Odair Moniz – Contra o esquecimento e a complacência: a urgência de agir

A 21 de Outubro, dois tiros disparados por um agente da PSP ceifaram, na Cova da Moura, a vida de Odair Moniz, cozinheiro de 43 anos, pai de três filhos e residente no vizinho bairro do Zambujal.

Este acontecimento gravíssimo deveria ter merecido um debate tão sério e frontal quanto fundamentado em factos e em princípios. No entanto, o que tem ocorrido é, em larga medida, o oposto, e paradoxalmente invocando factos – ou melhor, a inexistência de factos apurados num processo já concluído – e princípios como o da presunção de inocência, mas apenas a favor do agente policial. Como se tal presunção não se aplicasse à vítima do homicídio, a qual se deveria, assim, presumir culpada (de quê?), antes se dando como assentes os pretensos factos da primeira versão oficial da PSP. 

Com efeito, segundo o comunicado n.º 121 de 21 de Outubro, da Direcção Nacional da PSP, Odair Moniz teria fugido à Polícia no centro da Amadora e, após ter sido interceptado por esta, já no Bairro da Cova da Moura, “quando os agentes procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca, tendo um dos policiais, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito”, o qual teria sido “prontamente assistido”, versão esta depois reafirmada pela mesma Direcção Nacional da PSP em 24/10. 

Apesar de a completa falsidade desta versão ter ficado clara desde o início, pelos relatos e pelas filmagens de telemóvel dos moradores, soube-se depois que também existiam imagens de câmaras de videovigilância que confirmavam igualmente essa mesma falsidade: ninguém viu ou filmou qualquer arma branca a ser empunhada por Odair, e este ficou por largo tempo prostrado no chão sem qualquer assistência, tendo os polícias ido apenas verificar-lhe o pulso após muita insistência dos moradores. 

Espantosamente, toda a gente parece ter também esquecido, ou tem receio de lembrar, que, nos termos bem explícitos da Lei (art.º 3.º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 457/99, de 05/11), o recurso pela polícia a armas de fogo contra pessoas só é permitido “se houver perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física” [al. a)], “para prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas” [al. b)] ou “para proceder à detenção que represente essa ameaça” [al. c)]. 

E, ainda assim, se tiver mesmo de disparar contra alguém, o agente policial tem sempre o dever de o procurar fazer de forma não letal, visando as pernas, por exemplo. E, como devia ser óbvio, o facto de o cidadão visado já ter cadastro criminal, estar em fuga ou até vir de um assalto não justifica nem legitima a aplicação ao mesmo de uma sumária pena de morte, a qual Portugal tem justificado orgulho de ter sido um dos primeiros países do mundo a abolir.

Assim, atirar a matar, como defendem os dirigentes do Chega, contra alguém que simplesmente não obedece a uma ordem ou foge de uma intercepção policial, sem haver ameaça a vidas humanas, constitui um puro e simples homicídio.

E há duas questões que (quase) ninguém coloca: Porque é que se não põe logo a hipótese de ter havido adulteração de provas, designadamente quanto à tão referida faca? Como é possível que, após tudo isto, o Director Nacional da PSP se mantenha em funções?

Entretanto, somaram-se a isto as versões, não oficiais mas logo difundidas pelos defensores da actuação policial, de que Odair Moniz teria sido surpreendido a cometer um crime (quando, na verdade, apenas pisara um traço contínuo), de que se deslocava num carro roubado (que, afinal, era o seu) e de que, tal como um dos polícias envolvidos no incidente fatal asseverava na hora e no local do mesmo (tendo sido em boa hora filmado por moradores, havendo posteriormente tais imagens sido divulgadas pela Revista Visão), os tiros teriam sido disparados “da cintura para baixo” (e, afinal, atingiram Odair no abdómen e na axila).

Entretanto, logo houve quem, numa significativa duplicidade de critérios, tratasse de negar os factos desfavoráveis à Polícia já conhecidos e amplamente indiciados, invocando que se teria de esperar pelo fim das averiguações do processo-crime, mas logo dando por assentes os pretensos factos favoráveis à tese da polícia e de que havia, e há, apenas a versão dos agentes policiais.

