O relatório da Inspecção-Geral de Finanças[1], divulgado a 02/09, tem (felizmente) provocado alguma agitação, em especial por revelar que a compra da TAP em 2015 foi, afinal, financiada não pelos alegados investidores privados, mas… pela própria empresa!
Porém, durante largo tempo, algumas vozes, nomeadamente da Associação “Peço a Palavra!” e do Movimento “Não TAP os olhos!”, foram sempre convenientemente desvalorizadas e silenciadas quando denunciaram negociatas, irregularidades e ilegalidades que culminaram com a privatização da TAP, a preço de saldo, em 2015, e com a sua entrega a um especulador não europeu, David Neelman.
As denúncias respeitavam, desde logo, ao nunca devidamente esclarecido negócio de compra pela TAP – no tempo da Administração de Fernando Pinto e com a intervenção de Diogo Lacerda Machado, como administrador da empresa Geocapital, de Stanley Ho – da falida empresa de manutenção da Varig (a VEM), negócio esse que enriqueceu alguns,[2]mas que representou, ao longo dos anos, um autêntico buraco negro de cerca de mil milhões de euros nas contas do grupo TAP. Denunciaram também a forma como, em 2015, foi decidido, conduzido e executado todo o processo de privatização da Companhia, através da venda de 61% da TAP a um consórcio (“Atlantic Gateway”) formalmente constituído por David Neelman e por Humberto Pedrosa, mas realmente dirigido por aquele, já que este último não passava de um testa-de-ferro destinado a simular a natureza europeia do comprador e a tornear assim o regulamento comunitário que proíbe a aquisição por um não-europeu da participação maioritária de uma companhia de aviação europeia. Tratou-se de uma autêntica entrega da TAP ao desbarato a accionistas privados, que vampirizaram a TAP em favor da “Azul” de Neelman, então à beira da falência, e que possibilitaram o salvamento desta à custa da delapidação do valor da companhia nacional. E tudo isto com a prestação de garantias públicas (tais como uma secreta “carta de conforto” emitida pela Parpública em garantia da dívida financeira do grupo TAP para cada credor!) mantidas na maior opacidade, mas anulando deste modo e por completo o risco do investidor privado, e onerando o Estado e os contribuintes portugueses com riscos e compromissos financeiros astronómicos. Mais! Já em 2015 e nos anos seguintes fora sendo denunciado – eu próprio o fiz também e por diversas vezes… –, mas sempre ocultado e até desmentido, que a compra dos 61% do capital da TAP não teria custado um “tostão furado” aos pseudo-investidores Neelman e Pedrosa porquanto ela teria sido feita com fundos da própria TAP. Ou, mais exactamente, adiantados pela Airbus em troca de a administração dos privados se ter comprometido com aquele fabricante a adquirir-lhe, em regime de leasing, 53 aviões (A320 e A330) a um preço claramente superior ao de mercado.
Ora, logo em 2015 o Movimento “Não TAP os olhos!” participou ao Ministério Público todos estes factos, designadamente os que agora constam do relatório do IGF. E este o que fez? Ao fim de 5 longos anos de não investigação a sério (nem os participantes inquiriram!), os pretensos combatentes da criminalidade de colarinho branco, embora não podendo deixar de reconhecer “as contingências e fragilidades deste processo”, determinaram o arquivamento dos autos assim arrumados a aguardar “melhor prova”! E se o Ministério Público nada viu ou nada quis ir ver de ilegal, o mesmo se passou com os restantes órgãos e entidades responsáveis por seguir, e de alguma forma fiscalizar, todo o processo, desde a chamada “Comissão de Acompanhamento” ao Conselho Fiscal e aos auditores internos e externos da TAP, passando pela entidade reguladora. O próprio Tribunal de Contas, no seu Relatório de Auditoria nº 10/2018, relativo à “Reprivatização e Recompra da TAP”, nada assinalou de irregular ou ilícito, apenas apontando como “riscos” a “perda de controlo estratégico sobre a actividade operacional da Empresa” e apontando sete “objectivos alcançados”, a começar pelo da “viabilização da empresa”!? Ou seja, não obstante as evidências e a gravidade da natureza golpista e contrária ao interesse público de toda a “operação”, os grandes e obscuros interesses financeiros e políticos impuseram-se, os responsáveis pelos esquemas puderam ficar impunes e prosseguir tranquilamente as suas vidas e os seus negócios[3] e até contaram com o silêncio cúmplice de uma Comunicação Social da qual já então praticamente desaparecera de todo o jornalismo de investigação.
