Contudo, em 25 de Março de 1911, e porque os respectivos patrões trancavam os trabalhadores e trabalhadoras no interior das fábricas para os impedir de participarem em manifestações, um violento incêndio em Nova Iorque na “Triangle Shirtwaist Corporation” (uma fábrica de camisas com 600 hiper-exploradas trabalhadoras, na sua grande maioria imigrantes judias e italianas com idades entre os 13 anos e os 26 anos) causou a morte horrorosa de 125 mulheres e 21 homens. Os gritos de revolta contra esse bárbaro crime do capitalismo ecoaram então por todo o mundo.
Na Rússia Czarista as mulheres estiveram também na primeira linha do combate “pelo pão e pela paz”, ou seja, por melhores condições de vida e de trabalho e contra a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial, realizando contínuas greves e manifestações de rua, sempre ferozmente reprimidas. Aquando da principal e mais grandiosa dessas manifestações, em 8 de Março de 1917, o Czar Nicolau II deu ordens ao General Khabalov, o sinistro chefe do distrito militar de S. Petersburgo, para abater sem dó nem piedade todas as mulheres que se recusassem a abandonar a greve. Mas as lutadoras não cederam, obrigaram o governo a ceder e contribuíram decisivamente para o derrube da ditadura Czarista.
A partir de então, o dia 8 de Março foi generalizadamente instituído como o dia internacional da mulher trabalhadora e passou a ser celebrado pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras do mundo inteiro. Só 60 anos mais tarde, porém, e pela Resolução n.º 32/142, é que a Assembleia-Geral das Nações Unidas reconheceu formalmente o dia 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher, mas, como vimos, ela já era e desde há muito celebrada pelo mundo do trabalho.
É também importante relembrar a luta que caracteriza a origem e consagração da data de 8 de Março como Dia da Mulher porque no ano de 2024, designadamente no nosso País, a igualdade pela qual tantas e tantos se bateram continua a ser um sonho claramente inatingido. Na verdade, não obstante todos os direitos formalmente consagrados a seguir ao 25 de Abril de 1974, a situação das mulheres em Portugal ainda hoje se caracteriza por graves e inadmissíveis desigualdades. Meio século depois do derrube da ditadura, segundo os dados da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), 73% dos portugueses sem qualquer nível de escolaridade são mulheres, apesar de estas hoje serem já claramente superiores em licenciaturas e mestrados (60% contra 40% de homens).
As mulheres têm uma taxa de emprego bastante inferior (51,51%) à dos homens (59,7%), como têm o dobro (9,1%) dos trabalhos a tempo parcial destes (4,7%). Enquanto a maioria (entre 60% a 70%, pelo menos) das tarefas domésticas (aqui entendidas como trabalho não pago) é executada pelas mulheres, os salários dos homens são em média 16,1% superiores e nas pensões esse fosso chega a 27,4%. Em contrapartida, os valores percentuais dos cidadãos em risco de pobreza são, em todos os escalões etários, sempre superiores para as mulheres.
Segundo um estudo de 26/12/2023 do economista Eugénio Rosa – elaborado com base nos próprios dados oficiais do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – o montante do ganho médio das mulheres a nível, por exemplo, dos quadros médios e do pessoal qualificado, foi em 2022 inferior ao dos homens em, respectivamente, 25,6% e 20,1%! E, numa preocupante demonstração de que estas desigualdades não estão a diminuir, no período entre 2015 e 2022, os aumentos das remunerações e ganhos médios das mulheres com maiores qualificações foram inferiores às dos homens com idênticas qualificações.
Numa brutal demonstração do que representa entre nós a permanência das concepções e práticas machistas e paternalistas, a percentagem de vítimas de violência doméstica era de 80% para as mulheres e de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de 87,3%!
Se a isto se somar a resistência oposta pelo Estado português a reconhecer – ao invés do que sucede na grande maioria dos países europeus – a violação como um crime público, não necessitando assim de apresentação de queixa formal por parte da vítima, bem como a benevolência com que os crimes de violação e de abusos sexuais (quase todos cometidos contra mulheres e crianças) são tratados pela Justiça Criminal portuguesa, fica evidente como, nesta matéria da mais elementar preservação da dignidade da pessoa humana das nossas concidadãs, ainda estamos na era da “pedra lascada”…
São, pois, os dados objectivos e oficiais que comprovam que num Estado que se diz de Direto e que proclama como seus valores estruturantes fundamentais a igualdade, a não discriminação e o respeito pela dignidade da pessoa humana, as mulheres continuam a ser as últimas a serem contratadas e as primeiras a serem despedidas, a terem trabalhos precários ou a tempo parcial, a serem pior remuneradas para o mesmo tipo de funções, a arcarem com a grande maioria do trabalho não pago, designadamente o das tarefas domésticas, e a serem prejudicadas nas respectivas carreiras por engravidarem, por amamentarem ou por tomarem conta dos filhos quando estes ficam doentes.
Numa terrível demonstração de como a ideologia misógina e machista continua dominante, as mulheres continuam a ser as vítimas privilegiadas da mais grave violência doméstica, de homicídio (em 2023 houve 22 pessoas assassinadas em contexto de violência doméstica, 17 das quais mulheres e 2 meninas) e de crimes sexuais. Isto perante uma perturbante incapacidade de actuação atempada e eficaz por parte das autoridades e de uma inadmissível ausência de reacção firme por parte dos Tribunais, com casos e casos de repetidas, e dramaticamente ignoradas, queixas antes de o homicídio se consumar e com cerca de 92% de aplicação de penas suspensas aos agressores e predadores sexuais, com justificações medievais como as dos tristemente célebres acórdãos do juiz desembargador Neto de Moura.
Não é decerto por acaso que tudo isto sucede e também não é um caso de “guerra dos sexos”, mas sim de guerra contra uma sociedade que assenta e vive da exploração e da opressão do outro. Uma sociedade em que a existência de trabalhadores mais vulneráveis, com salários mais baixos e condições mais miseráveis funcionam como um “exército industrial de reserva”, ou seja, como um poderoso factor de concorrência e de pressão sobre os outros trabalhadores, procurando assim justificar e legitimar ideologicamente essa lógica divisionista, exploradora e opressora com o “argumento” da pretensa inferioridade e até da “coisificação” das mulheres.
Como disse Eleanor Marx, em resposta a um misógino e machista que se proclamava socialista, Belfort Bax, que criticara e atacara Clara Zetkin, “a mulher no regime capitalista é uma dupla proletária – ela tem dois tipos de trabalho, o trabalho de produtor na fábrica e o trabalho de dona de casa e mãe em casa. Por um lado, os seus músculos e o seu sangue são gastos para o benefício imediato do capitalista e, por outro lado, para o seu benefício futuro – para apoiar e alimentar uma nova geração de proletários… Trabalha lá, trabalha aqui!”.
Não há uma sociedade verdadeiramente livre nem verdadeiramente democrática sem a destruição deste tipo de relações sociais e a construção de uma sociedade nova, mais justa e mais igual.
Como proclamou a poetisa, filósofa e activista dos direitos cívicos americanos, Audre Lorde, “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes da minha”.
E é por isso que a luta libertadora das mulheres tem de continuar e é também, tem necessariamente de ser, a luta pela libertação de toda a sociedade!
António Garcia Pereira
Muito bem, António.
Não é muito vulgar colocar a questão da mulher, como parte da luta de classes. Mas é assim mesmo que deve ser colocada a questão, como bem o fazes.
Muito grato por mais um importante contributo para a Luta dos trabalhadores pela sua libertação do jugo do capital.
Um forte e solidário abraço.
ASF