Por outro lado, terá havido duas visitas de agentes das Equipas de Intervenção à casa da família enlutada. Quanto à primeira – em que três agentes terão invadido o domicílio, arrobando a porta e agredindo duas pessoas –, como, pelo menos até agora, não há imagens, invoca-se, uma vez mais, que, não obstante os magoados e indignados depoimentos dos familiares, amigos e vizinhos de Odair, tal invasão não está provada. Mas quanto à segunda visita – de que, felizmente, há muitas imagens, inclusive de uma televisão –, já não se vê mal nenhum em que, depois de tudo o que já havia ocorrido, a Polícia fosse novamente à casa onde vivia Odair para dizer à família e amigos que “fizessem o luto de modo civilizado”! Aqui, como já não há como negar o facto ou invocar a presunção de inocência, opta-se por desvalorizar, ou até mesmo negar, a natureza acintosa e gravemente provocatória deste tipo de actuação policial.

As posições criminosas do Chega

Como se tudo isto já não bastasse, dirigentes e responsáveis do Chega, ao referirem-se à morte de Odair Moniz, não hesitaram em afirmar que este era “um criminoso que estava disponível com armas brancas para atacar polícias”, “um bandido”, que “não era boa pessoa”, que “tentou esfaquear polícias e ia cometer crimes” (André Ventura), que “se [os polícias] atirassem mais a matar, o País estaria mais na ordem” (Pedro Pinto, líder parlamentar) e ainda que, com a morte do cidadão em causa, haveria “menos um criminoso” (Ricardo Reis, assessor parlamentar).

Uma vez decidida e levada a cabo por um grupo de cidadãos – com e sem partido, de muitas e variadas origens, profissões e orientações políticas – a apresentação de uma queixa-crime contra esses três personagens pelos diversos ilícitos criminais que este tipo de odiosos comportamentos consubstanciam, bem como o lançamento de uma petição pública a apoiar essa iniciativa, foram também muito significativas as posições que os autores daqueles dislates e respectivos apoiantes logo trataram de adoptar.

Por um lado, e em absoluto desespero perante a enorme adesão à referida petição – que conta actualmente com mais de 130 mil subscritores –, os seus apoiantes procuraram levar a cabo uma série de “operações negras” (mais velhas que o Norte magnético…) numa tentativa de descredibilização, colocando descaradamente os seus bots e trolls de serviço. Este truque, que terão certamente aprendido com os seus amigos do Vox em Espanha, consistiu em fazer inscrições forjadas, com nomes falsos, para possibilitarem ao “grande líder” Ventura dizer e repetir a rábula de gritar “Fraude, que há nomes falsos!”, como se esses miseráveis truques pudessem desmerecer o papel e o significado social e político de 130 mil cidadãos a erguerem-se para dizer claramente “não” ao discurso do ódio, ao insulto pessoal e à palavra rasca como formas de fazer política.

Literalmente esmagados pela circunstância de dezenas de milhares de cidadãos – todos diferentes, mas todos iguais, unidos na afirmação e na defesa da principal palavra de ordem do movimento “Vida Justa”: “Sem Justiça, não há paz!” – se terem manifestado em Lisboa no passado Sábado, enquanto, mesmo com as prestimosas ajudas do ADN e do movimento neonazi “1143”, o partido não conseguiu arregimentar mais do que 200 pessoas em frente ao Parlamento, os dirigentes do Chega passaram à fase da vitimização e da desculpabilização.

Assim, e decerto depois de serem juridicamente aconselhados nesse sentido, passaram a apresentar-se como pobres vítimas injustamente perseguidas apenas pela “visão diferente” que têm para o País e a proclamar que é muito negativo deixar que questões políticas (como se as posições que adoptaram e as afirmações que proferiram não constituíssem crimes de delito comum) sejam levadas à Justiça, como defendeu André Ventura. Ou então que a barbaridade proferida por Pedro Pinto num programa televisivo teria sido apenas ora uma ironia, ora uma frase infeliz, ora uma expressão “descontextualizada”, justificável pela invocação da liberdade de expressão.

É certo que a queixa-crime, e sobretudo a dimensão quer da petição que a apoiou, quer da manifestação do “Vida Justa”, lhes deram muito em que pensar e com que se preocupar. Mas, acima de tudo, tornaram claro que este combate pela Justiça, pela defesa dos mais pobres e vulneráveis, pela Liberdade e pela Democracia se faz, sobretudo, nas ruas, ou seja, pela luta social e política e pelo combate cívico, ainda que as lutas jurídicas possam ser, como esta inegavelmente é, também importantes.