Mas o que é que, afinal, o referido relatório da IGF, elaborado na sequência da auditoria às contas da TAP, ordenada em 2023 pelo então Ministro das Finanças Fernando Medina[4], veio revelar, com total clareza, em termos de já não ter sido possível abafá-lo ou descredibilizá-lo?
Antes de mais, a compra de 61% do capital da TAP pela Atlantic Gateway de Neelman e Pedrosa implicou o pagamento imediato do ridículo montante de 10 milhões de euros e o compromisso de aqueles procederem à capitalização da companhia através de prestações suplementares de capital no valor de 226,75 milhões de dólares (cerca de 200 milhões de euros). Porém, tais prestações foram efectuadas formalmente através de uma das empresas do consórcio beneficiário, a DGN, mas realmente com dinheiro avançado/emprestado à TAP pela Airbus! Com efeito, nos termos de um acordo celebrado em Junho de 2015 entre a Atlantic Gateway, a Airbus e a citada DGN (o chamado “Framework Agreement”), a TAP foi comprometida não só a adquirir 53 aviões (A320 e A330) à Airbus, como a pagar-lhe, em caso de incumprimento ou cancelamento do acordo, precisamente o mesmo valor do empréstimo, ou seja, 226,75 milhões de dólares (200 milhões de euros), o que, como se afirma explicitamente no relatório, “evidencia uma possível relação de causalidade entre a aquisição das aeronaves, a capitalização da TAP, SPGS e os contratos celebrados entre a TAP, SA e a Airbus”. Mais concretamente, a Airbus disponibilizou aos investidores privados os cerca de 200 milhões de euros com que estes “cumpriram” a sua obrigação de capitalização, mas sob uma dupla condição: a de a TAP adquirir os tais 53 aviões à Airbus por um preço muito acima do de mercado e inflacionado em cerca de 200 milhões de euros, e a de a mesma TAP, caso não cumprisse, pagar à Airbus… 200 milhões de euros! Em suma: a TAP foi “comprada” com dinheiro e garantia da própria TAP!
Mas o relatório vai mais longe e indica com clareza que toda esta estratégia golpista e ilegal era do inteiro conhecimento quer da Parpública[5], quer do governo liderado por Passos Coelho, de que eram membros, como Ministra das Finanças, de Julho de 2013 a Outubro de 2015, Maria Luís Albuquerque (a que foi agora mesmo escolhida pelo executivo de Montenegro para comissária europeia com rasgados elogios às suas pretensas competências e idoneidade…), e, como Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, de Julho de 2013 até 30 de Outubro de 2015, Sérgio Monteiro (o real “obreiro” de todos estes esquemas), e, de 30 de Outubro a 26 de Novembro de 2015, o actual Ministro Miguel Pinto Luz (que assinou os contratos na “25ª hora”, mas declarou depois ter pleno conhecimento dos ditos esquemas e os achou correctos).
Todo este conjunto de esquemas – que representa um totalmente indevido favorecimento dos accionistas privados (que assim ficaram com a TAP por somente 10 milhões de euros, o valor do pagamento inicial à Parpública), uma grave oneração do erário público com obrigações e responsabilidades de valores astronómicos e reiteradas desconsiderações e violações do interesse público – consubstancia também uma habilidosa, mas totalmente fraudulenta e ilícita fraude à lei, desde logo ao Código das Sociedade Comerciais, o qual explicitamente[6] proíbe a concessão, por uma sociedade, de empréstimos ou fundos a terceiros para que estes adquiram ou realizem participações ou prestações do capital da mesma Sociedade.
