Como pertenço ao mundo da ficção, autora de contos infantis baseados em lendas e personagens africanas, sinto-me com vontade de dar uma opinião.
A humanidade é diversa e é criativa. Até tem um ser transhumano, a pequena sereia que agora é preta.
Representação da espécie em evolução. Quem sabe, um dia seremos mais transhumanos, não binários e ciborgues, artificialmente inteligentes do que presentemente conhecemos?
Naturalmente estou muito satisfeita por ver uma nova adaptação da história do Dinamarquês Hans Christian Andersen com uma nova representação da beleza que está contida na família humana.
Para que todos se percebam como parte dela e como entre todos estamos ligados.
Andersen só deve ter pensado neste último elemento. Um conto que nos ligue.
Durante muito tempo da nossa contagem da História humana, em períodos recentes excluímos alguns da família.
Em particular desde o aparecimento da religião – mas isso fica para outra história.
Durante muito tempo apenas brancos, heterossexuais, homens e mulheres (sendo estas consideradas inferiores) foram incluídos como sendo os filhos de Deus.
Os restantes foram e ainda são por muitos considerados um erro nas experiências divinas, à sua imagem e semelhança.
Até o seu filho, nascido num lugar onde a sua pele precisa de mais melanina como protecção, representaram como branco.
Quem tem o poder subverte as narrativas ou conta-as à sua maneira.
No mundo da ficção não apenas vale a fantasia para criar qualquer cenário e qualquer personagem, humano, ou não, de qualquer idade, cor, de qualquer mundo, em qualquer planeta e universo, com vida ou sem ela, avatar ou allien, em qualquer tempo histórico e lugar; serve também para que nos identifiquemos com aqueles personagens.
Quem nunca disse “eu tenho a memória da Dory” em “ À procura de Nemo”? Quem nunca se imaginou na escola de magia de Harry Potter e transformar o colega manhoso num berbigão?
Tão importante quanto esta identificação é o efeito de nos colocarmos nos “sapatos” dos personagens e sentirmos o que eles sentem.
Percebermos que o que eles vivem e experimentam é comum ao que nós experimentamos e sentimos.
Em segundos estamos no mundo criado pelo autor, sem nos diferenciarmos, seja em Wakanda, no Senhor dos Anéis, no Matrix na Guerra das Estrelas, no Casablanca, no Doze Anos de Escravidão ou na Cor Púrpura.
Este é o lugar da literatura com os seus heróis, anti-heróis, protagonistas e antagonistas na esfera da criação de mundos ficcionais que nos transcendem e nos reproduzem nos sentimentos e emoções e criam empatia connosco.
Quem nunca se sentiu desvalorizado e desamado como o Patinho feio?
Quem nunca sentiu o amor incondicional entre irmãs como no Frozen?
Quem não detesta a madrasta da Cinderela?
Quem nunca quis ser o Clark Kent ou a Wonder Woman e salvar o mundo dos psicopatas?
Quem nunca imaginou ser beijada por um príncipe, casar e viver feliz para sempre no castelo, como na Branca de Neve, sem ter de trabalhar dez horas por dia, com o salário mínimo e esforçar-se para pagar o IRS?
Não nos colocamos nos sapatos da Pequena Sereia porque ela só tem rabo.
Nascida em 1837, Hans Christian Andersen o autor do conto cria um personagem transhumano, sem lhe dar nome nem cor.
Apenas os cabelos como espuma são mencionados na história original.
A história tem um final triste (a pequena sereia morre e transforma-se em ser do vento).
Na história não há heróis, nem antagonistas, nem maus, nem moral.
Como sabemos as sereias existem, têm todas as cores, vivem no mundo dos oceanos majestosos, podem ser avistadas em dias de mar chão, ou em dias de tempestades que enrolam tubos de ondas, que fazem naufragar iates e navios de carga, ou navios que trazem príncipes.
A história num mundo imaginário está aberta à especulação, e readaptação.
Algumas pesquisas sobre a Pequena Sereia e ficamos a saber de uma história na história – a de que Andersen terá usado metáforas para contar uma parte biográfica.
O autor seria homossexual não assumido que se apaixonou por alguém e este não corresponde ao seu amor.
Mas o que interessa é a famosa marca Disney transformar o livro num dos seus mais famosos filmes infantis.
Chamou Ariel à pequena sereia, pintou-lhe a pele de cor branca, deu-lhe o cabelo ruivo, retirou-lhe as irmãs (vitais no conto original), deu enfâse ao rei do mar, Tritão pai da pequena sereia (apenas mencionado de passagem no livro), e atirou a avó para a gruta no fundo do mar (importante figura no livro), adaptando a história com pós de perlimpimpim.
E agora? Eis que a máquina de fazer dinheiro readapta a adaptação.
Se a sereia for preta ou mulata mais crianças se vão identificar com a personagem. Lembram-se? Nós, aqui na humanidade temos uma paleta de cores bem bonita e diversa mas só os brancos têm tido lugar de destaque.
Acho que é isto que a Disney está a dizer.
Parece-me muito bem que a Disney tenha esse factor em consideração. É woke? É politicamente correcto?
E se for? Faz mal a alguém? Perturba a vida de alguém?
Exclui alguém?
Pois não! Bem pelo contrário e este facto não deveria perturbar nenhuma alma que se preze. As que se sentem incomodadas atirem-se ao mar, numa noite de tempestade. Pode ser que uma sereia os salve. Mas só se forem príncipes.
Cada autor, espectador e/ou leitor cria na sua imaginação o mundo que lhes está a ser contado.
O factor identificação com emoções e sentimentos é o elo fundamental de ligação, na literatura e nos filmes.
O ruído que li contra a nova pequena sereia ser preta, mostrando a nossa tendência humana para excluir uns favorecendo os do costume é de pouco bom senso – na minha opinião – pelas razões que escrevi e que são autênticas reposições de clichés.
Ou adaptações.
Lembrei-me que um dos filmes que maior impacto tem até hoje – Matrix – realizado por duas irmãs trans, sujeito de discussões sobre significados e readaptações.
Dizendo isto e aplaudindo a Disney por fazer o que tem de ser feito ao mostrar a diversidade da beleza da família humana deixo-lhes um pedido – seria tão mais interessante e inclusivo que a máquina de fazer filmes e multiplicar dolars, em lugar de apenas fazer reposições e novas versões para incluir a cor de pele, procurasse também autores com a cor da pele castanha (da nova Ariel e a baptize de Mariama ou um nome africano), que tragam contos sobre o tema sereias e amor, levando-os ao lugar de palco até agora retirado.
Eles merecem ser conhecidos, divulgados e vistos, passados duzentos anos da história original.
Ganhávamos todos e a máquina de dinheiro marcava uma posição com ainda maior impacto na divulgação de histórias de todas as representações da humanidade.
Já lhe tiraram a história. Andersen deve agradecer que não o cansem no seu descanso. Avancemos.
Anabela Ferreira
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