A verdade é que os lobos podem até perder alguns dentes, mas nunca por nunca perdem os intentos. Por isso, não tenhamos quaisquer dúvidas de que, assim que se sentirem com força para tal, voltarão a actuar exactamente da mesma forma. Um exemplo disso mesmo é o facto de André Ventura, em comentário à reunião que o Governo decidiu realizar com diversas associações dos bairros pobres (e para a qual se tinha “esquecido” de convidar o “Vida Justa”, recorde-se…), se ter permitido afirmar, em plena Assembleia de República, que o Governo deveria “estar com a Polícia contra os bandidos. Fizeram o contrário nestas reuniões”.

O papel da Comunicação Social

Uma nota também para a Comunicação Social que, de uma forma geral, embora com algumas e muito honrosas excepções, não foi aos locais investigar nada, nem ouviu os moradores; antes limitou-se a buscar o sensacionalismo, dando sistematicamente tanto ou mais tempo de antena aos personagens e manifestantes do Chega do que, por exemplo, à grande manifestação do “Vida Justa”, à cobertura da entrega da queixa-crime na PGR e, sobretudo, ao que as associações de moradores dizem e reclamam. Ignorou ainda um conjunto de factos que, esses sim, não podem nem devem ser esquecidos e dos quais praticamente ninguém tem falado, excepto as Associações dos bairros.

O abandono, a estigmatização e a criminalização dos moradores dos bairros pobres

As populações dos bairros mais pobres da Grande Lisboa têm sido, desde há décadas, sistematicamente esquecidas, ignoradas, silenciadas, mas também perseguidas e violentadas. Muitos destes bairros – muitos deles constituídos por realojamentos feitos com dinheiros públicos, mas depois totalmente abandonados – não dispõem de equipamentos nem serviços públicos, transportes em condições, recolha de lixo, saneamento, farmácias, multibancos, etc. 

A estigmatização e a ostracização, para não dizer a criminalização territorial e étnica dos habitantes destes bairros, são logo legitimadas, muitas vezes sem nos darmos conta disso, pelos “selos” e denominações que lhes são atribuídas. Desde a classificação de “bairros problemáticos”, como lhes chama a Polícia, até à designação de “Zonas Urbanas Sensíveis”, como são definidas pela própria Lei (por exemplo, na Lei de Política Criminal, Lei n.º 38/2009, de 20/07, no seu art.º 9.º). Assim, se o bairro é “problemático” ou “sensível”, parece tornar-se legítimo actuar aí de forma radicalmente diferente e mais violenta do que em outras zonas da cidade. E todos nós entendemos, ainda que muitas vezes demasiado tarde, que, se um cidadão branco, ao volante de um BMW ou de um Mercedes, pisasse um traço contínuo na Avenida de Roma e tentasse escapar aos agentes da PSP, seguramente que estes não actuariam em relação a ele da mesma forma que agiram com Odair Moniz.

Os moradores desses bairros, em particular os da Cova da Moura e do Zambujal, são, na sua grande maioria, trabalhadores, muitas vezes com empregos precários e muito mal pagos, como limpezas e construção civil. Levantam-se de madrugada, percorrem quilómetros com os filhos, esfalfam-se a trabalhar e quando regressam ao seu bairro ao final de cada dia, absolutamente extenuados, são frequentemente maltratados, encostados às paredes, revistados, insultados e até presos.

Mortes e abusos a não esquecer 

Além disso, como afirmou recentemente Helena Roseta numa entrevista ao Jornal Público (de 28/10/24), “não é a primeira vez que a Polícia mata sem explicação e a história é mal contada”. Por isso, recordo aqui, para que a memória não se apague, alguns desses casos que exemplificam e explicam muita coisa:

2001: Ângelo Semedo (o Angoi), 17 anos, morto a tiro de caçadeira por um agente da PSP, que foi suspenso por 75 dias.

2003: Carlos Reis (o PTB), 20 anos, morto a tiro na cabeça após uma operação STOP em que não terá parado.

2004: José Carlos Vicente (o Teti), 16 anos, barbaramente agredido no Bairro 6 de Maio por agentes da PSP e que acabou por falecer no Hospital Amadora Sintra.

2009: Edson Sanches (o Kuku), 14 anos, morador na Quinta da Lage, morto pela polícia com um tiro na cabeça, à queima roupa.