Explicando melhor: a Atlantic Gateway era formada pela HPBG de Humberto Pedrosa, com 51% do capital, e pela DGN de Neelman, com 49% (embora a grande maioria dos lucros e o poder de designar a maioria dos membros da Administração fossem, por força de acordos parassociais e complementares, atribuídos a Neelman, que era assim, e como já referido, o verdadeiro dono e senhor do consórcio). Executando uma estratégia, desenhada pelo menos desde Junho de 2015 e tão opaca quanto habilidosa e fraudulenta, em Setembro de 2015 a DGN faz o já citado contrato com a Airbus, nos termos do qual aquela se comprometia a adquirir os 53 aviões e a Airbus fazia o dito empréstimo de 226 milhões de dólares à Atlantic Gateway (e assim, indirectamente, à TAP, que era por essa via adquirida, em 61%, por este mesmo consórcio!). Em Novembro do mesmo ano (já depois de concluída a privatização), a posição de comprador é então transferida da DGN para a TAP mediante a celebração de novos contratos segundo os quais a Companhia não só assume a posição de comprador como subscreve – e esta é a significativa inovação relativamente aos primitivos contratos com a DGN – uma cláusula nova, de penalização no mesmíssimo valor de 226 milhões de dólares caso a companhia cancelasse entretanto a compra dos ditos aviões. Como a Airbus não é seguramente uma instituição de caridade e, obviamente, não se queixou de não ter sido reembolsada do referido empréstimo dos 200 milhões de euros a Pedrosa e Neelman, e como estes também nunca invocaram não terem recebido da Airbus o dito valor, os mesmos 200 milhões (assim emprestados, recebidos e “reembolsados”) estarão, afinal, no abusivo excesso de preço cobrado à TAP pelas ditas aeronaves, muito acima dos preços normais de mercado, tudo no âmbito de uma artificiosa arquitectura jurídico-financeira destinada precisamente a escamotear o desastre financeiro para o erário e para o interesse públicos e o “negócio da China” para os investidores privados que (à semelhança do que aliás sucedeu com a EDP, com a ANA e com os CTT, por exemplo) foi a “excelência” desta privatização da TAP. “Privataria”, chamar-lhe-ia certeiramente António Pedro Vasconcelos, o grande motor do Movimento “Não TAP os olhos”.
Como se tudo isto já não bastasse, o relatório denuncia também a ausência de demonstração de qualquer tipo de racionalidade económica do referido negócio, do tempo de Fernando Pinto como CEO, da compra da VEM (TAP Manutenção e Engenharia Brasil, SA), referindo “perdas muito significativas com aquele negócio pela não recuperabilidade dos valores envolvidos que, até 2023, ascendiam a 906 milhões de euros”, bem como a completa falta de qualquer fundamento legal para o pagamento a Fernando Pinto de 326,7 mil euros a título – pasme-se! – de “férias não gozadas”. O mesmo relatório ressalta ainda que, entre 2005 e 2022, ao mesmo tempo que se exigiam grandes sacrifícios aos trabalhadores da Empresa, a TAP contratou serviços externos no valor de 400,6 milhões de euros, bem como que nos contratos que a companhia celebrou com a Seabury Aviation Consulting, a LLC e a KPMG, no montante de 11,7 milhões de euros, “não foi possível identificar claramente o beneficiário desses serviços”. E por último, mas não menos importante, que a TAP, SGPS celebrou com a Atlantic Gateway um dito “contrato de prestação de serviços de planeamento, estratégia e apoio à restruturação da dívida financeira” (!?), que teve como verdadeira finalidade “o pagamento de remunerações e prémios (sem os declarar como tal às Finanças – nota nossa), no período de 2016 a 2020, a membros do Conselho de Administração da TAP, SGPS, no montante de 4,3 milhões de euros”, entregues assim, de forma de todo ilícita, a Neelman, a Humberto Pedrosa e ao seu filho, David Pedrosa. Mesmo já em 2020, ainda e sempre de acordo com o referido Relatório da IGF, o Estado pagou “55 milhões de euros à Atlantic Gateway pela aquisição de 22,5% das participações sociais da TAP, SGPS, sem demonstração dos cálculos inerentes a essa aquisição.
A mal disfarçada “lavagem de capital”, a oneração e delapidação do erário público, a descarada e afrontosa protecção de pseudo-investidores que, afinal, nada investiram, mas muito lucraram, e a repetida e ostensiva violação do interesse público, só não viu quem, conhecendo os esquemas usados, não quis ver. Mas agora, após este relatório da IGT, o que já não é mais possível é o Ministério Público, o Tribunal de Contas, o Presidente da República, a entidade reguladora, os partidos políticos e os próprios sindicatos da TAP fingirem não ver.