2010: Nuno Rodrigues (o MC Snake), 30 anos, morto a tiro por um agente da PSP que, inicialmente acusado de homicídio qualificado, acabou condenado somente por homicídio por negligência (grosseira).

2015: Flávio Almeida (o LBC), ilegalmente detido e agredido pela PSP na Esquadra de Alfragide por ter ido pedir informações sobre a detenção de outro jovem. Após um conturbado processo, marcado por diversas manifestações de apoio de polícias aos colegas agressores, um agente foi condenado a pena de prisão efectiva, e outros a penas suspensas.

Não ter esta memória é não compreender que estamos perante concidadãos que se sentem esquecidos, desprezados, sufocados e perseguidos, e que os seus gestos de revolta – sobretudo dos mais jovens, mesmo quando excessivos e violentos – são, afinal, o grito de quem está saturado do desprezo e da repressão e já não tem mais para onde recorrer.

Para que a morte de Odair não seja esquecida e inspire a mudança

Se não agirmos até à raiz dos problemas, eles não vão deixar de se agravar, como, aliás, tem vindo a acontecer, perante a cegueira ou a indiferença generalizada. Segundo o último relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da UE, 45% dos inquiridos disseram ter sido vítimas de discriminação racial. De acordo com dados do Ministério Público e com os que foram recolhidos pela agência Lusa junto da PSP e da GNR, foram registados 347 crimes de ódio em 2023, representando um aumento de 38% relativamente ao ano anterior A APAV verificou ainda, já em Abril deste ano, um crescimento considerável dos pedidos de ajuda por parte de vítimas de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

Todavia, após um consórcio de jornalistas ter examinado cerca de 3000 publicações nas redes sociais de elementos das forças de segurança, identificando 600 casos de comentários e publicações não apenas discriminatórios, mas também racistas e de apelo à violência e à prática de crimes graves, a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) anunciou, em Janeiro deste ano, a abertura de… apenas 13 processos disciplinares!

Em Novembro de 2020, na sua 11.ª visita a Portugal, o Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa denunciava, mais uma vez, os abusos praticados por elementos da PSP e da GNR e alertava para a reincidência dos mesmos abusos, em particular contra afrodescendentes e imigrantes. Três anos depois, e como bem assinalou Maria Castello Branco no seu artigo de opinião “Segurança pública à venda”, recentemente publicado no Jornal Expresso, o relatório do mesmo Comité é ainda mais negativo, pois, como se refere, “o problema crónico de maus tratos” persiste, e para o Chefe de Delegação, a confiança no IGAI já nem existe, o que bem evidencia a enorme gravidade da situação. 

E decisões incendiárias, como a da Câmara de Loures (presidida por Ricardo Leão, do PS, e aprovada com os votos favoráveis do PS, PSD e Chega, que a propôs!), de despejar e lançar para a rua quem cometa crimes (quais?), não só são manifestamente inconstitucionais, como prejudicam terceiros inocentes (como os filhos) e agravam ainda mais a exclusão e a marginalização.

Por tudo isto, temos de começar, e desde já, a alterar a postura de desvalorização e complacência para com as forças, as ideias e as políticas racistas, bem como a postura de abandono, senão mesmo de completa hostilidade, para com as suas vítimas. E isso passa, necessariamente, por novas políticas sociais de apoio e recuperação dos bairros pobres e dos seus moradores, reconhecendo-lhes e atribuindo-lhes a dignidade social a que têm direito, e pelo combate sem tréguas a todas as práticas discriminatórias, xenófobas e racistas, sobretudo por parte de quem tem armas na mão, ou seja, as polícias. 

Não podemos mais lavar as mãos como Pilatos – ou agimos, correcta e firmemente, para que a trágica e injusta morte de Odair Moniz não seja esquecida, ou ficamos, simples e cumplicemente, à espera da próxima tragédia e da revolta que ela irá inevitavelmente provocar…

António Garcia Pereira

2 comentários a “Odair Moniz – Contra o esquecimento e a complacência: a urgência de agir”

  1. […] André Ventura e Pedro Pinto”, o advogado António Garcia Pereira, na sua crónica semanal no Notícias Online, lembra que “em Novembro de 2020, na sua 11.ª visita a Portugal, o Comité Anti-Tortura do […]

  2. Mais um artigo, esclarecido e exaustivo.
    O meu cumprimento e a minha consideração para ti, António. Para que seja bem viva a luta de quem não se conforma, nem desista!

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