Perante todo este vergonhoso escândalo de enriquecimento de uns, à custa da esmagadora maioria dos cidadãos portugueses, e desde logo dos próprios trabalhadores da Empresa, impõe-se exigir que todos os factos sejam devidamente investigados e todas as responsabilidades apuradas, sendo certo que há questões muito precisas que não podem deixar de ser colocadas a alguns concretos destinatários.
Quanto ao Ministério Público, o que se exige é que desta vez investigue a sério toda a factualidade ora vinda abertamente a público, tendo presente que o prazo de prescrição se completará dentro de apenas 1 ano (em Outubro/Novembro de 2025), e prestando contas do que faz ou deixa de fazer, em vez de se refugiar no “segredo da investigação” ou na sua pretensa não obrigação de cumprimento dos prazos legais.
Ao Presidente da República – que, aliás, nunca deixou de mandar recados públicos aos anteriores governos acerca da TAP… – impõe-se que agora acompanhe de perto tudo o que respeita ao futuro da companhia, garantindo a transparência e o escrupuloso respeito pela lei que devem caracterizar todas as questões relativas à coisa pública e à sua gestão e impedindo que quem tem as mãos sujas deste lamaçal possa (continuar a) exercer cargos públicos.
Às forças políticas, parlamentares ou extra-parlamentares, do Governo ou da oposição, é imperioso que respeitem o Povo Português e os seus interesses, desde logo não permitindo que quem os lesou de forma tão descarada possa continuar a exercer funções e exigindo e impondo, em todos os aspectos, a clareza e transparência até aqui tão vilmente torneadas.
Aos trabalhadores da TAP, sempre prejudicados em todas as operações e reestruturações da empresa, com despedimentos, cortes de salários e de direitos e com a imposição de ambientes de trabalho absolutamente indignos e inaceitáveis, que assumam que não só têm uma decisiva palavra a dizer sobre todas estas matérias (por isso muito se estranhando o profundo silêncio da generalidade das suas organizações representativas…), como também que têm de ter o controlo do que se passa na Empresa, em defesa dos seus próprios interesses, mas sobretudo em defesa dos interesses do país!
António Garcia Pereira
[1] Relatório n.º 52/2024, datado de Agosto de 2024 e relativo ao proc. n.º 2023/A10/709, elaborado por uma equipe de 5 inspectores e 2 chefes de equipa, coordenados por 2 Directores operacionais, com despachos de concordância do Sub-Inspector-Geral.
[2] Desde logo, os titulares da citada Geocapital, que embolsaram uma nunca devidamente explicada “comissão” de 4,2 milhões de dólares.
[3] Por exemplo, Sérgio Monteiro, Secretário de Estado do Governo de Passos Coelho/Paulo Portas, e o grande artífice dos esquemas montados na TAP (e também na ANA e nos CTT), criou logo em 2017, conjuntamente com o Ex-Ministro António Pires de Lima, o fundo “Horizon Equity Partners”, o qual, entre outros negócios, adquiriu 50% da sociedade que construíra e que controlava o Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, e 40% do capital do Hospital do Santo Espírito, na Terceira, nos Açores, e mais tarde foi integrar a administração da empresa de energias renováveis “Greenvolt”, apesar de a “Horizon Equity Partners” ter também interesses nesse sector…
[4] Despacho n.º 234/2023/MF, de 23/10.
[5] Por carta de 16/10/2015, subscrita por David Pedrosa (filho de Humberto Pedrosa) e Maximilian Otto Urbahn (braço direito de Neelman), administradores da Atlantic Gateway, e dirigida à Parpública, com conhecimento a Isabel Castelo Branco, Secretária de Estado do Tesouro, que reportava a Maria Luís Albuquerque, Ministra das Finanças, bem como a Sérgio Monteiro, Secretário de Estado das Infraestruturas.
[6] No seu art.º 332.º, n.º 1.
Falta incluir o processo de aquisição dos A 350, em 2005, para que se entenda e corrija o processo dos 330